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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    41 Abril 2017  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

NA RUA COM NAIR BENEDICTO


 

CRISTINA BARCZINSKI[1]

 


 


Na tarde do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, enquanto a grande mídia celebrava a feminilidade, na praça da Sé vinham chegando aos poucos participantes da Marcha Mundial das Mulheres, que se aglomeravam em torno das escadarias da Catedral. No meio da multidão que se formava, uma mulher pequena de cabeça branca puxou de dentro da mochila uma máquina fotográfica profissional e pôs-se a registrar os diferentes grupos, alguns com tambores, outro com faixas, mulheres fantasiadas de outras mulheres, cantando seus jograis, vestidas de vermelho, roxo e lilás. Muitas cumprimentavam com alegria esta mulher que, sorrindo, cumprimentava todos, enquanto clicava incessantemente sua máquina. Aquela era Nair Benedicto, 77 anos, fotógrafa paulista que acompanha há anos os coletivos feministas, além de documentar outros movimentos sociais, tribos indígenas e manifestações culturais pelo Brasil e mundo afora. Durante a marcha - que naquele dia reuniu 30.000 pessoas em São Paulo em protesto contra a reforma da Previdência e a violência contra a mulher, além de advogar a legalização do aborto -, este encontro inesperado acabou levando ao contato com Nair, cuja força e arte são inspiração permanente para homens e mulheres. Do registro de uma longa conversa ao telefone, foi construído o testemunho que se segue:


NEM RECATADA, NEM DO LAR

 

NAIR BENEDICTO[2]

 


Nasci no meio de mulheres, éramos oito, minha mãe e minhas seis irmãs e um irmão. Minha família é de origem italiana, morávamos em Jarinu, meus pais já tinham seis filhas e finalmente veio um filho. Acho que eles pensaram: agora começa uma leva de homens. Aí vim eu, e eles resolveram parar por aí. Meu pai ficou doente e morreu cedo, de problemas renais, eu ainda era criança. Minha mãe se virou para poder sustentar a filharada, trabalhou no campo, foi balconista em mercado. À noite engomava camisas da fábrica Giannini. Todos ajudavam como podiam.


Vivi no coletivo feminino na marra, não é à toa que este é um tema que me toca tanto, era uma questão de vida. Ouvi histórias de que minha mãe adorava dançar e ver dançar, meu pai não gostava, então ele ficava com as crianças para ela poder dançar. Para mim família era uma coisa boa. Minha mãe era uma mulher simples, mas com muita sabedoria. Dizia pra mim: “Não basta reivindicar, é preciso saber argumentar”. Minha mãe tinha muito respeito pelas filhas, que começaram todas a trabalhar cedo, para ajudar em casa. Já meu irmão e eu pudemos estudar, sempre em escola pública. Uma vez tentei alterar de 3 para 8 a nota no boletim e minha mãe foi chamada na escola, era uma infração grave. Ela chegou em casa e não disse nada, depois me chamou: “Senta aqui”. Aí me disse que todas as minhas irmãs tinham começado cedo a trabalhar, mas eu estava tendo esta chance de estudar e escola era coisa séria. A escolha é sua, disse ela. Achei incrível que não apanhei e passei a ser a primeira aluna.


O tema que esta conversa me trouxe foi a responsabilidade, tema hoje em desuso. Quando vejo que um político qualquer consegue autorizar a construção de uma igreja pentecostal enorme na beira da Dutra, que nos hospitais chegam mulheres grávidas machucadas que os médicos atendem e mandam para casa, sem mais nada, afirmando “Elas disseram que caíram”. Muita coisa grave acontece sem que se saiba quem fez, quem tem a responsabilidade. Isto me deixa muito indignada, acho que a sociedade civil deveria ser mais atuante.


Eu resolvi fazer faculdade casada, com filhos pequenos. Já sabia que queria trabalhar com imagem e movimento. Queria fazer TV como freela, por conta própria. Isto era inviável naquele tempo. Maquinário muito pesado, custos muito altos, qualidade ruim. A fotografia apareceu como opção. Hoje diria que sou viciada em fotografia e, sobretudo, na vida - que nem sempre é bonita. Os problemas sociais sempre me instigaram como tema.


