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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    39 Setembro 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

JUNHO DE 2016 NO ESPAÇO INQUIETAÇÕES SESSÕES PSICANALÍTICAS POR SKYPE


MARA CAFFÉ [1]



Em março deste ano, fui convidada pelo grupo Espaço de trabalho: Inquietações da Clínica Cotidiana a apresentar uma questão no encontro que seria realizado no mês de junho. Sem demora, passei em revista minhas inquietações clínicas, mas elas vinham e desapareciam. Na realidade, nenhuma inquietação me parecia tão significativa que merecesse um destaque... depois, pensando bem, elas pareciam até mesmo tolas... A resistência em partilhar a minha clínica foi se mostrando, até que um nada se colocou à frente. Não sei o que falar converteu-se rapidamente em não tenho o que falar. A partir daí, percebi-me às voltas com um certo radar de captura de inquietações clínicas, e desde então estive em transferência de trabalho com o grupo das Inquietações. Portanto, para mim, o encontro do dia 16 de junho começou em março! Isto me fez pensar sobre a função deste grupo no Departamento - fomentar e manter a troca clínica entre os membros/pares, na estrutura de uma conversa horizontal. Temos, então, a cada vez, o desafio de uma experiência política complexa. Afinal, participar em fóruns ampliados do Departamento nos exige no reconhecimento e na interpelação constantes de nossas posições e lugares, uns frente aos outros, e os grupos específicos entre si, bem como a capacidade de trabalharmos juntos. Além disso, tais encontros constituem movimentos em nossa transferência institucional com a própria Psicanálise e com o seu campo maior, reafirmando e/ou modificando os nossos posicionamentos característicos. Não é de estranhar que estas interlocuções mobilizem desejos e resistências, e é mesmo disto que elas são feitas, nos melhores e nos piores casos.

Voltando ao radar, dentre as inquietações clínicas ressurgidas, uma se destacou mais recentemente, logo depois de uma sessão em que a paciente solicitou o prosseguimento da análise por Skype. Ela está de mudança para a Europa, sozinha, a trabalho, sem previsão de volta. Tem uma história de vida bastante difícil e um processo analítico fecundo, iniciado há vários anos. Aceitei o pedido, certa de que o desgarramento da análise poderia colocá-la numa situação delicada. Logo que ela saiu da sala, percebi que esta seria a quarta situação clínica em que utilizo os meios virtuais. Diante do número quatro e no radar das Inquietações, isto me pareceu demais, ainda que tenha pensado bem sobre cada uma das situações.

Lembrei-me, então, surpresa, que em 2007 apresentei no espaço Inquietações o caso de uma paciente cujo prosseguimento na análise se deu no atendimento por telefone, combinado com algumas sessões presenciais de tempos em tempos. Em decorrência, no mesmo ano, fui chamada a participar de um dos Debates da revista Percurso, junto com Paulina Rocha e Mario Eduardo da Costa Pereira, cujo tema era Psicanálise e internet: uma combinação possível?. Ora, ora! Decidi, convicta, o meu tema para este encontro! Assim, nove anos depois, trouxe o mesmo assunto para a atividade das Inquietações: as sessões analíticas fora do setting presencial convencional.

Desta vez, reuni fragmentos de quatro situações clínicas. Achei interessante apresentar um mosaico de situações que revelasse as diferentes tensões, dificuldades, possibilidades e limites do veículo virtual nas análises. Não indicarei aqui, em razão do sigilo, os dados singulares das histórias clínicas, cujo debate foi extremamente rico e inspirador para mim. Mencionarei as questões gerais e exemplos pontuais formulados para o encontro:

- nos quatro casos clínicos referidos, as sessões por Skype só aconteceram depois de longos anos de trabalho presencial. Não me vejo disposta nem à vontade para iniciar uma análise por Skype. Em dois casos clínicos, as sessões por Skype não são sistemáticas e pré-fixadas, nem mesmo definem o veículo principal da análise. Já nos outros dois casos, o veículo virtual é praticamente exclusivo, e atende a uma circunstância emergencial das pessoas. Tais condições implicam resultados muito distintos quanto ao uso e aos efeitos do Skype.

