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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
ESCRITOS

VÉSPERA: QUASE NO ESCURO


Rubia Delorenzo[1]



Um líquido espesso pressiona os olhos. Ele os percorre por dentro. Um rio banha as letras e a luz. Perdi no interior dos olhos a claridade de fora. Espaços opacos morrem sem brilho. Manhãs sempre pálidas e as tardes leitosas.
Asfalto e calçadas, a vida nas ruas, são massa compacta.
Sem relevos nem volumes.
Já não posso olhar o mundo sem essas águas orgânicas, que são também águas de correnteza que movimentam perigosamente a vida.

Dentro do hospital, o corpo perde seu tecido sensível. Arrepios, batimentos sem governo, vertigens, febres, falta de ar: estão agora do lado do medo, já não pertencem à paixão. Despe-se o corpo de sua pele porosa ao olhar. Puro corpo, invisível.
Os olhos envolvidos, envolventes, são agora objeto de precisão científica.

Ah! Os livros não lidos, os cobiçados, os que metem medo por difíceis, os postergados porque extensos, os fora de moda, os eternos, os esquecidos. Os que tivemos preguiça de ler, mesmo sabendo o muito que se iria perder.
Os que interrompemos no meio, sem conhecer o final.
Os evitados porque escritos em outras línguas.
Os Le Clézio não traduzidos do francês. Lástima se não se pudesse mais reencontrar Léon e Suryavati nas águas que batem na ilha de Plates. Os cabelos dela, abertos em mechas sob a superfície das águas, parecendo uma estrela do mar. Açoitados pela quentura do sol, seus corpos se acalmando no tépido das ondas da ilha.
Pena por aqueles que se desejaria ler outra vez: O Quarteto de Alexandria - Justine, Mountolive, Baltasar e Clea.
Por aqueles que se quer terminar de ler pela alegria do recomeço: Grande Sertão: Veredas.
A grande tempestade se armando, a força da chuva no sertão.
Sabe o que é isso? A gula dos olhos.
Sem ela, iminente risco de inanição.

“Os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; tinha a sua espessura infinita, a sua variedade e a sua imprevisibilidade.” (As palavras - J. P. Sartre)

Saindo da letargia, finalmente a cortina se abre.
Tudo límpido, nítido, saí do lisérgico incolor.
Novamente o mundo configurado
Novamente o belo desenho das letras, tão particular...

Molhei meu rosto de lágrimas. Eram lágrimas.
Agradeço.

26/04/2016



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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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