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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    41 Abril 2017  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

PSICOPATOLOGIA PSICANALÍTICA, CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADE E NEOLIBERALISMO


 

MARIO PABLO FUKS[1]

 


Faz parte do caminho seguido pela psicanálise não só a expansão das fronteiras clínicas, mas o perguntar-se reiteradamente sobre a relação entre o psíquico e o social ou, mais precisamente, o sociocultural. Freud nunca deixou de considerar os determinismos sociais, as marcas que deixam no psiquismo as diversas épocas históricas. Freud não esteve nisto sozinho. Teve apoios e teve aliados. Apoiou-se nos cientistas de sua época, nos poetas e nos escritores. Juntou-se a filósofos e humoristas, figurando-os como um grupo de “companheiros de descrença” no qual se incluía, dando assim sustentação imaginária e simbólica aos seus ensaios referidos às origens, à história da cultura e ao papel da religião.[2]


Falar de muitos dos quadros que se fazem presentes hoje na clínica como patologias da contemporaneidade implica valorizar, em um recorte particular, suas conexões com o espírito e a configuração social da época. Conexões que explicam uma historicidade das formações psicopatológicas, o que não invalida o reconhecimento de aspectos invariantes, se bem que sujeitos a discussão, balanço e reavaliação por parte dos psicanalistas. “Nos lapsos, nos sonhos, nos sintomas de nossos pacientes revela-se a eficácia do inconsciente fazendo parte de uma divisão, de uma spaltung subjetiva, que subsiste além do câmbio histórico. Porém os modos em que se manifestam os sofrimentos psíquicos não são alheios aos códigos culturais. O sintoma é uma formação de compromisso mas também é um apelo ao outro e este apelo se formula dentro dos códigos compartilhados.”[3]


Mas retomo nossa pergunta: certo tipo de quadros que vemos hoje na clínica expressam novos modos de produção de subjetividade ou apenas vicissitudes de formas conhecidas de subjetivação, novas roupagens para problemáticas já estudadas pela psicanálise? E antes disso, como apropriar-nos do conceito de subjetividade e de modo de produção de subjetividade? Na exposição - em boa medida esquemática - que me proponho a fazer, tomo ideias de um livro chamado O Desmantelamento da subjetividade[4], escrito por uma psicanalista argentina, Silvia Bleichmar, e de outro, escrito por um filósofo e um sociólogo franceses, Pierre Dardot e François Laval, chamado Uma nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal, publicado pela Boitempo em 2016.


Subjetividade e produção de subjetividade


Subjetividade e produção de subjetividade são conceitos inicialmente sociológicos. Produção de subjetividade diz do modo em que as sociedades constituem sujeitos plausíveis de integrar-se em sistemas que lhes outorgam lugar. Segundo Silvia Bleichmar, trata-se da produção instituinte, no sentido de Castoriadis, de um sujeito histórico, socialmente pertinente e necessário.


Ela esclarece que, quando se fala de subjetividade, em geral há diversos eixos que devemos considerar. Em primeiro lugar, aqueles que abarcam aspectos que podemos chamar de universais, próprios do sujeito psíquico: os enigmas das origens, a angústia de perda de amor e da perda de reconhecimento, o impulso à conservação biológica e à preservação identitária, a angústia de desamparo ou de Hilflosigkeit, de falta de auxílio por parte do outro.


Em segundo lugar, o que pode ser chamado de subjetividade em sentido estrito: o posicionamento do sujeito de cogitação (do sujeito pensante do cogito ergo sum), que implica em um pensamento reflexivo, em como o sujeito se posiciona diante de si mesmo e diante dos outros. Desde a psicanálise – diz Bleichmar – sabemos que este sujeito é atravessado pelo inconsciente, mas está articulado por uma lógica que permite a consciência de sua própria existência. Ela enfatiza que, em cada período histórico, esta relação entre o inconsciente e o eu está sujeita a mudanças. O eu se constitui a partir de uma matriz imaginária, mas tem uma dimensão instituída pela cultura própria.


É fundamental, neste recorte, a ênfase colocada no sentido de que o conceito de subjetividade não recobre totalmente o conceito de psiquismo, de aparelho psíquico. Este tem a ver com o conceito de inconsciente, com o para-subjetivo, o não reflexivo, o que é materialidade psíquica stricto sensu. A subjetividade implica categorias ordenadoras de tempo e espaço, que não se encontram no inconsciente. A produção de subjetividade é o lugar onde se articulam os enunciados sociais relativos ao eu. O aparelho psíquico implica certas regras que excedem a produção de subjetividade, por exemplo, o recalque.


