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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    40 Novembro 2016  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

ANTONIO BRASILEIRO


SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [1]

  Vez por outra me lembro de duas declarações feitas por Chico Buarque acerca de seus processos compositivos: que funcionam melhor por encomenda; que eventualmente  se tramam de palavras aleatoriamente encontradas em estado dicionário. Assim se deu na lista de nomes apanhados para o poema Passaredo[2], originado em 1975 da música de Francis Hime e construído da necessidade de tomar cuidado com o homem que vinha aí[3]...


Este escrito não advém propriamente de uma encomenda e eu tampouco saberia identificar a algum daqueles passarinhos a figura que Antonio Lancetti desenhou, em resposta ao traço aleatório que dispus no papel quando, há tanto tempo atrás, meu então supervisor ensinou-me a jogar com os rabiscos de Winnicott. Estava em curso minha especialização em análise institucional e já não sei dizer se foi Isabel Marazina ou Sérgio Maida quem me passou o telefone do Lancetti, bem lembrado diante da demanda por um supervisor de minha clínica com crianças e do meu trabalho institucional na educação. Frequentei por aqueles anos o consultório da rua Lisboa, por onde também transitaram minhas primeiras letras pra falar profissionalmente em público e um longo e bem sucedido atendimento na clínica da psicose.

Minha paciente desenhava e era afinal por sua forma de fazê-lo que pudemos distinguir a eclosão de uma esquizofrenia de algum eventual déficit intelectual. À beira de concluí-lo, Antonio endereçou-me uma pergunta teórica e, para surpresa dele, eu hesitei. Então me escutou comentar que, diante dela, me acontecia emburrecer. E, entre calmo e ligeiro, disparou: "Ainda bem; você também é burra - se fosse só inteligente, não poderia acompanhá-la"... Gracias, señor, gracias a la vida - pois eu era suficientemente jovem pra guardar essa intervenção.

 

Como desdobrar, de si, necessárias plasticidades à disposição de um trabalho que alcance o outro? Tal foi o legado que também eu recebi desse querido colega, recentemente homenageado no espaço Parlapatões por ocasião do lançamento da série Psicanalistas que falam em seu primeiro episódio, Lancetti brasileiro (clique aqui para assistir: http://www.psisquefalam.com/lancetti-brasileiro ).


Realizado por Heidi Tabacof, Psicanalistas que falam é um projeto que aposta na circulação da psicanálise para além do divã, por meio do audiovisual. Seus episódios revelam figuras-chave da psicanálise no Brasil, que pensam a clínica no campo da transformação social.


Assistimos os 80 minutos - editados por Matias Lancetti, de horas de gravação – do fluxo de ideias por livre associação que Antonio dispôs ao registro documental, trilha sonora ausente e câmera sempre muito perto do sujeito entre-visto. Origens, atuação, paixões, formação, questões: “O que seria de uma cidade que pretende acabar com os territórios marginais? Não seria um delírio?”. Depois escutamos ainda outras palavras do momento – de Antonio, da Heidi, da Lúcia Lima (assistente de direção), da Taturana (mobilização social), do vasto público presente... Foi bonita a festa pá; ficamos todos contentes. Mas Paratodos foi a canção que ressoou em mim. Porque Heidi teve o bom gosto da escolha dos bons nomes. O nome da série – a evocar os vivazes pedidos de análise em que um sujeito demanda um psicanalista que fala; o nome do filme – nome do homem feito brasileiro, que saiu da Argentina pra ser feliz longe da mãe... Em Paratodos, na enumeração genealógica do Chico – pai, avô, bisavô, tataravô – o tom é dado pela exogâmica anunciação de um maestro soberano, lembram?[4] Então, Antonio brasileiro: em 8 de outubro deste 2016, na praça Roosevelt, centro da cidade de São Paulo, foi lançado o encontro aberto com um mestre.


Comecei pensando que este escrito não fosse uma encomenda; eis que me equivoquei. São os tempos enevoados que vivemos que recomendam: não se furte, não cale o bico. Pra seguir nossa jornada, é de palavra em palavra[5] que vamos recompondo, entre tantos, os lugares que também gostamos de habitar.


Ouço cantar uma sabiá[6] .




ANTONIO BRASILEIRO SABIÁ


PEDRO MASCARENHAS [7]


 

...emendando assim, na voz de Nara Leão cantando o cancioneiro popular para crianças e adultos:

 

Sabiá laranjeira
Ouvi o teu cantar tão perto
Eu sai te procurando
Mas a noite foi chegando
E eu me perdi no deserto

Eu tinha uma andorinha que me fugiu da gaiola (10x)

Ô, andorinha preta
De asa arrepiada
Vai dormir seu sono andorinha
Que é de madrugada

Oi muita coisa não se devia fazer
Muitas vezes a gente chora por deixar seu bem-querer
Minha cabocla foi-se embora do sertão
Fez que nem as andorinhas
Foi buscar outro verão


Antonio está fugindo... sempre fugiu da gaiola... sempre buscando outro verão.


Tive na feliz cidade o acaso de encontrá-lo por aqui em Sampa, logo que chegou. E me apresentou nada menos que Pavlovsky e a Multiplicação Dramática. E depois fizemos e aprendemos juntos em muitos verões e invernos. Na casa de saúde Anchieta em Santos e na casa de inverno em Santos. E muito mais, seu canto de sabiá, pássaro símbolo do Brasil encontrado em territórios urbanos diversos. Tão diversos quanto o filme mostra.


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[1] Psicóloga, analista institucional, psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, interlocutora da equipe editorial deste Boletim Online e professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos em São Paulo e de seu grupo de Arte e Psicanálise.
[2] Ei, pintassilgo / Oi, pintaroxo / Melro, uirapuru / Ai, chega-e-vira / Engole-vento / Saíra, inhambu / Foge, asa-branca /Vai, patativa / Tordo, tuju, tuim / Xô, tié-sangue / Xô, tié-fogo / Xô, rouxinol, sem-fim / Some, coleiro / Anda, trigueiro / Te esconde, colibri / Voa, macuco / Voa, viúva / Utiariti / Bico calado / Toma cuidado / Que o homem vem aí / O homem vem aí / O homem vem aí. Ei, quero-quero / Oi, tico-tico / Anum, pardal, chapim / Xô, cotovia / Xô, ave-fria / Xô pescador-martim / Some, rolinha / Anda, andorinha / Te esconde, bem-te-vi / Voa, bicudo / Voa, sanhaço / Vai, juriti / Bico calado / Muito cuidado / Que o homem vem aí / O homem vem aí / O homem vem aí.
[3] Sim, caros amigos, o primo dicionarista já publicara o seu aurélio, que data de 1972…
[4] O meu pai era paulista / Meu avô, pernambucano / O meu bisavô, mineiro / Meu tataravô, baiano / Meu maestro soberano / Foi Antonio Brasileiro... em referência ao músico Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom.
[5] Em referência ao segundo maior mestre brasileiro, João Gilberto, cantor do sambinha De conversa em conversa.
[6] Chico Buarque & Tom Jobim, 1968.
[7] Psicodramatista e psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, interlocutor do grupo de trabalho e pesquisa Psicanálise e Contemporaneidade.




 
 
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