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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

RELATÓRIO DO PRIMEIRO ENCONTRO BRASIL-REINO UNIDO
AS CLÍNICAS DO TESTEMUNHO E A VIOLÊNCIA DE ESTADO NO PRESENTE


MARIA CRISTINA OCARIZ
PAULA SALVIA TRINDADE
AUGUSTO STIEL NETO[1]


INTRODUÇÃO

O Primeiro encontro Brasil-Reino Unido deu-se em meio a uma turbulenta situação política no Brasil. A Constituição promulgada após o período ditatorial foi severamente ameaçada por um processo jurídico-legislativo que destituiu uma Presidente reeleita há pouco por mais de 50 milhões de votos. Mais que uma destituição, a ameaça de mudanças bruscas e retrocessos em áreas vitais para a cidadania ronda o ambiente de todas as Clínicas do Testemunho, uma iniciativa de Estado surgida na esteira de governos comprometidos com valores alicerçados nos princípios de respeito aos Direitos Humanos. Paira sobre as Clínicas a ameaça da volta a momentos de arbitrariedade e insegurança jurídica. Tais condições enfraquecem o delicado tecido social que mantém a garantia de liberdade ao cidadão, na medida que seu lugar na comunidade pode ser drasticamente alterado pelo discurso e atos do poder que se dizem legítimos, gerando traumas físicos e inseguranças psíquicas. Quando o Outro não é legitimado socialmente, o tecido psíquico da comunidade corre sérios riscos. Tais ameaças começam a ser observadas nos discursos, atos e sonhos dos pacientes acompanhados pelas Clínicas. As próprias Clínicas começam a observar, no grupo de profissionais, sutis interações que sinalizam para sensações de insegurança, de ameaça, de conflito e de impotência.


Nesse ambiente, o primeiro encontro Brasil-Reino Unido pôde canalizar os afetos e servir de meio de expressão para a urgente necessidade de transpormos para o tempo presente a luta pelo respeito aos Direitos Humanos e pelas garantias fundamentais do cidadão na democracia. A história, em seu relato do passado, elabora os traumas necessários para que a engrenagem do tempo continue em funcionamento. Diante da repetição de velhas fórmulas através de novas roupagens, devemos estar atentos para o que dessa repetição não promova mudanças, mas retrocessos. A rebeldia impede que se abafe o movimento da história através da fumaça entorpecedora do mesmo, do conhecido, do que é parado e morto. Não calar sobre o momento presente é cuidar para que o objetivo do projeto das Clínicas do Testemunho continue firme em seu intento de dar a palavra a quem foi violentamente calado em sua vontade de movimentar o mundo.


RELATÓRIO DAS ATIVIDADES

Na sexta-feira 12 de agosto de 2016, das 17h30 às 22h30, e no sábado 13 de agosto, das 9h às 17h, foi realizado no Instituto Sedes Sapientiae o Primeiro Encontro Brasil-Reino Unido congregando as Clínicas do Testemunho do Brasil dentro do escopo do projeto em parceria com o Conselho Britânico/Fundo Newton. Trata-se de um projeto que amplia o alcance das Clínicas do Testemunho ao viabilizar a criação de Centros de Estudo em Reparação Psíquica (CERP) para capacitar trabalhadores do SUS e SUAS em seu cotidiano de enfrentamento de situações de violência de Estado no presente. Realizado em parceria com instituições britânicas, no evento foi possível a cada Clínica trazer a contribuição de seu parceiro para ser compartilhada entre os colegas e com o público presente.


O evento contou com a participação da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo), Clínica do Testemunho nas Margens – ISER (Margens Clínicas, São Paulo), Clínica do Testemunho – ISER (Rio de Janeiro), Clínica do Testemunho Instituto APPOA (Rio Grande do Sul) e Clínica do Testemunho Instituto APPOA (Santa Catarina). Cada uma trouxe seu projeto dentro do âmbito dos Centros de Estudos em Reparação Psíquica (CERPs), numa parceria que visa ao intercâmbio de conhecimentos e técnicas entre Brasil e Reino Unido, e que nesse evento contou com as seguintes contribuições: Professor Stephen Frosh e Dra. Bruna Seu do Birkbeck College da Universidade de Londres, parceiros do CERP Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo); Professores Ian Parker e Erika Burman do Metropolitan Manchester University de Londres, parceiros do CERP Margens Clínicas (São Paulo); Professora Sandra Jovchelovich da London School of Economics, parceira do CERP-ISER (Rio de Janeiro); Professoras Júlia Borossa e Lúcia Conti do Centro de Psicanálise da Midlesex University de Londres, parceiras do CERP-Instituto APPOA (Rio Grande do Sul); Professora Silvia Carone Wheatley, do ICHHR (International Centre for Health and Human Rights), parceira do CERP-Instituto APPOA (Santa Catarina).


