PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    42 Junho 2017  
 
 
O MUNDO, HOJE

CONFLITO E ERRÂNCIA. CAMINHOS PARA PENSAR A POLÍTICA


SORAIA BENTO[1]


No dia 29/03/2017 o Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP iniciou um ciclo de palestras intitulado Conflito, ampliando olhares. A proposta veio de uma parceria com o Consulado de Israel e visa a uma troca entre convidados e o público no debate sobre os impasses gerados por questões geopolíticas, religiosas ou na micropolítica da vida privada.

A primeira conferência ficou a cargo de Alessandra Sapoznik e Christian Dunker e houve mediação de Tania Rivitti.

Fui convidada a escrever sobre o evento depois deste ter ocorrido, o que levou minha escrita a estar mais apoiada na memória afetiva do que respeitando a precisão que seria devida aos conferencistas.

O ambiente para tratar de conflitos não poderia ser mais amistoso e colaborativo. Alessandra Sapoznik inaugura a apresentação com um texto derivado de sua pesquisa de doutoramento em regime de co-tutela na Faculdade de Filosofia da Universidad Complutense de Madrid e no IPUSP.

Tomando como ponto de partida a figura do judeu errante atravessado pela experiência do desenraizamento que o caracteriza ao longo da história, a autora coloca em questão a posição subjetiva da errância e a pulsionalidade do nômade. Apoia-se em autores como Walter Benjamin, Blanchot, entre outros. Estabelece uma diferenciação entre as categorias de sedentarismo e nomadismo, partindo de uma valorização continuada, na história, do sedentário em relação ao que se desloca pelo território, como se ao primeiro modo coubesse a construção de vínculos e sentimento de pertinência além de marcos históricos e geográficos, enquanto ao segundo coubesse a dispersão e a instabilidade resultante da experiência de deslocamento. Alessandra postula que a experiência da errância e, posteriormente, da diáspora, seriam fatores fundamentais para o desenvolvimento de uma postura ética de abertura em relação ao Outro. Se “Narciso acha feio o que não é espelho” é porque ficou aprisionado no seu pedaço. O diferente é só diferente, nem melhor, nem pior, esse é o princípio da alteridade. Esse assunto na sua figuração contemporânea apoia-se no fluxo de imigrantes e refugiados que vêm se espalhando em número cada vez maior pelo mundo afora.

Há quem seja obrigado a partir e sofre todo tipo de preconceitos e discriminação nos pontos de chegada, porque chega despossuído. A diáspora. Enquanto há quem se mova guiado pelo desejo de expansão dos horizontes. Fundamental diferença no que tange ao sentimento de pertencimento. A errância.

Nesse sentido, à psicanalista interessa abordar a positividade da errância, a partir da ideia de que distintas possibilidades de circulação determinam distintos modos de subjetivação. O que destitui o lugar de valor do sujeito é a ausência de rastros, sejam eles externos ou internos. Todos sabemos o quanto a experiência de viajante nos modifica, mesmo que estejamos só de passagem. O território novo explorado abriga-se no nosso interior sob a forma de uma cartografia.

Alessandra relata poeticamente uma visita a uma cidade espanhola considerada um bom retrato da presença judaica na Espanha, a pequena Hervás. O seu relato é intensamente marcado por uma observação da arquitetura e modo de vida. Termina por abrigar-se no tradicional, o escritório de turismo, para buscar fontes, justo ela que adora a deriva e as descobertas insuspeitadas. Decepção! O prato típico do restaurante típico não tinha nada de típico ao seu paladar. O caminhar pelas ruelas revelava uma cidade fantasma, sem alma. Experiência esvaziada do sentido almejado: encontrar raízes que explicariam a sua paixão infantil pela Espanha mesmo sendo de origem bielorussa/lituana/polonesa/romena! Tudo junto e misturado naquela alma cigana.

Por associação, recorda o conceito freudiano Unheimlich para pensar no estranhamento vivido na sua cidade natal, São Paulo. Parodiando Freud lança a pergunta: “a geografia é destino?”. Nascer em determinado sítio te faz um cidadão identificado com ele, com um tranquilo sentimento de pertencimento? Para Alessandra a resposta parece ser: não! O familiar anestesia e pode impor certa miopia. Tal como Édipo, não teremos todos que abandonar o lugar natal para tentarmos escapar ao destino assassino? Afinal, o êxodo do seio familiar é fundador da cultura. O sentimento de pertencimento esvazia a exterioridade e a capacidade de reconhecer o outro?

Bom, ela nos conduziu por esses caminhos que pretendiam não valorizar uma experiência sobre a outra, mas corrigir a injusta consideração de desgarramento como ausência de marcas significativas. A atitude de curioso respeito com o estrangeiro e com a alteridade permitiriam uma possibilidade menos conflitiva de convivência com a diferença.

Na sequência, Dunker perfila uma genealogia do conceito de conflito e coloca o foco no intrassubjetivo, no intersubjetivo e no jurídico mais particularmente.

Inicia com a interessante conclusão de que a parte mais difícil nesse tema é entender o que gera conflito, muito mais do que a solução propriamente dita. O saber sobre o que se opõe antecipa a solução. O lado que define o que é o conflito sai em vantagem, e supõe a resolução. Aí é que mora o perigo: por que e como sabê-lo? Há causas justas e outras injustas, mas igualmente exigentes de um posicionamento. Cita uma fábula de 3 crianças indianas muito pobres e uma flauta. A quem cabe o instrumento como presente? Lança-se uma pergunta: “Quem não tem nenhum brinquedo?" A primeira criança levanta a mão. Justo dar a ela. A segunda contesta dizendo que ela é a única que sabe tocar. Justo, isso seria divertido para todos que pudessem apreciar a melodia. A terceira protesta, dizendo que ela tinha feito a flauta e achava portanto que seria injusto não ficar com ela. Impasse. Qual é o critério mais justo para a decisão?

Sabe-se pouco sobre as motivações de um conflito porque as manifestas causas encobrem um universo em latência. Quando temos diante de nós duas posições, cada uma delas traz forças em conflito que derivam de outras posições também conflitivas de outros tempos… Esse túnel sem fim à vista despenca na mais prosaica das discussões. Cada sujeito porta a sua história e tem como justificar sua posição. A psicanálise pôs a lenha nessa fogueira ao posicionar o sujeito numa trama de sentidos singulares dados pela sua história. Trata-se da determinação psíquica que nos faria enlaçados por um destino que escapa a nossa consciência.

Dunker na sua eloquência desperta uma inquietação ao jogar luz no problema da justiça penal. Aquilo que é considerado crime teve que ser previsto. O Direito funciona para os conflitos bem delineados. Apoiamo-nos nessa ilusão de tudo estar prescrito, se houver alguma ação não antecipada pelo sistema jurídico, por mais hedionda que seja, deixa de ser crime. O que é direito e o que é justo? Quando estamos diante uma exceção? Algo que precisa contrariar a lei, o que ele chama de exceção transformadora e remete ao mito de Antígona. Como construir novas formas de pensar e trabalhar com conflitos que levem em conta as diferentes perspectivas e, principalmente, o sofrimento humano e universal?

Reitero que os conferencistas foram muito além do que pude compor a partir da memória, mas na condição de psicanalista vejo a importância de transmitir o resgate associativo daquelas pegadas deixadas em mim na proveitosa jornada.


________________________________
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/