Lembro-me de quando tive minha primeira filha, tinha 22 anos. Estava na maternidade quando entrou uma enfermeira para me aplicar injeção. Nunca gostei de tomar remédio e perguntei para que era a tal injeção. Ela me respondeu que era para parar o leite!!! E me olhava incrédula dizer que queria amamentar! Nunca esqueci.


Eu era de família humilde, sempre soube do preço das coisas. Eduquei meus filhos da mesma forma, ganhavam mesada contada e quando queriam alguma coisa, tinham que fazer escolhas. Como minha mãe, eu dizia: você vai ter de decidir. Na casa de meus pais, como todos trabalhavam, também todos participavam das decisões. Naquele tempo, tínhamos basicamente duas roupas: a “roupa de domingo”, como se dizia naquela época, e o uniforme da escola. Ninguém precisava de mais do que isto. Não fiz voto de pobreza, gosto de muita coisa: cinema, teatro, música, livros, viagens. Escolho como e onde gastar, uso e abuso de brechós e sebos.


Estive nove meses presa durante a ditadura. Quando saí, quis muito fazer trabalho social na periferia. Fui procurar a Igreja, uma das poucas coisas que ainda estava de pé. Recebi um monte de recomendações, tipo você não pode se vestir deste jeito, não pode falar palavrão. Fomos trabalhar nas vilas operárias de Sampa no limite com o ABC. Fizemos um jornal de bairro, com amigos e alguns companheiros de prisão. Tentamos trabalhar com alfabetização mas descobrimos que as freiras faziam esta parte melhor que nós. Fizemos uma pesquisa e percebemos que as pessoas queriam ter uma profissão e uma das maneiras seria fazer os cursos do SESI/SENAC. Português e matemática eram as matérias dos exames, mas propusemos também história e geografia para a gente explicar como se forma, de onde vem o operariado. Os trabalhadores toparam. Os padres também. Nosso curso era das 19h30 às 22h30 e os operários levantavam às 4 ou 5 horas da manhã. As aulas de história, com método Paulo Freire e com a cartilha do Teatro do oprimido do Augusto Boal, estavam sempre lotadas. Na verdade, os operários adoravam o rodízio de interpretarem patrões e empregados! Alguns dos primeiros vereadores do PT saíram destes cursos.


Em 1980, fizemos uns audiovisuais sobre sexualidade, o projeto foi inscrito na SBPC. Deu muito trabalho, o tema era sobre o prazer na perspectiva feminina: O prazer é nosso. Fiz este projeto com outras mulheres, inclusive a jornalista Laís Tapajós, que conheci na prisão.


Em 2015/2016, foi feita uma exposição sobre o meu trabalho, na Casa da Imagem. O diretor me disse que daria o que eu quisesse. Pedi uma sala para a projeção deste audiovisual, O prazer é nosso, e outro sobre a violência doméstica, Não quero ser a próxima. Ele achava que ninguém iria parar para assistir, mas acabou sendo o maior sucesso da mostra! A situação da violência contra a mulher e contra a criança sempre me preocupou - como diz o Papa Francisco, as piores coisas acontecem dentro de casa, nas famílias. Para a UNICEF, trabalhei nos anos 80 para documentar a situação da mulher e da criança. Além do trabalho de fotógrafa, deveria também avaliar os projetos que estavam sendo feitos nesta área. Na Nicarágua, em um projeto para prevenir a gravidez precoce, só havia apostilas, livros e trabalhos dirigidos às meninas. Não aguentei e comentei: Vocês são muito mais avançados que nós, porque no Brasil precisamos de um homem e de uma mulher para uma gravidez acontecer, aqui basta uma mulher. Meninas de 12, 13 anos engravidadas por homens de 25 ou mais - e do conhecimento de todos!!! Esta argumentação de que as mulheres podem se conter mas os homens, não... Ora, me poupem!!!


