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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    38 Junho 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

ENCONTROS POSSÍVEIS
COMO FOI O DEBATE SOBRE O NÚMERO 54 DA REVISTA PERCURSO


THIAGO MAJOLO [1]



Foi lá pelo meio da manhã daquele sábado, quando o debate do número 54 da revista Percurso já estava a pleno vapor, que a famosa frase atribuída a Bertolt Brecht me veio à cabeça: “Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?”. Essa pequena palavra de cinco letras, óbvio, de fácil apreensão, talvez compreenda o sentido maior do que quero relatar sobre o evento. Tentarei me explicar, no decorrer das linhas seguintes.

O debate começara, como sempre, com a proposta de dar livre curso aos assuntos que fossem surgindo naturalmente, sem hierarquia ou ordem, guiados unicamente por uma espécie de associação livre coletiva. Nas devidas proporções, acredito que o máximo que posso fazer, ao escrever este texto, é algo similar a essa proposta, não um relato totalizante, mas uma reportagem crítica e analítica do que constituímos naquele breve e temporário grupo de pensamento e trabalho.

Logo fomos tomados por um assunto de extrema atualidade. Amparados pelo artigo Até tu, Pontalis, de Miriam Chnaiderman e Ana Lucia Marques de Souza - ambas presente no evento -, adentramos a atualíssima discussão sobre orientação sexual e (re)definição de gêneros. As autoras denunciavam, dentro da literatura clássica psicanalítica, os entraves teóricos e também clínicos no reconhecimento das formas contemporâneas de sexualidade, que põem em trabalho todo o arcabouço metapsicológico que tem por complexo primordial o Édipo.

Ao avançarmos as conversas, nos aproximamos do conceito de “identidade” enquanto estruturação fechada em si mesmo, pouco afeita às inerentes ambiguidades do desejo, o que levou o debate para outro artigo da revista, cujas autoras também estavam presentes: O filho diferente: uma humanidade não reconhecida, de Paulina Ghertman e Silvia Lobo. Ao comentarem o trabalho institucional junto às famílias, principalmente as mães, de crianças com algum tipo dos ditos “déficits intelectuais”, Paulina e Silvia abriram espaço para que pudéssemos falar sobre as invisibilidades daqueles que, por serem diferentes de uma maioria, denunciam um tecido social perverso, que insiste em recusar fenômenos e singularidades inquietantes e indesejadas.

A partir daí a discussão adentrou o campo do mecanismo da recusa. É sempre fonte de certo assombro quando nos deparamos com os fenômenos da recusa, estando nós mais capacitados ou, ao menos, mais adequados às manifestações do recalque. Mas fato é que as “exigências da clínica e da cultura à psicanálise”, título da revista tão bem escolhido pelo editor Sérgio Kon, põe-nos defronte a uma costura social que recusa incessantemente quem não se enquadra num padrão normativo, tais quais os deficientes, os moradores de rua, os de orientação sexual não-heterossexual ou, entre tantos outros, os autistas, tema de outro instigante artigo da revista, escrito por uma autora também presente no dia, Marina Bialer: A importância clínica do duplo autístico e das ilhas de competência no auto(tratamento) no espectro autístico. Passamos então a debater sobre as condições sociais e clínicas das pessoas que têm dificuldade no acesso ao reconhecimento de sua humanidade.

Pois, então, voltamos ao princípio deste texto e à frase de Brecht, que nos aponta um mundo que ainda requer a defesa do óbvio. Claro que os assuntos acima mencionados não são feitos de fáceis obviedades; aproximar-se deles requer - e requereu dos debatedores - trabalho psíquico e elaboração, abertura para acolher opiniões diversas na busca de uma construção psicanalítica mais abrangente e ampliada, que possa se aproximar dos sujeitos de seu tempo. Óbvias, porém, são as reivindicações dessas singularidades múltiplas, que reivindicam voz e pertencimento social. Que tempos são esses em que ainda não constituímos um espaço potencialmente digno a essas pessoas?

