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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

AS CONSEQUÊNCIAS PSÍQUICAS DA VIOLÊNCIA DE ESTADO:
DA DITADURA CIVIL-MILITAR AOS TEMPOS PRESENTES [1]


Eduardo Losicer [2]


Para mim é uma grande responsabilidade participar desta mesa, por vários motivos - além dos óbvios, ligados ao tema que fomos chamados a expor. Como integrante da Clínica do Testemunho RJ, tenho a tarefa extra de dar conta do tema conceitual e ético que se coloca, referenciando-me na experiência clínica que acumulamos nos últimos anos. É isso que temos para aportar de mais especifico à discussão, ao mesmo tempo que precisamos consultá-los sobre as complexidades com que nos deparamos na nossa árdua prática.


Quero ressaltar a corajosa atitude dos organizadores que nos propõem partir da premissa de uma relação direta entre Terror de Estado nas épocas da ditadura e na época atual, vista desde o ângulo dos efeitos psíquicos que provocam.


Sim, nosso testemunho confirma a relação direta quando constatamos que os efeitos psíquicos da violência em épocas de Estado pleno de Exceção não é menos grave que aquela produzida nos “nichos” de exceção que hoje aparecem “democraticamente” em todo lugar e fora do foco da grande mídia.


Bolhas de exceção que parecem dissociadas entre si e localmente motivadas, com a clara tendência a se unir, se não houver resistência, até chegar ao Estado de Exceção civil.


Sim, as graves violações constatadas hoje em dia não são apenas enquadradas como violência policial, como habitualmente, mas entendidas como violência própria de atos de exceção protagonizados por diversos agentes de Estado, sejam ou não agentes institucionais da ordem.


Isto é, a repressão violadora na sua nova faceta de “repressão institucional militarizada”, numa época de plena crise da representação.


Ou seja, tempos em que o esgotamento da política representativa mostra suas velhas chagas éticas e a tradicional classe política se encontra atualmente em uma deriva que se expõe a ser cooptada por conveniências pontuais e inorgânicas.


A experiência clínica com afetados nos permite identificar, hoje, as consequências do Terror em todas as pessoas – parece que já não há vítimas diretas e indiretas da violência de Estado -, invadidas hoje por graves ameaças à vida e à sobrevivência... e não apenas naquelas pessoas que nos procuram.


O “pensamento da segurança” que tudo domina no mundo, herdeiro da nefasta doutrina da segurança nacional que reinou entre nós na ditadura, se mistura perversamente com o campo de defesa dos Direitos Humanos.


Percebemos que as tais consequências psíquicas – que alguns preferem chamar de produção de subjetividade – das novas violações se generalizam, a começar por aqueles que já foram gravemente afetados pelo Terror da ditadura.


São os primeiros a alertar sobre o monstro que se levanta no horizonte porque lhe conhecem as entranhas.


Mas... como evitar que a sua “clarividência” se transforme em disseminadora do Terror e acabe assim repetindo sua lógica sinistra que o apresenta como “familiar”? Como entender esta consequência psíquica? Como re-traumatização? Como retorno do reprimido? Como forma não conhecida da potência de reação humana no limite?


Certamente que a nuvem negra da exceção na democracia acaba ensombrecendo a todos e a nossa Clínica de afetados se multiplicaria, potencialmente, de forma indefinida e nos implicaria a todos. Nossa tarefa se mistura com o comum e não só como especialistas dos transtornos do psiquismo individual/grupal/institucional. Tanto podemos atender um afetado como sermos afetados em manifestações públicas, por exemplo.


Costumávamos falar do “Estado violento em nós”, e esta é uma questão sempre presente. Mas agora temos que colocar na frente “a potência da resistência em nós”. Sim, porque uma das consequências mais devastadoras da ditadura foi uma certa despolitização que provocou na sociedade toda, e isto pode ter nos extraviado da militância e da política “comum”.


Não podemos esquecer que quando falamos de “consequências psíquicas” não nos referimos apenas aos efeitos puramente destrutivos da violência de Estado. Existe, sim, um efeito produtivo. Algo que em mim teve o efeito de me resgatar das durezas deste singular trabalho, foi quando percebi mais de uma vez – principalmente entre os muito jovens -, algo que chamaria de “novo devir militante”. Mesmo que seja uma fantasia de desejo minha, a expressão serve bem para apontar uma das “consequências psíquicas” das quais estamos falando.


Assim como existe um estado de choque psíquico, existe também um estado de choque político e estamos todos irremediavelmente atravessados por ambos. Mas pagaremos um preço alto demais se nos assujeitarmos ao choque, ao golpe, ao trauma.


Só para voltar ao ponto de vista comparativo proposto para a mesa, queria lembrar algo que aprendemos desde o projeto piloto de 2013. Foi uma convenção sancionada pelo uso, em nossa equipe, a de que, quando se tratava de se aproximar da denominação do Grande Sintoma que tratávamos, o termo mais usado era silenciamento.


Independentemente de filiações e formações institucionais, a expressão era clinicamente aceitável. Tinha a vantagem de “despatologizar” o sintoma e apontar para o silêncio da sociedade, que é seu último reduto. Não definia, porém, quanto havia nisso de censura, de recalque ou de dissociação profunda.


É um dos motivos pelos quais serve até hoje, porém não escapamos da tentação de indagar-nos sobre qual seria o sintoma da chamada atualidade.


Embora também hoje encontremos o silenciamento das épocas da ditadura, o que se pode testemunhar é, pelo contrário, uma ruptura histórica do silêncio institucional.