Sabemos que o reconhecimento da existência de regiões inconscientes do psiquismo envolve resistências narcísicas contra algo que Freud definiu, em “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” de 1915, como uma afronta psicológica ao narcisismo do homem, significada pelo descobrimento do inconsciente. A consciência, tão valorizada pelo homem moderno, não recobre a totalidade de sua vida anímica, nem se encontra no centro da mesma nem domina seu funcionamento. O homem não é senhor em sua própria casa, ignora muito do que acontece dentro dela.[5]


Mas não se trata somente de narcisismo, e sim de relações de poder que tendem a produzir certo tipo de subjetividade e a naturalizá-la.


O que se chama de produção de subjetividade é de ordem política e histórica. Tem a ver com o modo em que cada sociedade define aqueles critérios que possibilitam construir sujeitos capazes de se integrarem à sua cultura de pertinência. Há um projeto de produção de subjetividade em cada sociedade.


Passo agora para as ideias de Laval e Dardot, no Ensaio sobre a sociedade neoliberal, centrando no capítulo 9, “A fábrica do sujeito neoliberal”, mais precisamente no ponto em que se refere ao sujeito plural e a separação das esferas.


No começo da modernidade e durante muito tempo, o sujeito ocidental moderno era um sujeito plural, dado que pertencia a regimes normativos e políticos heterogêneos: a esfera dos costumes e da religião, a esfera da soberania política e a esfera mercantil das trocas. Esta foi sempre uma divisão movediça e implicava em um desafio para as relações de força e as estratégias políticas quanto a como estabelecer as fronteiras. Contudo, dentro de certos limites, respeitava o funcionamento heterogêneo do sujeito, assegurando a separação e a articulação das diferentes esferas da vida. Eu acho que isto pode ter aspectos que se ligam, também, com a divisão do trabalho e com a separação entre público e privado.


Estas sociedades que nasciam na modernidade foram atravessadas e tensionadas por dois movimentos paralelos e de alguma maneira disjuntivos: a democracia política e o capitalismo. O homem moderno precisou dividir-se em dois: o cidadão, dotado de direitos inalienáveis e o homem econômico, guiado por seus interesses; ou seja, como dizem Laval e Dardot, o homem como “fim” e o homem como “instrumento”. E eles dizem, com razão, que a história dessa modernidade consagrou um desequilíbrio a favor do segundo pólo: o desenvolvimento de uma lógica de relações humanas submetida à regra do lucro máximo.


Desde o ponto de vista da criação instituinte de subjetividade, a grande obra da sociedade industrial foi a fabricação do sujeito produtivo, capaz de inserir-se no grande circuito da produção e do consumo; esta foi levada a cabo através de um conjunto de práticas de treinamento e vigilância de corpos e mentes que começou pela invenção dos contratos. Foucault o denominou de dispositivo de eficácia. Este dispositivo permitia, entretanto, a existência do sujeito plural, sujeito assujeitado a diversos discursos: religioso, político, econômico, moral.


No século XIX surgem certas misturas, certas hibridações muito importantes. Nas relações econômicas começam a ser incluídas considerações “sociais”, direitos sociais e políticas sociais que passam a limitar - e a contrariar seriamente - a concepção estritamente contratualista das trocas sociais. Ou seja, a norma da eficácia econômica passa a ser limitada e contida por discursos sociais heterogêneos a ela. O momento de auge desta configuração será o Estado de Bem-Estar Social instaurado pela política keynesiana do Presidente Roosevelt, após a Grande Depressão dos anos 30. Podemos acrescentar que, segundo alguns historiadores, desde fins do século XIX surgiram, no continente europeu, posições de economistas conservadores e liberais com a finalidade de funcionar como uma alternativa contraposta aos ideais socialistas que cresciam entre os trabalhadores promovendo sua união e fortalecimento, e que acabaram aportando fundamentos para o Estado de Bem-Estar Social.


