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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    40 Novembro 2016  
 
 
LITERATURA

UM CAFÉ COM PATTI SMITH


 

Linha M, segundo a autora, é um mapa para sua vida. O amor morre e a juventude acaba, mas ela mantém a crença no mundo, que define como “um balão alegre”. O livro é um inventário de perdas e uma reverência à literatura. A dela é muito particular e praticada diariamente, na mesa de um café em Nova York.

DÉBORAH DE PAULA SOUZA[1]



Uma mulher leva às últimas consequências seus sonhos e devaneios. Ela tem 68 anos, mora no bairro de Greenwich Village, em Nova York, e frequenta o mesmo café todos os dias. Ali, numa mesa de canto, a bordo de uma xícara fumegante de café preto e uma torrada de pão integral, ela escreve. Sobre o quê? “Não é tão fácil escrever sobre nada”, avisa. Mas, como essa mulher é Patti Smith, a musa punk dos anos 70, escritora, roqueira e artista plástica, essa consideração inicial é apenas um pretexto para embarcar com ela no sonho. Sim, Linha M começa com um sonho e termina com a fotografia da placa de um café, em um muro descascado à beira-mar.

Ao longo do livro, entramos no seu ziguezague criativo, seus relatos de viagens, seu amor pela literatura, cultivado desde garota. Hoje, continua uma leitora voraz, mas também adora algumas séries de TV. Os autores dos romances e os personagens dos seriados, ela os trata com a mesma camaradagem. Acredita que existam portais - assim como o buraco por onde cai a Alice do país das maravilhas – e que nós podemos descobri-los ou inadvertidamente despencar neles, levados por torrentes e acontecimentos fora do script ordinário da vida. Não que ela não goste desse script . Dedica-se a descrever sua rotina diária, o hábito de trançar os cabelos e escreve como se fotografasse, iluminando objetos sem lhes dar nenhum significado extra que não seja seu nome, seu breve histórico, a sequência em que as coisas e pessoas entram e saem de sua vida.

Linha M é um inventário de perdas, sem dramas. Um relato em primeira pessoa, de uma vida que não precisa ser enfeitada com nenhuma palavra a mais. Exercício de economia de gestos, como convém aos poetas. Ficamos sabendo que ela amava tantos os cafés que quase abriu um. O projeto foi interrompido pelo guitarrista Fred Smith, com quem se casou e teve dois filhos. “Meu desejo por ele permeava todas as coisas”. Aos 26 anos ela já tinha o hábito de limpar e fotografar os túmulos de seus escritores prediletos, como Rimbaud. Na época do casamento, pediu ao marido para levá-la até a Guiana Francesa. Queria ver os restos da colônia penal francesa onde esteve preso Jean Genet, o autor de Diário de um ladrão . A morte inesperada de Fred, que teve um infarto aos 45 anos, quando os filhos do casal ainda eram pequenos, é descrita com intensidade máxima e o mínimo de palavras. Seu irmão promete a ela e às crianças que estará sempre perto deles, e morre um mês depois de derrame.

A lembrança afetuosa da família, dos filhos e de amigos queridos permeiam a história com leves flashes de intimidade. A artista dispensa qualquer efeito especial de luz, como se pode notar pelas polaróides que espalha ao longo do livro. A foto da capa - onde Smith aparece na mesa do Café Ino, com seu figurino usual, jeans, casaco preto, longos cabelos coberto por um gorro de lã – foi clicada por outra pessoa, mas ela tinha cada detalhe da cena desenhada na cabeça. Parece que queria mostrar a atmosfera silenciosa em que trabalha.

Mesmo quem não conhece Patti Smith percebe que ela não é uma mulher de hábitos comuns. Por exemplo, ela é sócia de uma estranha confraria de geociência, onde foi admitida por acaso, já que a maioria dos membros são matemáticos, teólogos e geólogos e não se identificam pelo nome, mas pelo número. Parece ficção, ou o roteiro de uma série, mas o fato é que ela conta como passou a viajar para diversos pontos do mundo para as reuniões semestrais desse estranho clube, onde teve oportunidades de assistir grandes mestres de xadrez jogando, bem como palestras sobre o declínio da extensão das calotas do Ártico. Os encontros parecem não ter graça nenhuma, mas o modo como elas os descreve sim, pois tudo é povoado pelos seus devaneios. Qualquer psicanalista fica surpreso ao perceber a atenção que ela dá às histórias que passam pela sua cabeça a fim de descrever o que ela chama de “nada”: seu fluxo de pensamentos, suas associações e memórias. Disso resulta a surpresa do livro. Somos convidados a entrar no seu processo criativo e seus ímpetos. Como aquele em que ela resolve comprar uma velha casa à beira-mar, em Rockway, quando descobre que o seu café predileto vai fechar as portas em Nova York e mudar-se para lá. Essa mulher coloca sua liberdade em prática, em todos os seus dias, em todas as suas páginas.

Essa é a vitalidade desse livro atravessado pelos acontecimentos da vida e lembranças selvagens, como o furacão Sandy nos Estados Unidos, e o tsunami no Japão, país que ela ama e onde tem amigos. Numa viagem a Tóquio, sonha que sabe decifrar a escrita japonesa numa placa que diz: “Favor manter silêncio pois estes são os recintos preservados do estimado escritor Ryunosuke Akutagawa”.

Uma das características da autora é romper com a hierarquia entre o mundo da realidade e da ficção, o mundo da vigília e do sonho. Ela confessa que é arrebatada pela atmosfera de certos escritores japoneses, a ponto de tentar materializar essa atmosfera ao seu redor. Há muitos anos, por exemplo, transformou o quartinho de despejo de sua casa, recobrindo o piso e os rodapés com feltro. Ali, sentava-se em posição de lótus, com uma chaleira de chá, diante de uma mesa comprida e baixa e escrevia durante o inverno. Concentrando-se bastante, “tentava canalizar” o escritor japonês Osamu Dazai, a quem ela chama de “o estupefato, o desajeitado, o vagabundo aristocrático”. Diz que todos os escritores são vagabundos e espera ser considerada como tal. Trabalha para isso e jamais despreza os próprios delírios, como ver a escritora Sylvia Plath de suéter creme, tampando os olhos ao sol. Smith já visitou três vezes o túmulo da inglesa. Discorre sobre a vida e a morte e não admite ilusões: “Nada pode ser replicado. Nenhum amor, nenhuma joia, nenhuma frase.” Linha M é uma viagem única e não é tão triste quanto aparenta. O relato de Patti Smith é também uma declaração de fé na imanência e na escrita. “Acredito no momento. Acredito nesse balão alegre, o mundo (...) Acredito na vida que um dia todos vamos perder (...). Como ficamos tão velhos? Agora já estou mais velha que meu amor, que meus amigos que já se foram. Talvez eu viva tanto que a Biblioteca Pública de Nova York seja obrigada a me ceder a bengala de Virginia Woolf. Eu cuidaria da bengala para ela, das pedras de seu bolso. Mas também seguiria vivendo, recusando entregar minha caneta.”


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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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