O evento teve início com as falas de Rita Sipahi, representante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Fabiana Araújo, representante do Conselho Britânico/Fundo Newton e Maria Auxiliadora Arantes, representante do Instituto Sedes Sapientiae.


Na mesa seguinte foram apresentados os projetos das Clínicas do Testemunho. Maria Cristina Ocariz, coordenadora da Clínica do Testemunho Instituto Sedes apresentou o documentário O Grito Silenciado, dirigido por Miriam Chnaiderman, que retrata o trabalho de atendimento da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae desde 2013. Com depoimentos dos participantes e dos profissionais da Clínica, o filme marca o valor do testemunho como registro e ressignificação de memórias e histórias. Pedro Lagatta, coordenador da Clínica do Testemunho nas Margens anunciou o início, neste ano, dos trabalhos no projeto Clínicas do Testemunho identificando as marcas psicológicas da ditadura nas periferias da cidade, onde o grupo trabalhará priorizando os bairros de Perus e Heliópolis. Tania Kolker, coordenadora do projeto ISER-Rio de Janeiro, fez um relato do trabalho desenvolvido por essa clínica desde 2013, salientando as mudanças ocorridas nos últimos meses no conturbado ambiente sócio-político nacional e os reflexos presentes no trabalho com os afetados pela violência de Estado. Foi salientada também a procura da Clínica por ex-militares, que buscam o reconhecimento de seu trabalho e espaço para relatar a perseguição que viveram na época da ditadura. Otavio Souza Nunes, da Clínica do Testemunho do Instituto APPOA-RS, trouxe os atendimentos que aconteceram na Clínica em Porto Alegre, os efeitos no território e os insumos produzidos a partir de um trabalho que continua. Marilena Deschamps, representante do Instituto APPOA de Santa Catarina, relatou o trabalho pioneiro em sua região e o caso de um paciente que serviu de exemplo ao evidenciar o cuidado e a persistência necessários no trabalho de proporcionar um espaço de fala a quem foi sistematicamente silenciado por anos.


A apresentação seguinte teve como título Avaliação das necessidades dos familiares de pessoas desaparecidas durante a ditadura militar, caso vala de Perus. Márcia Hattori, representante do Grupo de trabalho de Perus (GTP), apresentou o caso das ossadas encontradas na vala clandestina do cemitério Dom Bosco no Bairro de Perus, em 1990, trazendo a história da relação do Estado brasileiro com esse material através dos anos. Em agosto de 2014, com a constituição do GTP, um esforço conjunto de profissionais de várias áreas com o apoio da UNIFESP e da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos reiniciam os trabalhos de busca e identificação das ossadas de corpos de pessoas desaparecidas durante o período ditatorial, quando a estratégia repressiva do Estado foi responsável por atos de terror que vitimaram milhares de pessoas. A equipe da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae trabalha desde janeiro de 2015 com o GTP, em sessões grupais semanais para oferecer apoio psicossocial e espaço para elaborar as angústias. No caso da vala de Perus, a ocultação clandestina de cadáveres perpetrada pelo Estado exige um trabalho direto com os familiares dos desaparecidos, não só na busca material de dados que colaborem na identificação, mas também no resgate da humanidade situada além dos ossos ou do DNA, para que não se repita o desrespeito cometido pelo Estado ao desumanizar quem por ele era arbitrariamente designado como “inimigo”. Seguindo o mesmo tema, Marcelo Queiroz, representante do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, expôs em seguida o trabalho realizado pela Cruz Vermelha junto aos familiares de pessoas desaparecidas ao redor do mundo.


Na mesa seguinte foram apresentados os projetos dos Centros de Estudos em Reparação Psíquica: as Clínicas do Testemunho e a violência de Estado no presente. Augusto Stiel Neto, representante do CERP Instituto Sedes, São Paulo, fez um relato sobre os cursos de capacitação a serem oferecidos a profissionais da rede pública de saúde, assistência social e educação nas regiões norte e leste da capital, seguindo os cursos de capacitação da Clínica do Testemunho nas mesmas regiões de modo a potencializar as redes grupais de apoio constituídas, objetivo maior do projeto. Anna Turiani, representante do CERP-Margens Clínicas São Paulo, descreveu o trabalho que iniciou em agosto, com cursos de capacitação oferecidos a profissionais da rede pública e agentes sociais na região sul da cidade. Olívia Françoso, representante do CERP-ISER Rio de Janeiro, apresentou dados da realidade sócio-econômica da cidade e da influência desta na política pública de segurança; como exemplo, a desapropriação de 77 mil pessoas, desalojadas e mantidas sob controle para a realização dos Jogos Olímpicos. Jaime Betts, representante do CERP Instituto APPOA Porto Alegre, relatou os efeitos que a capacitação de profissionais está trazendo para a rede pública de saúde do Rio Grande do Sul. Dario Negreiros, representante do CERP Instituto APPOA Florianópolis, relatou a grande e surpreendente procura que a proposta de cursos de capacitação encontrou junto aos profissionais da rede pública de saúde em Santa Catarina, abrindo a possibilidade de expansão da proposta a outras cidades do estado.


