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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    40 Novembro 2016  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

ENTRETANTOS 2, MESA 4A


CRISTINA HERRERA[1]


Dois trabalhos preciosos, relevantes que, a partir de recortes diferentes, abordam importantes reflexões sobre os efeitos psíquicos do traumático, quando na vida social se quebram os laços simbólicos que a sustentam, frente à impunidade do poder do Estado. Quando já não há mais instâncias de lei às quais recorrer e os espaços de socialização se desarticulam como efeito de uma violência sem limites. Quando as referências que estruturam as filiações se afrouxam e o processo de transmissão entre as gerações está atravessado por fraturas narrativas ou buracos de sentido, produtos de lutos não resolvidos e histórias silenciadas.

Maria Auxiliadora Arantes faz um relato comovente e profundo sobre a experiência da clandestinidade durante a ditadura civil-militar que vigorou no Brasil a partir de 1964. Um relato sobre a singularidade desta experiência, que envolve dois tempos, na própria construção de um lugar estratégico de sobrevivência: entre “cair na clandestinidade” e “tornar-se clandestino”. Entre estes dois tempos, impasses, angústias, contradições, alianças solidárias... O custo psíquico e as marcas decorrentes de permanecer clandestino durante anos marcaram não só esta geração, mas a de filhos e netos que, após 50 anos do golpe, aos poucos revelam as histórias da vida junto aos pais.

Em uma metáfora sensível, comovente, ao final do trabalho, Dodora propõe nomear o sentimento – produto desta experiência – daqueles que resistiram, na clandestinidade, ao horror, à violência e à morte:

...uma planta que pudesse descrever o sentimento dos que, durante longo tempo lutaram solitários consigo mesmos, para não sucumbir, em ilhas onde um outro era apenas uma esmaecida referência. A planta que escolhi é o cactus. Por fora, agudos espinhos a protegem. Dentro do corpo, os nutrientes líquidos preservados permitem a sobrevivência em terreno árido. Sempre os cactus produzem flores. Raras e duradouras.

Tatiana Inglez-Mazzarella dialoga, a partir do trabalho do analista, com os efeitos de silenciamento diante da dor e do horror vividos frente a situações de catástrofes sociais - como a ditadura em nosso país - que se sustentaram até hoje, com a manutenção do esquecimento e do desmentido. Faz uma cuidadosa e rigorosa reflexão sobre aquilo que nomeou como histórias recobridoras. Narrativas sociais, familiares e individuais, construídas como modos de defesa, frente aos efeitos desta forma de violência traumática. Histórias estas feitas de palavras, histórias “tagarelas”, mas silenciadas justamente na possibilidade de expressar sua dor:

se para esquecer, num primeiro momento, é preciso lembrar, o não poder esquecer faz das histórias recobridoras um imperativo. (...) Faltam-lhes bordas internas e externas. As bordas externas responsáveis por dar um contorno e - aqui o trabalho coletivo é imprescindível - as bordas internas, como abertura de espaços que permitem novas articulações...

Efeitos do desmentido social e da violência traumática, que continuam até hoje afetando profundamente a vida social e familiar dos seus membros. Vidas marcadas pelos silêncios que falam, pelas penumbras do horror das histórias mal contadas.

Tatiana trabalha sobre o estatuto de Verdade das histórias recobridoras, como memorial - recusa e testemunha da perda - e sobre a importância de retomar essas História/histórias, no âmbito de uma política de memória, de memória coletiva, testemunho, que possibilite o trabalho de elaboração, dando apoio às diferentes versões, construções e reconstruções daquilo que foi vivido. Também retoma seu fio de pensamento a partir de autores que trabalham esta temática no âmbito da Segunda Guerra Mundial: A Alemanha silenciada em sua vergonha e tristeza proveniente das consequências vividas sob o regime nazista...

Fragmentos do inimaginável, que perambulam se tornando traços da memória que estão sempre presentes, não sendo possível esquecê-los. Fragmentos de uma experiência traumática que, para ser reconhecida na sua dor, precisará ser integrada em uma rede narrativa que a legitime no discurso/campo social.



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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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