Já avançado o século XX, e como reação à crise dos anos 70, uma nova orientação tomou corpo em dispositivos e mecanismos econômicos que mudaram as “regras do jogo” entre os diferentes capitalismos nacionais, as diferentes classes sociais e o interior de cada uma delas. Os programas de M. Thatcher, na Inglaterra, e de R. Reagan, nos Estados Unidos, protagonistas centrais da grande virada, foram apresentados como resposta a uma situação “impossível de gerir” desde o ponto vista econômico, dada a diminuição da margem de lucro, o desemprego, a estagflação. Este resultado foi atribuído ao mau governo da economia - o chamado pacto social-democrata, que procurava estabelecer um manejo equilibrado entre os ganhos de produtividade, preços e salários.


As mais ressonantes medidas adotadas foram a privatização das empresas públicas e a desregulamentação da economia que deu liberdade de ação para os atores privados. Instaurou-se a concorrência geral como norma suprema universal de governo. Criou-se um sistema disciplinar mundial, expresso no Consenso de Washington, que estabelece regras de adaptação à globalização para os estados que querem conseguir empréstimos e auxílios das financeiras internacionais – vejam só quais: comprimir salários, reduzir gastos públicos, tirar direitos adquiridos de proteção social, enfraquecer mecanismos de solidariedade que escapam à lógica assistencial privada, condições fiscais e sociais mais favoráveis para atrair investimentos e valorizar o capital.


Retomando a análise iniciada em torno do sujeito plural e da separação das esferas nos começos da modernidade e da industrialização, o momento neoliberal aponta para uma homogeneização do discurso do homem tendo como eixo exclusivo a economia, girando em torno da figura da empresa. “Isto foi obra, em grande parte, de técnicas e dispositivos de disciplina, ou seja, de sistemas de coação, tanto econômicos, sociais e administrativos, cuja função era obrigar aos indivíduos a governarem a si mesmos sob a pressão da competição, segundo os princípios do cálculo maximizador e uma lógica de valorização do capital”.[6]


A ideia de construir uma subjetividade neoliberal era clara e explícita. Há uma frase famosa de Margareth Thatcher em um discurso pré-eleitoral: “A economia é o método, mas o objetivo é a alma”.


Começa a ser fabricado um novo sujeito, não mais plural mas unitário, que pode ser chamado de sujeito empresarial, empresário de si mesmo, sujeito neoliberal ou neo sujeito. Trata-se de produzir e governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que ele cumpra. A motivação, a vontade de realização pessoal, o projeto que o sujeito se propõe desenvolver, “enfim o desejo, com todos os nomes que se queira dar a ele, é o alvo do novo poder.” (idem, p. 327). É possível delimitar a existência de um novo dispositivo, o chamado dispositivo de desempenho-gozo, cujo objetivo é produzir o máximo rendimento unido ao máximo gozo.


Tanto desejo como gozo são conceitos que os autores do ensaio tomam da psicanálise. O conceito de gozo tem seu ponto de partida em Freud, mas é amplamente reelaborado por Lacan, sendo reconhecido como uma contribuição importante pela maior parte dos psicanalistas.


Este neo sujeito deve funcionar em regime de gozo de si, a partir de um mandato internalizado de ser ele mesmo. Trata-se de uma aspiração mítica a uma plenitude impossível, que a própria instituição empresarial - como todas as instituições - se ocupa de limitar, mas mantendo nesse caso uma denegação (sic)[7] que facilita a constituição de uma crença onipotente. As conquistas alcançadas por este empresário de si mesmo são apresentadas como uma decisão individual que não deve nada a ninguém. Ao sujeito lhe é exigido que as leve em frente, mas enquanto empresa de si mesmo, arcando com os riscos e as responsabilidades (pergunto-me quanto deste protagonismo heroico e desafiador não camufla e recusa o medo e a culpa causados pela insegurança no emprego e a ameaça de exclusão social a que o sistema submete todos os trabalhadores, como um dos fatores mais violentos e eficazes de sujeição).


Tendo-se convertido em um ser pleno e total, o eu se funde com o desejo e se funde com seu lócus de pertinência que é a empresa. Assume total responsabilidade pelo que faz e pelo que promete, se define como accountable, com alguém que se obriga a prestar contas e auto-avaliar-se. Sua vida pessoal consiste em aquisições que permanentemente o tornam melhor, enriquecem seu potencial, seu capital humano.


A própria empresa, em si mesma, é capturada por lógicas de expansão infinita, por exemplo através de uma valorização infinita na Bolsa. O gozo de si ilimitado fica aliado ao ilimitado da acumulação mercantil.


O sentimento de si é dado no excesso, na rapidez, no ir sempre para além do limite, na sensação bruta de agitação que atropela o funcionamento psíquico elaborativo.


