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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    41 Abril 2017  
 
 
CINEMA

À ESPERA DO LUTO


 

CRISTINA RIBEIRO BARCZINSKI[1]

 


O filme A espera, de Piero Messina, começa com cenas que não sabemos se reais ou oníricas, uma casa envolta em penumbra e silêncio. As pessoas se cruzam e não falam entre si, apenas trocam olhares num velório. O rosto da dona da casa, Anna, é máscara de puro sofrimento.


Ao mesmo tempo, uma mulher jovem chega numa estação de trem, onde é buscada por um motorista igualmente silencioso, que a conduz por uma região coberta de neblina tristonha. Jeanne é namorada do filho de Anna e combinou de passar com ele o feriado de Páscoa na casa da mãe do mesmo, que mora sozinha numa região isolada da Sicília. Nas imagens desta antiga villa italiana, persiste o contraste entre o deslumbramento das paisagens e uma profunda melancolia. Um quarto escuro com apenas uma janela aberta e ensolarada.


Jeanne chega e procura pelo namorado, a mãe não responde, pede que ela o espere. A casa ainda tem visitantes, mas o velório já acabou, o corpo não está mais lá. Mesmo que o público possa ter lido sobre o enredo do filme e imagine quem possa ter morrido, a relutância da dona da casa em esclarecer a situação induz a que todos quase também esperem com ela. A atmosfera é de fantasia, não se espera que seja verossímil. A situação se alonga, o suspense se mantém, a irmã de Anna se angustia e se afasta, mas esta resiste, numa oposição silenciosa e exasperante, ou sussurrando frases recheadas de reticências.


Enquanto isto, o telefone do filho continua recebendo recados da namorada que se aflige com a espera interminável. A mãe, voyeur, escuta os recados, cheios de erotismo. O celular se mantém carregado, investido, como testemunha de que seu portador continua vivo enquanto objeto de amor. As mensagens angustiadas são traços que desenham a imagem daquele homem: Você realmente me ama? Sente minha falta? Por que não volta logo? Anna, enciumada, vinga-se dizendo para Jeanne que o namorado não a queria ver, por isto não chegava.


Se a morte não ganha palavras, é como se não tivesse acontecido. A mãe preserva o filho no desejo de sua namorada e assim se protege do luto e da separação. O preço desta negação (ou seria recusa?) é condenar-se a manter vivo este filho e, por contrapartida, a si mesma e ao lugar que ocupou nesta relação.


Enquanto isto as duas vão se tornando aparentemente mais íntimas, dividindo memórias, se desnudando uma diante da outra. À medida em que percebe que Jeanne continua viva e disponível para novos encontros, tenta trazê-la para perto de si, busca de alguma forma capturar a vida que aquela carrega. Anna fantasia silenciosamente estar no lugar da jovem, partilhar de seu erotismo e juventude e ignorar que o filho morreu.


Esta transgressão, porém, é interditada pelo motorista, que desmascara silenciosamente a farsa ao deixar o celular do rapaz no quarto de Jeanne, que abandona imediatamente a casa.


À Anna, finalmente sozinha, numa Sexta-feira Santa, só resta buscar inutilmente o rosto do filho em meio à procissão por um outro filho morto. Resta saber se agora o trabalho de luto, depois de um teimoso adiamento, será finalmente possível.


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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Integrante da equipe editorial deste Boletim Online e dos grupos Sexta clínica e Medicações psiquiátricas em análise.




 
 
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