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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    40 Novembro 2016  
 
 
O MUNDO, HOJE

UM SONHO CHEIO DE UMBIGOS


THIAGO P. MAJOLO[1]


Ouvi o que muitos anos tinham a me dizer,
E muitos anos atestariam alguma mudança.

A bola que lancei quando brincava no parque
Ainda não tocou o chão.
Dylan Thomas. Se brilhassem os faróis.

 

 

Dois cavaleiros se aproximam da torre de vigia, sob o olhar da princesa, enquanto um bufão e um ladrão discorrem sobre suas misérias e dignidades, buscando saídas. Assim começa, ou termina – ninguém sabe ao certo –, uma das canções enigmáticas de Bob Dylan, All along the watchtower. Uma entre tantas abastadas de imagens incontornáveis e igualmente inapreensíveis, de descrições cotidianas acompanhadas de reflexões místicas, de pessoas feitas de uma carne onírica, atravessadas pelo mundo real.

Quem seria Johanna, de Visions of Johanna, aquela que provoca, incomoda, inquieta, encanta e conquista o narrador, e que já foi comparada com a imagem divina? E o obscuro Mr. Jones, de Ballad of a thin man, tão humilhado e instigado? E a indomável Sweet Melinda (Just like Tom thumb´s blues), a inconsolável Ramona (To Ramona), ou a sensual Corrina (Corrina, Corrina)? Na vasta criação de Dylan, fazemos um passeio ao estilo esquizofrênico, como nos conceitos de Deleuze e Guatarri – onde tempo e espaço não respeitam os atributos cartesianos que lhes cabem em nossa cultura moderna e ocidental –, e então somos atravessados pelo processo e pelas produções parciais, pelo acaso, pela imanência, pelos enigmas constantes. O devir contínuo – e o rever constante – nos levam a uma jornada pela cultura de séculos e lugares diversos: do grande arco-íris de Noé às profecias de um mundo transbordado por uma chuva pesada e por tempestades apocalípticas.

Adentramos um território simbólico feito de uma escuta generosa e de uma voz ativa. Onde falam, e se escuta, em pé de importância e igualdade, Einstein, Cinderela, Casanova, Shakespeare, Dylan Thomas, Romeu, Otelo e Desdêmona, Ahab, Bettie Davis, Brigitte Bardot, Abraão, Deus, o pobre fazendeiro Hollis Brown, o injustiçado Rubin Carter, o gangster Joey, a garçonete Hattie Carroll e outras centenas de pessoas e personagens da história e da cultura humana. Falam como sendo eles mesmos e como outros, conhecidos ou anônimos. É também um território aberto às letras, frases e pensamento de Virgílio, Allen Ginsberg, Arthur Rimbaud, cancioneiro popular americano, irlandês, francês. Um lugar que é Nova York, Mississipi, Roma, Egito, América do Sul, Tangier, e também lugar algum, perdido no véu das antigas mitologias e religiões, e na vastidão inapreensível das profecias.

Bob Dylan soube ser muitos e agregar vozes, preservando suas singularidades. Suas personagens têm desejos contraditórios, suas liberdades individuais são irredutíveis a qualquer classificação, categorização e análise. Ousam ser provocados e respondem à provocação. Habitam um mundo de enigmas, uma espécie de sonho descentralizado, com muitas verdades transitórias. Um sonho cheio de umbigos, que jamais se resumirá. Seriam muitas as coisas a dizer sobre a obra de Bob Dylan, dentre as quais o Nobel é a menos importante. A importância do prêmio reside, no entanto, em trazer novamente à tona o interesse por essa obra e amplificá-la. Aproveitemos então o momento e adentremos essa porta exuberante, que muito contribui também com a psicanálise e os psicanalistas. Uma obra em que o conceito de identidade, sempre processado pelo recalcamento, se esvai; em que as melodias e harmonias são renovadas a cada apresentação, e a própria personalidade do autor é um mistério. Freud e outros sempre se perguntaram o que haveria nas origens, no umbigo do sonho. Os muitos umbigos dos sonhos de Dylan nos dão a impressão de serem habitados por outros, muitos, sonhos, em uma multiplicação centrífuga de novos umbigos. Uma espécie de liberdade a ser escutada e lida. Deixamos, então, que ela fale: https://vimeo.com/33352347

Sinos da liberdade
(Chimes of freedom, Bob Dylan, 1964 – Another side of Bob Dylan)

Longe, entre o pôr-do-sol e o romper da meia-noite,
nos refugiamos no umbral da porta, com o estrondo dos trovões.
Majestosos sinos de raios lançavam sombras nos sons
como se fossem os sinos da liberdade brilhando.
Brilhando para os guerreiros cuja força não é para lutar.
Brilhando para os refugiados no caminho indefeso da fuga.
E por todo o soldado desvalido na noite.
E contemplamos os sinos da liberdade brilhando

Pela calefação derretida da cidade, inesperadamente observamos
com os rostos tapados, enquanto muralhas se estreitavam
como o eco dos sinos nupciais antes da tempestade,
dissolvidos na batida dos relâmpagos.
Badalando para os rebeldes, badalando para o libertino.
Badalando para o desafortunado, o abandonado e o esquecido.
Badalando para o pária, sempre queimado na fogueira.
E contemplamos os sinos da liberdade brilhando.

Através do louco martelar místico do granizo selvagem,
o céu recitava poemas em um fascínio desnudo
que o balanço dos sinos da igreja soprava na brisa,
deixando apenas os sinos dos relâmpagos e seus trovões
atingindo o dócil, atingindo o gentil,
atingindo os guardiões e protetores da mente,
e o pintor independente que ultrapassa seu tempo.
E contemplamos os sinos da liberdade brilhando.

Pela feroz catedral do entardecer, a chuva decifrava histórias
para as formas despidas, sem face e sem importância.
Badalando para as línguas que não têm lugar para trazer seus pensamentos
em todas as situações tomadas como certas.
Badalando para o cego e o surdo, badalando para o mudo.
Badalando para a maltratada, a mãe solteira, e a famigerada prostituta.
Para o contraventor, perseguido e cansado da perseguição.
E contemplamos os sinos da liberdade brilhando.

Apesar de uma cortina branca de nuvens brilhar ao longe,
e hipnóticas manchas nebulosas elevarem-se lentamente,
raios elétricos golpeavam como flechas lançadas
contra os condenados a vagar ou impedidos de vagar.
Badalando para os que procuram, em sua silenciosa trilha.
Para os amantes de coração solitário, com suas histórias pessoais.
E para cada alma inofensiva deslocada dentro da prisão.
E contemplamos os sinos da liberdade brilhando.

Ingênuos e sorrindo, como me lembro quando fomos pegos,
acuados, sem noção das horas, pois elas permaneciam em suspenso,
enquanto escutávamos e assistíamos pela última vez,
fascinados e consumidos até o som dos sinos findar.
Badalando para os enfermos cujas feridas não podem ser curadas.
Para os incontáveis confusos, acusados, abusados, debilitados e ainda piores.
E para cada inibido nesse vasto universo.
E contemplamos os sinos da liberdade brilhando.

Site oficial: http://bobdylan.com/songs/chimes-freedom/


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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em História Social pela USP, membro do Grupo Acesso: estudos, intervenções e pesquisa sobre adoção da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae; membro da comissão de Debates da Revista Percurso.




 
 
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