- durante as sessões por Skype, costumo manter uma folha ao lado do computador, onde escrevo algumas notas. Não faço isso de modo algum numa sessão presencial. Tenho a impressão de que a escrita me dá um certo apoio nas sessões por Skype, embora não saiba de que apoio se trata. Observo apenas que, em minha história, a escrita sempre ocupou um lugar importante e muito organizador. Outro dia reparei nas muitas folhas soltas destes atendimentos que mantenho guardadas, sem consultá-las. Por que eu escrevo?

- na esteira desta pergunta, lembrei de duas situações muito inusitadas, em que o setting convencional da sala de atendimento entre quatro paredes se esvaiu por completo. Foram situações excepcionais, que não definem a minha rotina de trabalho. Numa delas, na falta imprevista de uma sala reservada, o paciente ligou-me de um parque, sentado num banco, deixando-me ver uma imensa área verde atrás de si, e a presença de pessoas esparsas, ao longe. Uma brincadeira entre crianças ressoava ao fundo. Em certo momento, o paciente mudou-se para um outro banco próximo, mais à sombra, dizendo querer fugir do sol que estava muito forte. Curioso: ele me relatava o que estava fazendo, ainda que eu o estivesse assistindo - estou agora levantando... estou indo para um outro banco, agora estou aqui me sentando, etc. Ainda que as condições mínimas de discrição ou reserva estivessem garantidas, surpreendeu-me que ele seguisse falando sem aparentar nenhum incômodo por estar num lugar público. O cenário da sessão foi mais perturbador para mim do que para ele. Em outro caso, pouco antes de uma sessão, a paciente foi surpreendida pela chegada inesperada da neta, uma vez que a babá ficara doente e a criança precisava do cuidado dos avós. Enquanto o avô cuidava do bebê, a paciente foi para o carro e me ligou de lá, lugar que lhe pareceu mais tranquilo e longe das interferências domésticas. Vez por outra a câmera do Skype transmitia alguma imagem de uma rua bastante tranquila. Aqui, também, surpreendi-me com a naturalidade da paciente frente às acomodações incomuns para a sessão. Enquanto isto, eu tomo notas...

- em sessões presenciais, no consultório, os silêncios – maiores ou menores - são frequentes, e às vezes prenhes de sentido. Eles podem guardar ou enfatizar um dito, garantir espaços de reserva importantes para cada sujeito da análise, como a possibilidade de pensamentos não compartilhados. Observo que os silêncios são bem mais raros nas sessões por Skype. Como se a manutenção da voz e da imagem, vivas, viessem em resposta ao risco da rarefação do vínculo. De fato, em algumas ocasiões, a conexão do Skype cai, sendo necessário refazer a ligação, o que pode levar um minuto ou pouco mais. Neste curto espaço de tempo, ao religar o computador, em certos casos, passo rapidamente por algumas janelas onde vejo estampada uma notícia, o golpe contra Dilma, as manifestações de rua, a última moda em matéria de botas... enfim, presenças do mundo que o próprio suporte virtual oferece.

– em tais condições, o dispositivo psicanalítico clássico não tem lugar. A colocação no divã, o ambiente sem muitos estímulos sensoriais externos, típico de uma sessão presencial, não são possíveis, o que indispõe, igualmente, às condições de uma escuta flutuante adequada ao analista. Como deixar-se flutuar em conexões que podem se desfazer a qualquer momento? Por exemplo, durante a sessão, fico atenta à qualidade da imagem, reparando se ela ganha distorções exageradas ou se congela, o que geralmente preanuncia uma queda da conexão. Em outros momentos, retirando a imagem para termos uma conexão melhor, preocupo-me em dar sinais de voz mais frequentes, atestando a minha presença. Como pode se constituir, neste ambiente, uma experiência regressiva transferencial, elemento intrínseco de um processo analítico? Trata-se, nestes casos, de um processo de análise ou de um acompanhamento?