São muitas as leis do silêncio que estão sendo gritantemente quebradas, tanto no nível do Governo quanto do Mercado... e da relação entre ambos.


Por misteriosa confluência de fatores, os círculos de silêncio se abrem e hoje “tudo deve ser dito”. Toda uma cultura de sigilo nos negócios entre os poderosos passa a ruir. O conluio que parecia eterno se rasga como uma casca que nada protege. O que sai de dentro do ovo da serpente? Uma serpente, naturalmente. A serpente da vez não é o totalitarismo exterminador, como já foi nas origens do nazismo, mas a grande corrupção do poder político e do poder econômico.


A traição delatora rompe acordos históricos entre os grandes capitais e os políticos profissionais, desde o tradicional caixa dois que financia tradicionalmente as eleições nas democracias representativas até a livre circulação de altas propinas entre as elites políticas e empresariais.


Também as informações sigilosas são arrancadas do que parecia seu legítimo silêncio eterno, colocando em risco a segurança financeira, jurídica e militar.


O que antes era silenciamento provocado pelo Terror, hoje parece falatório ensurdecedor.


O exemplo da delação premiada chega a ser paradigmático. Longe de ser a confissão torturada nos porões, a delação premiada autoincriminadora mostra sua essência baseada na vingança. É por esta ambiguidade ético-jurídica que o instituto da delação premiada chegou a ser considerado, ele própria, um ato de exceção.


Cortar o fornecimento de água para uma escola ocupada e sitiada é um outro exemplo de ato de exceção que tivemos possibilidade de testemunhar recentemente. Métodos medievais da guerra aparecem das sombras para tentar – sem conseguir – furar as resistências oferecidas pelos jovens, legítimos ocupantes e protegidos por estatutos e leis. Não foi dessa vez. A solidariedade imediata da vizinhança e de movimentos sociais tirou facilmente os secundaristas do “estado de necessidade” a que as autoridades constituídas queriam ingenuamente forçar. Métodos ressuscitados do passado se defrontam com métodos de resistência para o futuro, inventados por jovens em pleno processo de politização autogerada.


A virada de silenciamento para falatório parece que atravessa classes e ideologias. A grande dificuldade de ter algum entendimento comum a respeito do que se passa no contexto geral faz com que cada um queira expressar o que mal entende e fatalmente se choca com o mal entendido diferente do outro. Frequentemente o narcisismo das pequenas diferenças - de que Freud falava – se sente chamado à briga irreconciliável e assim pode devorar velhos laços de amizade e companheirismo, “consequência psíquica” altamente indesejável entre aqueles que buscam confluência na luta.


Porém, encontramos uma palavra que pode servir para denominar o tal falatório babélico. Ficaria assim: silenciamento/pronunciamento. No Aurélio, a definição de pronunciamento é, no mínimo, curiosa, principalmente para nossos propósitos. Diz assim, na sua primeira acepção: ato ou efeito de pronunciar-se ou insurgir-se coletivamente contra o governo ou quaisquer medidas governamentais; revolta, sublevação.


Preferimos pensar deste jeito porque aponta para as “consequências psíquicas” produtivas o suficiente para superar o efeito danoso do Estado excepcionalmente traumatizador. Inventam-se assim novas formas de afirmação e luta diante da opressão - de qualquer signo que seja.


Ocupações, levantes, cercos vivos (lembro aqui o recente caso de uma das fundadoras das Mães de Praça de Maio sendo rodeada por milhares de pessoas “comuns” para evitar que fosse alcançada por juízes que representam a época em que eram consideradas “loucas”), escrachos, encontros espontâneos nas praças, produção de mídias alternativas (herdeiras das antigas “rádios livres”), comunicações operativas e informativas através de redes em tempo real, reivindicações limitadas... e outras criações para combater o bom combate.


Podemos até imaginar que este círculo virtuoso de mobilização de potências revolucionárias possa nos levar a uma daquelas primaveras que florescem mundo afora justamente nos piores momentos da repressão.


Por último quero frisar o principal: nossa difícil função reparadora jamais teria sido possível se não contássemos com um Estado que se responsabilizava pelos danos provocados pelo Terror de Estado.


Os afetados nos mostraram que qualquer tipo de reparação simbólica que seja proposta deverá ter o respaldo ativo do Estado responsabilizado. Sem essa condição, nosso trabalho clínico deixaria de ser político para transformar-se em meramente assistencial.


Não quero terminar com um “pronunciamento” mas quero sim pedir enfaticamente aos colegas agentes do governo brasileiro e aos colegas estrangeiros que façam tudo para que o Estado continue sustentando sua responsabilidade, e saiba gerar as políticas públicas que deem continuidade ao importante trabalho iniciado. É essencial para que nós, clínicos, possamos sustentar a nossa ética tão singular.


Os tempos são sombrios sim, mas como disse o general grego Leônidas quando avisado de que as flechas lançadas pelo inimigo eram tantas que obscureciam o sol: lutaremos à sombra.


Agosto de 2016.


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[1] Intervenção realizada na mesa-redonda composta com Christian Dunker, Miriam Chnaiderman, Jorge Broide e Vera Paiva em 13 de agosto de 2016 no Primeiro encontro Brasil-Reino Unido: As Clínicas do Testemunho e a violência de Estado no presente. São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Eduardo Losicer, psicanalista e analista institucional argentino-brasileiro, clínico e pesquisador independente, atua nos campos da Saúde Mental e dos Direitos Humanos.




 
 
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