O momento atual é muito complicado, as coisas se misturam e as pessoas ficam muito perdidas. Na verdade se destituiu o valor da palavra, ninguém está dando valor. Cada vez se lê menos e se pesquisa menos ainda. Enquanto isto as igrejas evangélicas vão ocupando um espaço enorme e os pastores são tremendamente machistas. Outro dia, estava vendo na televisão um filme de trabalho, mudei o canal e entrou um programa de um pastor de 45/50 anos com um discurso assustador, aconselhando aos homens que, quando estão fazendo seu trabalho e chegam as mulheres para tentá-los, eles devem levantar a mão, gritando: Saiam pra lá, bruxas, pra longe de mim! Não consegui assistir até o fim o casamento de um conhecido na igreja pentecostal, com o pastor pregando que a mulher nasceu para servir ao homem! Não dá, né? O canal Curta está passando um curta metragem com o depoimento de Cláudio Guerra, um antigo policial torturador do Rio de Janeiro, atualmente pastor. É assombroso o quanto ele torturou, matou e fala que “cumpria ordens”! Gostava do poder que tudo isto dava a ele, a convivência com poderosos, os presentes que recebia e também... do medo que provocava. Este curta deveria passar em todas as escolas e movimentos populares.


O desgaste da palavra marca a história do Brasil. A abolição nunca aconteceu, o respeito aos indígenas e suas terras não existe. Os privilégios da elite permanecem há 500 anos. O governo Lula foi até conservador em relação a estes privilégios, mas a elite não quer perder nada!!! Este Bolsonaro encontrar tanta gente disposta a votar nele para presidente, para mim merece um estudo. O assessor de imprensa da Secretaria da Segurança Pública dizendo que iria comemorar, comendo esfihas e quibes, depois daquele menino assassinado pelos seguranças do Habib`s - inacreditável...


Na cidade acontecem muitas demonstrações de resistência, fui ver o filme Era o Hotel Cambridge, das irmãs Caffé, uma experiência incrível. A cidade se modificou, se abriu. Quando saímos de nossa zona de conforto, encontramos bolivianos, peruanos, haitianos, asiáticos, europeus. Admiro as bolivianas e as africanas, que não abrem mão de suas vestimentas que, aliás, são lindas. Questão de preservar a identidade! É preciso lutar para manter a cidade aberta para os cidadãos. Para todos!!!


No Dia Internacional da Mulher, na manifestação, acabou acontecendo uma divisão, foi uma pena: o pessoal da Paulista, com os carros da APEOESP, não conseguiu se juntar com o grupo que vinha da Sé e a marcha se dispersou. Começou com o Dória mandando o caminhão de limpeza para a praça, obviamente a limpeza tinha que ser naquela hora... Fui lá falar com eles: Vocês não podem fazer isto, nós temos autorização para a manifestação. Eles insistiam que estavam cumprindo ordens da Prefeitura, aí eu disse: Vocês são uns bundões! Eles acabaram indo embora. Acho que é assim mesmo, temos de sair da nossa zona de conforto, usar as armas que a gente tem. Tem gente que me pergunta por que eu ainda vou a passeata, mas acho que só há conquista quando se vai para a rua. Eu discuto com todo mundo, não dá para ficar calado. Às vezes basta perguntar: Você acha mesmo que tudo está melhor? Todas estas medidas, alterando aquilo que foi duramente conquistado com muitas prisões, muitas mortes, muitas torturas. O ataque às mulheres, à área da educação, a reforma da Previdência acabando praticamente com a aposentadoria, especialmente do pessoal do campo, são absurdas! Acho que estamos num momento crucial, de ter de brigar para não retroceder. É duro! Mas não recomeçamos do zero. E é muito bom ver as jovens se empoderando e vindo pra briga. Em tantos anos que fotografo o Dia Internacional da Mulher, este ano foi o melhor que vi. Mulheres de todo jeito, todas as etnias, todas as idades, todos os tipos físicos. Inegável que as negras pontuaram. Foi uma passeata muito linda e animadora!


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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim Online e dos grupos Sexta Clínica e Medicações psiquiátricas em análise.

[2] Fotógrafa paulista, uma das fundadoras da Agência F4 de Documentação (1979 a 1990) e do Nafoto (1991 a 2011), este último responsável, durante 20 anos, pelo Mês Internacional da Fotografia de São Paulo. Suas fotos integram os acervos do MoMa de Nova Iorque, MAM-RJ e da coleção Masp-Pirelli, entre outros. Desde 1991, trabalha com a N-Imagens.




 
 
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