No conjunto destes problemas, ocorreu-me uma contribuição valiosa de André Green sobre as variações do enquadre analítico: “Propus distinguir duas partes do enquadre: a matriz ativa, composta pela associação livre do paciente, da atenção e da escuta flutuantes, marcadas pela neutralidade benevolente do analista, formando um par dialógico onde se enraíza a análise e, parte dois, o estojo, constituído pelo número e duração das sessões, a periodicidade dos encontros, as modalidades de pagamento, etc. A matriz ativa é a joia que o estojo contém”. [2]

O autor refletiu sobre as dificuldades no estabelecimento do enquadre freudiano clássico com pacientes não-neuróticos, que não suportam, por exemplo, o uso do divã, várias sessões semanais ou até mesmo a regra da associação livre. Nestes casos, segundo Green, o que pode sustentar o trabalho é o enquadre interno do analista, ou seja, o “... enquadre que ele internalizou no decorrer de sua própria análise... Essa noção de enquadre interno é uma aquisição essencial da análise de formação que deve, portanto, zelar por um grande rigor, a fim de que o processo de internalização seja realizado”. [3] Green afirma, em entrevista concedida a Fernando Urribarri, em janeiro de 2012: “O enquadre interno é uma figura do pensamento clínico para dar conta da necessária criação, pelo analista, de um espaço interno, intermédio, no qual sustenta a qualidade analítica da comunicação quando o paciente não tem condições de reconhecer a sua dimensão metafórica [...] Devido às limitações e ataques do paciente contra o seu próprio funcionamento e contra o tratamento, o analista deve investir a relação enquanto analítica, e não apenas interpessoal, postulando e sustentando a virtualidade do processo analítico (aqui, não pude deixar de sorrir, pois o sentido de Green para o termo virtualidade não é idêntico ao nosso, embora se ajustem perfeitamente!).” O autor conclui: “Quanto menos o enquadre clássico funciona, mais sou levado a pensar que a unidade do campo psicanalítico não pode senão localizar-se no próprio analista, no seu pensamento clínico.” [4] Neste caso, o estojo do processo é o próprio analista.

Tenho a impressão de que o contato por Skype (com ou sem imagem) dificulta o efeito metaforizante que pode ser obtido no enquadre analítico clássico, uma vez que acentua o plano da relação a dois, da relação interpessoal, e não o plano da terceiridade simbólica propiciada, por exemplo, pelo uso do divã na chamada cura-tipo. Aqui, a noção de enquadre interno do analista talvez possa nos ajudar a pensar uma metapsicologia a estas novas condições transferenciais de trabalho.

O DEBATE


A participação de todos e a condução impecável do trabalho pelos integrantes do grupo Espaço de trabalho, especialmente o Tiago Matheus na abertura e no fechamento do encontro, nos proporcionou um debate riquíssimo! Recebi dos amigos, alunos e demais colegas do Departamento uma escuta amiga, inteligente, perspicaz e muito generosa. Seguiram-se diversos depoimentos sobre como cada um pensa e realiza sessões através das mídias virtuais. Fiquei impressionada com os modos muito diferentes de realizar este trabalho. Por exemplo, no atendimento por Skype ou Facetime, há colegas que não incluem o recurso à imagem, utilizando apenas o som. As justificativas variaram desde o fato de se sentirem mais à vontade até o entendimento de que a ausência da imagem reproduz melhor o ambiente típico de uma sessão de análise. Em meu caso, admito frequentemente a imagem, o que até parece “recuperar” de algum modo o estatuto do corpo nesta nova experiência transferencial. Mas não sei ao certo o que pensar; na realidade, costumo seguir a tendência mostrada pelo paciente quanto a termos ou não a imagem. Prosseguindo, há quem trabalhe com a câmera ligada, estando o paciente posicionado de modo a não ver o analista, embora o analista possa vê-lo. Aqui, novamente, a intenção talvez seja aproximar-se do modelo objetivo dos atendimentos presenciais, procurando condições análogas à ocupação do divã. Será que isto é possível? Há situações em que o próprio paciente prefere fazer a sessão deitado, afirmando não conseguir falar de outro modo com o analista.

