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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

HOMENAGEM A MANOEL TOSTA BERLINCK


SÉRGIO DE GOUVÊA FRANCO [1]



Caiu – mas até o último minuto estava em pé – na noite do dia 20 para o dia 21 de junho deste ano de 2016. Durante o dia 17, poucas horas antes de sofrer o violento AVC que o levou, ele celebrava a verba recebida de órgão de fomento à pesquisa para o Congresso em João Pessoa. Estes poucos dias passou inconsciente, no hospital. Não poderia ter tido morte mais condizente com sua biografia. Creio que não gostaria de ter tido período longo de doença e agonia. Imensamente dedicado, trabalhou até o último instante. O Congresso de João Pessoa este ano é o décimo terceiro de psicopatologia fundamental no Brasil; faz 20 anos que ele regularmente os organizava. Cada um desses encontros foram sempre eletrizantes, pessoal e intelectualmente. Morreu ao lado de Ana Cecília, sua companheira, apenas com ela. Aos 79 anos de idade. Faria 80 anos no dia 18 de dezembro próximo. Deixa filhos, filhas e neto, dos casamentos com Regina e com Cristina; deixa também irmãos e irmãs.

Manoel era de família tradicional. Seu pai foi diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Ali Manoel fez sua graduação e mestrado em ciências sociais. Impossível entendê-lo sem se dar conta de que era sociólogo. A Escola de Sociologia promovia o estudo acurado da realidade brasileira, com a força de alguns estrangeiros. Ele nunca abandonou esta vocação, amava o Brasil. Fez seu doutorado em ciências sociais em Cornell nos EUA; motivo de orgulho pessoal, que disfarçava. Seus escritos em sociologia circulam até hoje. Sua formação em uma ciência social dura foi decisiva para o modo como entendia o ser humano e a própria psicanálise. Seu avô fundou, com Álvares Penteado, uma Escola de Comércio no início do século XX. Seguindo a tradição familiar, Manoel era professor e pesquisador. Foi professor da Unicamp de 1972 a 1992, onde eu o conheci quando fazia meu doutorado. Foi professor também da Fundação Getúlio Vargas.

Não sei exatamente o que aconteceu. Mas recolhendo fragmentos aqui e ali, sei que começou uma análise pessoal decisiva. Uma virada tão profunda que só o divã poderia explicar. Começou a estudar Freud vorazmente, nunca mais parou. Era apaixonado por Freud. Lia intensamente sociologia e psicanálise, mas também epistemologia e filosofia em geral; gostava dos livros e de boa música. Começou formação com Fabio Landa e virou psicanalista, psicanalista arguto e corajoso. Quando veio para a PUC-SP, aposentado na Unicamp, já veio professor de psicanálise. Ele orientou na PUC-SP pouco menos de 90 dissertações de mestrado e teses de doutorado: um número impressionante. Este era seu ofício: ajudar a criar intelectuais. Odiava a repetição de ideias. Queria muito pesquisar e criar. Ensinou inúmeros alunos a pensar na primeira pessoa, sem medo de errar. Autorizava a autoria.

Fundou o Laboratório de Psicopatologia Fundamental na PUC-SP em 1992. Fiz meu pós doc ali. Seu estilo exigia não apenas o pensamento, exigia o respeito para o que estava sendo feito, seriedade. Teve grande contato com Pierre Fédida, o filósofo e psicanalista francês, professor de Paris VII, que ele trouxe ao Brasil várias vezes. Abrasileirou a noção de psicopatologia fundamental criada pelo francês – campo de sentidos e significados, onde a psicanálise dialoga com outras disciplinas que se debruçam sobre o fundamento do sofrimento humano. Deste modo, Manoel acreditava estar retomando a vitalidade da ação e pensamento de Freud. Seguindo inspiração francesa, Manoel lutou para colocar a psicanálise brasileira dentro da Universidade.

Além de sociólogo, psicanalista, professor, pesquisador, pai e amigo, ele foi também um grande editor. Dirigiu por anos a Pulsional – Revista de Psicanálise – e a Revista LatinoAmericana de Psicopatologia Fundamental; esta última é uma das revistas mais bem avaliadas pelos órgãos oficiais do campo psi brasileiro. Foi um dos criadores e diretor da Livraria Pulsional e da Editora Escuta, que traduziu para o português e publicou alguns dos mais importantes psicanalistas estrangeiros: Pierra Aulagnier, Pierre Fédida, André Green, Collete Soler, Serge Leclaire, Thomas Ogden, Claude le Guen..., além de publicar muitos autores brasileiros. Trouxe ao Brasil figuras importantes da psicanálise mundial, como Christopher Bollas, Radmila Zygouris, Piera Aulagnier, Elizabeth Roudinesco e outros que vieram para jornadas especiais ou para os Congressos. Nos últimos tempos tinha se envolvido com German E. Berrios, professor de história da psicopatologia em Cambridge, com quem publicou em parceria e também trouxe ao Brasil.

É difícil avaliar o impacto destes livros traduzidos e da presença destes nomes no nosso país. Sabemos que desta forma enriqueceu e trabalhou para não deixar no isolamento o pensamento psicanalítico brasileiro. Manoel foi autor de inúmeros artigos publicados no Brasil e exterior e de inúmeros livros. Era generoso, ajudava os outros a publicar no Brasil e no exterior, mesmo em lugares pouco prováveis como uma revista no Irã. Dentre os seus próprios livros, valorizava o livro Psicopatologia Fundamental publicado no ano 2000.

Fundou a Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental em 1996, inicialmente chamada de Rede, reunindo pesquisadores do Brasil e de diversos países do mundo em torno de relevantes questões contemporâneas. É a Associação que está por trás dos Congressos e da Revista LatinoAmericana de psicopatologia fundamental. Manoel foi presidente da Associação até o fim. Tinha um notável senso de oportunidade, tendo se tornado um empreendedor do pensamento ao criar instituições e uma rede de pessoas com imaginação. Rigor e discreta paixão – talvez assim possamos falar de seu esforço vital. Sonhou até o fim os seus sonhos.

A morte de Manoel deixa muitos órfãos: alunos, pesquisadores, pacientes, parentes e muitos amigos. Deixa uma lacuna difícil de preencher. Há repercussão por toda parte, lamentando sua morte. No dia do seu enterro, a sensação era de perda e perplexidade. Um e outro se perguntavam: “Cadê o nosso professor?”. Seus orientandos atuais repetiam sua frase no Laboratório: “Quais são os comentários ao texto?” Todos sabiam que não era possível não ter comentários, não era possível não se posicionar. Tenho gratidão por aquilo que Manoel fez por mim em cerca de 25 anos de convivência. Mas não sou o único. Obrigado, professor.




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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.




 
 
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