E com essa demanda pairando no ar, adentramos o assunto que mais demandou desse debate, e que tem movimentado também o Instituto Sedes Sapientiae nos últimos tempos: o racismo.

No esteio do excelente artigo O racismo nosso de cada dia e a incidência da recusa no laço social, de Tania Corghi Veríssimo – igualmente presente na ocasião -, e instigados pela sessão Debate da revista, que tratou do mesmo tema, tendo como colaboradoras Lilia Schwarcz, Noemi Kon e Maria Lúcia da Silva, as últimas duas também presentes, enveredamos por uma discussão acalorada e importante sobre a persistência do racismo na sociedade brasileira e sobre os mecanismos psíquicos individuais e coletivos que o sustentam. Para além da epistemologia do conceito de escravidão, é sua história e seu entrelaçamento sutil em todas as esferas da sociedade e da cultura brasileiras que o tornam por vezes tão poderoso quanto mais naturalizado e supostamente invisível. Arraigado na linguagem e concretizado em grandes ou pequenos atos, o racismo promove a tentativa de apagamento não apenas de uma cor de pele, mas de todas as culturas que os negros brasileiros, por suas ascendências africanas diversas, carregam nas histórias de suas famílias. É a recusa de várias genealogias, movimento perverso que envolve todas nossas relações sociais, da mais íntima até a mais pública, e do qual, por isso mesmo, nenhum de nós pode se isentar. Foi o momento em que o debate tornou-se, obviamente, tão fecundo quanto incômodo.

Maria Lúcia da Silva, militante do movimento negro de tantos anos, chamou-nos a atenção por ser ela a única negra no debate e, possivelmente, uma das raras psicanalistas negras no Sedes ou em outras instituições psicanalíticas. Se o que está no corpo, singular ou social, precisa ganhar palavras para que as transformações possam operar, o tema do racismo, pelo longo e perverso silêncio que o acompanha, necessita de muitas palavras, muitos debates, muito mais do que a maior parte dos temas correntes, pois não se promove reparação apenas com o equilibrar da balança da justiça. É preciso, às vezes, calcar mais de um lado, para compensar o desequilíbrio histórico.

Finalizando o assunto, Maria Auxiliadora C. Arantes ainda nos recomendou uma leitura histórica e humana, grandiosa e íntima sobre o tema, que a tocara particularmente. Compartilho: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.

Em tempo, finalizamos o debate com mais dois assuntos da revista. Um deles, a seção Debate Clínico, sobre o qual a fala de Silvia Alonso no evento fez incidir sugestões – as mesmas que fizera na sua colaboração a este número –, a fim de que continuemos repensando o formato desse espaço recente da Percurso, cujo interessante propósito ainda está buscando seu melhor formato. E, por fim, ainda tivemos uma rápida mas generosa apresentação de Bruno Espósito, comentando o seu artigo Superfícies do corpo, continentes do eu: sobre o Eu poroso dos pacientes estados-limites, sobre um tema cuja importância na clínica contemporânea é ratificada cada vez que nos deparamos com um trabalho de sustentação dos continentes psíquicos, muitas vezes até mais primordial do que o trabalho com seus conteúdos.

O debate da Percurso, aberto e democrático, continua sendo um espaço potencialmente rico, que pode e deve servir como ponte entre a o fazer da revista e o cotidiano do Departamento, além de um momento de integração entre autores e leitores.

Gostaria de terminar este breve relato com uma autobiografia de Lasar Segall. O artista lituano, ao buscar um pertencimento e integração nessas terras, e com o sentimento de estrangeirismo, pinta-se como um homem negro. A partir dessa capacidade de ser outro, promove um bom encontro.

 



Encontro (1924)



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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em História Social pela USP, membro do Grupo Acesso: estudos, intervenções e pesquisa sobre adoção da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae; membro da comissão de Debates da Revista Percurso.




 
 
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