No caso de atendimentos semanais, alguns colegas determinam que as sessões por Skype ou Facetime sejam feitas sempre na mesma hora e no mesmo lugar (privado, e nunca público). Outros, como eu, toleram sessões que se dão excepcionalmente em lugar público, ainda que em condições de reserva, e não fazem questão, também, de que o paciente ocupe um lugar invariável para as sessões. Alguns colegas não usam o computador, preferindo o telefone, dizendo que este lhes parece o veículo mais apropriado para as sessões analíticas não presenciais, e estaria menos sujeito às desconexões típicas da internet.

A meu ver, as questões sobre incluir ou não a imagem na comunicação virtual, o pedido do paciente para falar deitado, assim como a pergunta sobre quem liga e desliga no Skype / Facetime / Whatsapp indicam, dentre outras coisas, uma preocupação e uma lida com a suspensão da presença concreta do corpo no âmbito da análise. Como isto afeta o processo analítico? Como fica a transferência sem o suporte presencial do corpo do analista e do paciente?

Prosseguindo, há analistas que não iniciam uma análise por meios virtuais, utilizando o recurso apenas no caso de transferências solidamente estabelecidas, diferentemente de outros, que aceitam inaugurar uma análise pela internet. Alguns colegas presentes no encontro contaram de suas próprias análises pessoais realizadas por Skype, observando o conforto de poderem procurar um analista fora da cidade de São Paulo, portanto longe da própria comunidade, sendo possível realizar suas escolhas transferenciais a partir de um contingente maior de psicanalistas, o que só se tornou possível com o advento da internet.

Os depoimentos tão distintos acerca dos trabalhos pela internet me fizeram pensar que não há protocolos estabelecidos neste campo, estando, os analistas, numa intensa experimentação clínica, diante de situações inusitadas que desafiam o dispositivo psicanalítico, demarcando novas fronteiras ao analisável. Os menores movimentos são colocados em questão como, por exemplo, uma vez que o paciente não chega ao consultório do analista, quem liga e desliga nas sessões virtuais? Pensamos, também, sobre as grandes diferenças entre os meios de comunicação atuais e aqueles da época de Freud, e no efeito dos avanços tecnológicos nas produções teórico-clínicas contemporâneas. Por outro lado, observamos que a análise inaugural de Freud com Fliess se deu a partir de suas correspondências epistolares, o que implicava já uma condição virtual aos encontros. Percebemos que as novas questões não são assim tão novas, e o que nos parece velho não é assim tão velho. As ideias de Green sobre o enquadre interno nos ajudaram bastante, fornecendo-nos um recurso versátil para pensarmos situações que não se ajustam ao enquadre clínico clássico. Terminamos o debate tarde da noite. Demorei a dormir, às voltas com o turbilhão de ideias disparadas na conversa. Nos dias seguintes, recebi alguns comentários dos alunos e colegas, e até mesmo um e-mail com novas questões, divertindo-me com o fato de que nossa discussão ganhou também a mídia virtual! Logo depois, a equipe do Boletim me propôs que eu escrevesse sobre o encontro, o que me produziu um certo déjà vu. Há nove anos atrás, a Percurso, e agora o Boletim: volto à escrita! O Boletim constitui uma outra oportunidade na convivência institucional: organizar e comunicar uma experiência para o conjunto maior do Departamento, ultrapassando o âmbito estrito em que ela se deu. Além disso, dispõe o espaço para textos diversos, autorais, com temáticas distintas, abrindo a janela para os acontecimentos de fora do Departamento. Bem, mas o quê e como escrever sobre a minha experiência? “Forma livre, espaço aberto”, disse a Sílvia Nogueira. De modo sucinto e muito eficaz, esta frase convidativa parece dizer muito sobre o que é o Boletim. A experiência aqui rememorada, na marca dos 9 anos, me fez pensar sobre o nosso Departamento de Psicanálise, lugar fundamental para a sustentação do trabalho analítico. Trata-se de uma sustentação institucional, de um fazer e pensar juntos a psicanálise, o quarto pé da formação contínua.


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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise.
[2] Green, A. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: SBPSP, 2008, p. 54.
[3] Idem, ibidem, p. 59.
[4] sig.org.br/wp-content/uploads/2016/04/Num_2_Entrevista.pdf

 




 
 
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