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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

VIOLÊNCIA CONTRA O PENSAMENTO, SOFRIMENTO NA DEMOCRACIA


MARIA BEATRIZ COSTA CARVALHO VANNUCHI [1]


Em 3 e 4 de junho de 2016 tive o prazer de participar do colóquio Violence contre la pensée soufrence dans la démocratie[2] , realizado em Lyon, na França, e organizado pelo Départament Formation em Situation Profissionnelle, Institut de Psicologie, Université Lumière, Lyon 2, apresentando a conferência La clinique du témoignage, une clinique du lien social – A clínica do testemunho, uma clínica do laço social.


O seminário teve como eixo temático o paradoxo do laço social democrático e seus efeitos de produção de subjetividade. Por um lado, a autorização à palavra e ao pensamento de cada um e de todos constitui a democracia e a condição do sujeito na contemporaneidade, sendo justamente no exercício dessa liberdade que se desenrola a atividade ideativa com suas propriedades de atribuição de sentido e realidade, nas quais nos reconhecemos como humanos. Por outro, essa mesma democracia é composta de organizações identitárias que implicam em cisões e projeções, nos grupos, famílias, partidos, igrejas e Estados, coibindo o pensamento e, sob determinadas circunstâncias, produzindo efeitos de anulação da alteridade nas práticas de violência.


Os organizadores do simpósio programaram um encontro em que essas questões entrassem em discussão com as dimensões clínica, histórica e social, transitando por distintos campos epistemológicos. O colóquio abrigou densas partilhas entre psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, historiadores e sociólogos, em que os fenômenos de violência e suas consequências foram colocados em perspectiva.


Os trabalhos trataram das violências cotidianas nas instituições de saúde e educação, dos conflitos entre a laicidade e os fundamentalismos religiosos, das condições dos imigrantes, das práticas de opressão de gênero.


Tivemos também a interessante presença de pesquisadores africanos, de países que, embora tenham se constituído enquanto tal pela colonização francesa, muitas vezes não reconhecem identidades culturais e nem uma língua comum. As práticas institucionais e a clínica se deparam com a dificuldade no compartilhamento de referências pelas populações desses países, para além daquilo que recai, muitas vezes como sombra, a partir do espelho do colonizador.


A conferência La clinique du témoignage, une clinique du lien social - ou melhor, A clínica do testemunho, uma clínica do laço social[3], uma apresentação sobre a Clínica do Testemunho dos Projetos Terapêuticos, realizada entre 2013 e 2015 com pessoas e familiares que sofreram tortura durante a ditadura militar no Brasil, teve lugar em meio a esse interessante mosaico.


Justamente pela diversidade de questões ali discutidas, escolhi aqui recortar um ponto de ressonância entre esta conferência e as conferências Le témoin survivant ou la survivance à la haine - O testemunho sobrevivente ou a sobrevivência do ódio -, do psicanalista Jean François Chiataretto[4], e Devenir du sujet dans une société en crise - Devir do sujeito numa sociedade em crise -, do historiador argelino Daho Djerbal Nagd[5].[6]


Chiataretto discorreu sobre a função do “testemunho interno”, em decorrência da presença em si-mesma de uma figura de representação do outro em condição de semelhante, suporte da condição de presença da alteridade em si. Seria nesse incessante trabalho de busca de sentido que se sustentaria a condição de sujeito dividido e também de sobrevivência psíquica em situações de desumanização, como nos escritos de Primo Levi ou de Janine Altounian.


Djerbal, por sua vez, falou do importante trabalho de construção das narrativas diante das sucessivas catástrofes vividas pela população argelina desde a guerra de independência, passando pelo Estado religioso e agora na “ditadura light” das forças políticas ligadas à primavera árabe. Localizando as diferenças entre os discursos da história oficial, a história da nação e a história do povo, discorreu sobre a construção da “história do povo”, aquela que teria a qualidade de se fazer lembrança e referência, presente nas narrativas orais, nos contos, nos mitos, nas lendas, na poesia e na música, criando elos entre os sujeitos e na composição de sociedade.


Os trabalhos da Clínica do Testemunho, aliados a outras iniciativas de construção de memória do terrorismo de Estado na ditadura entre 1964 e 1985, se propõem como recursos de reparação, pois permitem a projeção da violência em figurações e palavras, a fim de fazer as traduções e transformações de pelo menos parte do inominável, do inimaginável, do indizível, do horror, em material pensável, subjetivado e compartilhado.


Porém, esse caminho é marcado pelo encontro com os efeitos do pior, encontro que sempre comporta o estranhamente familiar (unheimlich). Na suspensão do silêncio, na abertura às palavras, as violências figuradas estampam os processos traumáticos de invasão da língua do torturador no torturado, que precipitam a compressão da subjetividade numa colagem sinistra.


Quando se dá a identificação maciça com a língua do carrasco, pela desumanização ou pelos mandatos de morte, o espaço necessário ao “testemunho interno” sofre um estreitamento, deixando sequela na irrupção da angústia, nos fenômenos de despersonalização, nas afecções psicossomáticas.


O endereçamento do trabalho do testemunho à comunidade humana apela também para um trabalho de desconstrução e desidentificação com as fraturas da violência no pacto social. E neste ponto a instituição da clínica encontra suas bordas. O conhecimento das práticas de terrorismo de Estado e seus efeitos de destituição subjetiva reenviam à sociedade e suas instituições uma convocação a fazer a sua parte na tarefa de processamento.


Na crise política do Brasil de hoje, uma das interpretações possíveis é a de que estamos sofrendo os efeitos da falta de julgamento das práticas de tortura, de assassinatos, de desaparecimentos forçados sob a tutela do Estado e dos efeitos de conivência de grande parte da sociedade que, sob um pacto denegativo, reenvia a língua do torturador para a cena social. Podemos reconhecer na instrumentalização da figura jurídica da “delação premiada”, na espetacularização das condutas policiais, acompanhados do discurso jurídico midiático do bode expiatório, o custo dessa “omissão”, na repetição das palavras de ódio e de cinismo nas redes sociais, nas sessões do parlamento, nas ruas e nas mídias televisivas.


Essa nova versão de golpe de Estado tem o disfarce dos ritos legais, aparecendo como uma farsa, um sintoma social perverso, numa sociedade que banaliza os crimes dos torturadores e tampouco assume a sua responsabilidade na construção de um laço social mais civilizado.


A destituição do valor da palavra e da lei, que sustenta alguns interditos básicos da organização social democrática, fomenta o discurso da violência, o que comprime os laços sociais, atacando a liberdade da palavra e do pensamento.



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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora do Núcleo de Atendimento de Famílias no Projetos Terapêuticos e membro da equipe clínica da Clínica do Testemunho no Instituto Projetos Terapêuticos em parceria com a Comissão da Anistia (2013 a 2015), membro integrante da Rede Latino Americana de reparação psíquica.
[2] https://democratie-psy.sciencesconf.org/
[3] Aproveito esse breve relato para agradecer o convite de Georges Gaillard, a ajuda preciosa de Ella Schlesinger e de André Luiz de Souza pela interlocução e apoio linguístico e Alain Noel Henri pela generosa e inteligente discussão da minha conferência. Tanto a conferência quanto sua discussão estão disponíveis no site do colóquio.
[4] Jean-François Chiantaretto, psicólogo clínico e psicanalista, professor de psicopatologia na l’Université Paris Sorbonne Paris Cité 13.
[5] Daho Djerbal Nagd, professor de História Contemporânea, Université d’Alger 2, Diretor da Revista Nadq.
[6] Ambas as conferências estão acessíveis no site do colóquio.




 
 
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