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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    41 Abril 2017  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

AH, QUE PENA, O TEMPO ACABOU ...


 

JANETE FROCHTENGARTEN[1]

 


Um público atento e cheio de perguntas, pequenos relatos e observações que sustentaram, acrescentando e indagando, as exposições da mesa. Uma psicanálise ousada foi espalhando questões pelo anfiteatro. Eu, como coordenadora da mesa, tive a ingratíssima incumbência de encerrar a sessão, quando o movimento estava intenso, colegas querendo se inscrever, os expositores querendo mais dizer. Pena! A partir do nível mais alto do anfiteatro, nossa querida secretária Claudia sinalizava, agitava os braços... Final.


E o início?


Liliana Emparan, representando o Projeto Ponte, nos trouxe Os desafios e especificidades da Clínica Psicanalítica com Imigrantes e Refugiados, que expõe um trabalho de grande importância e as reflexões que este gera. “A angústia diante do estrangeiro pode encontrar na higienização uma possibilidade de restabelecimento do conforto, tendo como medida a aculturação, na tentativa de anular a alteridade, obturando o horror que a singularidade provoca”. Patologizar o migrante é uma ação nesta direção.


Eis o que leio em uma notícia de jornal, de 19/3/2017, cujo título é “Autista, não: imigrante”(!), título contundente com razão, pois relata que uma funcionária da secretaria municipal de educação notou um número alto de solicitações na zona leste e, indo verificar do que se tratava, constatou que, em uma escola, 18 dos 30 imigrantes (60%) foram encaminhados com suspeita de autismo e déficit de aprendizagem, sendo que entre os alunos brasileiros a porcentagem caia pela metade. Uma professora, indagada, diz que estranhou que um aluno seu tenha sido diagnosticado com sinais sugestivos de autismo, pois notou que ele conversava bem com a mãe em sua presença e que “era só o idioma mesmo” (!).


Patologizar é uma forma, das mais brutais, de obturar - com um rótulo que adere, tatua a pele. Ora, nos diz Liliana ,“a psicanálise, na contramão, acolhe o conflito, ao invés de eliminá-lo” ... Tanto a psicanálise como o migrante”, seja pela cultura, língua ou pelo estranhamento frente a esse ‘diferente’, promove uma ruptura no encontro com o instituído, com o naturalizado, que ambos vêm questionar”. O psicanalista migra em sua escuta, migra entre duas margens, dois lados da fronteira, deslocando-se, confrontando-se com as possibilidades e as falhas que são inerentes a este caminhar.


(Pausa para fortes aplausos)


A seguir, Alessandra Sapoznik apresentou sua pesquisa, Uma breve cartografia da errância. Em um relato comoventemente pessoal, nos diz que a geografia não é, necessariamente, um destino... Ouçamos! Por razões de sua origem e de sua própria vida, Alessandra tem, na cidade de Madrid, uma referência afetiva princeps, que faz com que se sinta estrangeira em São Paulo, cidade na qual, de fato, nasceu, cresceu e na qual vive. Estrangeira em Madrid e em estranheza com São Paulo, cidade com a qual nunca teve “uma relação de intimidade e amor”. O que é, então, pertencer a um lugar? Como será que o fato de estar deslocado geograficamente influencia nosso desejar? Que consequências psíquicas? Esta pesquisa se move para ir de encontro a estas indagações. O prazer, grande, especial, de deambular, de se perder em uma cidade, de estar sem rumo, e caminhar por “livre associação”, não deixa de estar presente, com importância, na fala de Alessandra. Por outro lado, para a colega, há a procura proposital, desejante, de traços de suas origens em Hervás, uma juderia perto de Salamanca, na Espanha. Encontra apenas placas que indicam a entrada para o bairro judaico e, neste, pouquíssimos vestígios do que restou do período da expulsão dos judeus. Vazio. Angústia.


O que Alessanda pretende é por em relevo o conceito de errância -questionando, inclusive, se é um conceito -, tentando contribuir para pensar de que modo a errância pode ajudar a distinguir diferentes formas do humano em suas circulações por espaços.