A patologia que disso resulta, em sua vertente frequentemente maníaca, adictiva e perversa, não é disfuncional. Integra-se ao sistema, eu acho, como se integravam as neuroses e as caracteropatias obsessivas ao contexto do sujeito produtivo da era industrial. Até que, por esgotamento depressivo, adictivo ou por colapso narcísico, aparecem os sintomas e transtornos que chamamos, desde que Julia Kristeva assim os batizou, de "novas enfermidades da alma".


Neoliberalismo e democracia


Em um trabalho de 1973, “A crise de democracia”, produzido pela Comissão Tricontinental convocada por David Rockfeller, falava-se de uma ingovernabilidade das democracias ocidentais devido a um excessivo envolvimento dos governados na vida política e social. Queixavam-se de um excesso de democracia surgida nos anos 60, de um aumento de reivindicações igualitárias e de participação política ativa dos mais pobres e marginalizados. Concluía: “Há um limite desejável para a ampliação indefinida da democracia política”[8]. Precisava-se de bons governos, não necessariamente democráticos; o ditador chileno Pinochet foi ungido por Margareth Thatcher como o pioneiro latino-americano da transformação econômica neoliberal.


O Estado, visto como instrumento encarregado de reformar e administrar a sociedade para colocá-la a serviço das empresas, deve ele mesmo curvar-se às regras de eficácia das empresas privadas. Essa mutação empresarial não visa apenas a aumentar a eficácia e a reduzir os custos da ação pública; ela subverte radicalmente os fundamentos modernos da democracia, isto é, o reconhecimento dos direitos sociais ligados ao status de cidadão.


Hoje em dia, concluem os autores, com a universalização da norma de concorrência para os agentes econômicos, o mercado, o Estado, as empresas e os indivíduos convertidos em sujeitos empresários de si mesmos, realiza-se uma extensão da racionalidade mercantil a todas as esferas da existência humana, fazendo da razão neoliberal uma razão-mundo. Esta extensão, que faz desaparecer a separação entre esfera privada e esfera pública, corrói os fundamentos da democracia liberal, levando-a ao esgotamento como norma política.


Toda reflexão sobre administração pública tende a passar pelo discurso técnico – o que a mídia incrementa entre nós ad nauseam - seja nos argumentos para sustentar o impeachment, a PEC do gasto público, a reforma da previdência social, a reforma trabalhista, em detrimento de toda consideração política e social. As categorias da gestão substituem os princípios simbólicos comuns que foram os fundamentos da cidadania, e que ficaram expressos no Brasil na Constituição de 1988, denominada Constituição Cidadã.


Piccolo finale incerto


Os acontecimentos internacionais dos últimos tempos, o Brexit e a eleição de Trump – na Inglaterra e nos Estados Unidos, os mesmos países da grande virada de Thatcher e Reagan - mostram que algo neste mundo neoliberal globalizado está falhando. Espalha-se um sentimento de crise. Não há no momento crescimento econômico, distribuição de riqueza, integração social. O modelo de negócios das grandes empresas, o modelo de acumulação e de reprodução do capital se mostra nocivo para o próprio sistema. O arrocho salarial afeta o consumo e estrangula o mercado. Isto explica o Brexit e a eleição de Trump por um eleitorado que se viu estagnado ou empobrecido pelo processo de globalização e que aposta agora no nacionalismo. Enfim, como diz V. Safatle numa condensação criativa, o neoliberalismo tem se transformado em um Estado de Mal-Estar Social.


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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professor do Curso de Psicanálise, coordenador do curso Psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea, supervisor do Projeto A/B e integrante da equipe editorial deste Boletim Online. Este artigo foi elaborado a partir da aula inaugural de 21/03/2017.

[2] Freud, S. O futuro de uma ilusão (1927).

[3] ROJAS, M. C. e STERNBACH,S. Entre dos siglos, Buenos Aires: Lugar Editorial,1994, p.128 (Tradução livre).

[4] BLEICHMAR, S. El desmantelamento de la subjetividad : estallido del Yo, Buenos Aires: Topia, 2009.

[5] FREUD, S. (1917[1916] “Una dificultad del psicoanálisis” Obras Completas, vol 17, Amorrortu, 1996.

[6] Dardot e Laval, op. cit., p. 358.

[7] Seria interessante conhecer a palavra usada no original em francês.

[8]Dardot e Laval, op. cit., pp. 194-195.




 
 
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