No sábado, 13 de agosto, a mesa Contribuição dos parceiros britânicos trouxe as apresentações dos parceiros ingleses de cada instituição. Stephen Frosh e Bruna Seu, parceiros do CERP Instituto Sedes Sapientiae, haviam comparecido a um evento público em junho no âmbito da parceira. Foi então apresentado um vídeo dessa colaboração, em trabalhos que tratavam do tema da rememoração, do testemunho e do perdão em contexto de violência de Estado. Ian Parker e Erika Burman, parceiros do CERP-ISER Margens Clínicas, colaboraram com um vídeo no qual Ian Parker faz um relato que trabalha sobre as marcas da subjetividade no mundo contemporâneo. Sandra Jovchelovich, parceira do CERP-ISER Rio de Janeiro falou sobre seu trabalho de psicologia social desenvolvido há anos nas comunidades da cidade do Rio de Janeiro e da importância da presença no território para a construção de políticas eficazes de enfrentamento da violência de Estado no país. Julia Borossa e Lucia Conti, parceiras do CERP Instituto APPOA Porto Alegre, relataram suas experiências nas visitas a campo que realizaram, especialmente em um local onde a barreira da língua não foi impedimento para que uma relação de intensa troca subjetiva pudesse se realizar, evidenciando que a presença humana qualificada pode, em um ato de palavra, conter a expressão corporal da violência. Por último, Silvia Carone Whateley, parceira do CERP-Instituto APPOA Florianópolis, falou de uma perspectiva sócio-jurídica da violência de Estado e suas implicações sobre o humano em seus Direitos inalienáveis.


Após o almoço, a mesa As consequências psíquicas da violência de Estado na ditadura civil-militar aos tempos presentes iniciou com a apresentação do curta-metragem O oco da fala, dirigido por Miriam Chnaiderman, fruto do trabalho de três anos da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae. Nele os depoimentos dos participantes fazem um diálogo com a cidade de São Paulo, quando as marcas do passado eram evocadas através da materialidade urbana, palco que ainda serve de testemunha das violências cometidas atualmente. Em seguida Christian Dunker, psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica da USP, falou da situação da barragem de Belo Monte, assim como do trabalho que acompanha com as Margens Clínicas, relatando situações de catástrofes e pensando o processo das narrativas desses sofrimentos, que exige recuperar o perdido em um ato de simbolização. Miriam Chnaiderman, psicanalista, professora do Departamento Psicanálise do Instituto Sedes e diretora do filme O Oco da Fala, mencionou que o disparador do filme foi a observação de que nos testemunhos do ex-militantes, a cidade evocava as marcas e lembranças da ditadura. Em seguida, Eduardo Losicer, psicanalista, membro do Núcleo de Atendimento às Vítimas da Ditadura no Rio de Janeiro, mencionou a presença da violência do Estado na política, as graves ameaças e o assujeitamento do indivíduo ao Estado, trazendo efeitos psíquicos e sociais de silenciamento, medo, dissociação e censura. Jorge Broide, psicanalista, professor do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e Saúde pública da PUC São Paulo, trouxe sua grande experiência com trabalho em grupos na periferia, nas ruas, favelas, enfrentando situações-limite de vida e morte. Lembrou a necessidade de o analista ter um espaço para falar do sofrimento e da morte, algo sempre – e quase materialmente - presente e que precisa ser levado em conta. Vera Paiva, Professora do Departamento de Psicologia Social da USP trouxe contribuições que provocaram o debate e a articulação entre as falas dos palestrantes e do público presente, mencionando o percurso histórico da luta dos familiares de desaparecidos políticos e os espaços por onde se militou em prol da democracia e dos Direitos Humanos no país.


O evento culminou com o debate com o público presente e com uma reunião interna das equipes das Clínicas do Testemunho e dos CERP, com a finalidade de discutir o momento político atual e os obstáculos que o Ministério da Justiça está colocando para nosso Projeto.


No dia 31 de agosto, o Ministro de Justiça Alexandre de Moraes exonerou alguns Conselheiros da Comissão de Anistia que estiveram sempre zelando pelos princípios dos Direitos Humanos e pela reparação dos danos cometidos pelo Estado autoritário. Esta é uma intervenção inédita na Comissão de Anistia, criada em 2002 pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Pela primeira vez se efetivou uma descontinuidade de sua composição histórica.


Para maiores informações ver, neste Boletim, a Nota de repúdio ao desmonte da Comissão de Anistia, situação que coloca em risco a continuidade das Clínicas do Testemunho.


São Paulo, 05 de setembro de 2016


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[1] Integrantes da Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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