(Pausa para fortes aplausos)


Alessandra Sapoznik, Luiza Sigulem, Miriam Chnaiderman, Paula Janovitch, Pedro Robles e Soraia Bento, presentes à mesa, nos trouxeram Sensações esparsas: nosso não-lugar na experiência do Cambridge ou uma psicanálise nômade. Uma sequência de falas individuais/grupais, fragmentos significativos de vividos intensos, por vários psicanalistas, uma antropóloga e por uma psicanalista que é também fotógrafa. As fotos acompanharam a apresentação, potencializando expressividade.


Achei interessante assinalar o que uma pessoa do grupo disse. Ao passar pelo centro da cidade, viu o obelisco pontudo que fala de uma “memória monumental” e que “me parece cada vez mais nebulosa e pouco significativa do que realmente seria a história de todos nós”. Assinalo, pois é um não pertencimento, ainda de outro modo do que os relatados por Alessandra em sua pesquisa: uma História presentificada em monumento, mas destituída de um conteúdo afetivo que remeta à história própria. Outro vazio... Outra pessoa do grupo, ao contrário, tem, ao passar pelo centro, uma memória de sua história; nesta a cidade evoca a criança que ia com a mãe fazer compras de roupas; aí era o comércio “onde circulavam as pessoas de todas as camadas sociais”. Sem obeliscos, mas com presença de afetos.


O estar na ocupação Cambridge é estar com pessoas que moram, temporariamente ou não - ou ainda, até quando? -, é estar com pessoas, também de várias camadas sociais, mas que têm em comum uma dura realidade, a da baixa renda, a da impossibilidade de pagar aluguel (que dirá possuir imóvel próprio!). Homens, mulheres, famílias, crianças de várias idades, cadeirantes, pessoas doentes, que estão sempre em lugares de passagem. “A escada é passagem obrigatória; todos sobem e descem as escadas em movimento contínuo infinito. Há horários de maior movimento, “os de ir para o trabalho ou de voltar do trabalho”. São adultos que trabalham, são crianças que frequentam escola, contrariamente ao que o preconceito frente às ocupações impõe como olhar.


O que fazia este grupo na habitação coletiva? Havia um pedido de atendimentos para alguns moradores, mas o caminho tomado foi outro: entender a ocupação como um todo, refletir sobre as subjetividades nestas condições-limite, suas dores, suas alegrias. A proposta foi, então, a de realizar, semanalmente, rodas de conversa. A cada semana, por vários motivos, mudavam os moradores que vinham para a roda. Mas, por mais que não tenha havido a constância de presenças, foi possível ir conhecendo quartos com portas fechadas, corrimões perigosos, cantos imprecisos, histórias, acontecimentos. Compareciam mães, em esmagadora maioria, carregando seus filhos, mães que não aceitavam acordos quaisquer apenas para permanecer junto a seus companheiros; mães que sentem, pelo filhos, a falta dos pais. Também comparecem homens jovens que, por sua vez, são filhos que sofreram a falta de seus pais... Para além dos ditos, para além dos escutados, há “os silêncios que cavam como cupins um espaço oco e se instalam sem pedir licença. Silêncios que fazem pensar “que só agora estamos chegando a algo mais central, e parece bem mais longe do que a gente imaginou no começo”.


Inquietações. Que lugar é este, o lugar em que estamos como grupo? Uma parte de cada um de nós, psicanalistas, se sabe psicanalista, mas outra parte está em um lugar mais híbrido. E a pergunta ecoa: que lugar é este?


“Temos pensado sobre os desdobramentos do que escutamos nas rodas de conversa. Este é um trabalho em processo... têm também surgido alguns desejos de prosseguir percursos fora do prédio”.


(Pausa, antes do público começar a participar, pausa para aplausos fortes e demorados, para esta última mesa e para este conjunto memorável de falas)


Termino este meu depoimento com o que disse o ator José Dumont, no set de filmagem de Era o Hotel Cambridge. “Somos todos refugiados dos nossos direitos. Sei, porque tenho lutado a vida toda contra isto”.


E termino com esperança, com um ânimo de que, apesar de tudo, no nosso Departamento, estamos sendo corajosos, saindo do lugar fechado no qual poderíamos permanecer, mas não queremos.


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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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