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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    42 Junho 2017  
 
 
LITERATURA

SOBRE A VOZ FEMININA E A RESISTÊNCIA DO CORPO - RELATO DE UMA OUTRA GUERRA


MARIA CAROLINA ACCIOLY [1]



Svetlana Aleksiévitch, escritora bielorussa, Nobel de literatura em 2015, escreveu seu primeiro livro em 1985, reeditado e ampliado em 2002 - A guerra não tem rosto de mulher-, o qual vou comentar aqui. Autora de outros livros importantes que trazem depoimentos históricos, como Garotos de zinco (1989), Vozes de Tchernóbil (1997) e O fim do homem soviético (2015), ela reconta a história oficial através de narrativas pessoais, transmissões orais, vozes humanas e suas emoções. A partir da escuta de narrativas é reconstruída a história através de afetos, de ruídos, de silêncios, de singularidades. Sabemos pela experiência analítica como a escuta e a reconstrução da própria história têm efeitos subjetivos transformadores.

É verdade, a guerra não tem rosto de mulher. Mas quando narrada por vozes femininas como neste livro, mostra uma guerra que não conhecemos pela História, uma outra face do horror. Horror que é preciso lembrar e testemunhar. Verdades insuportáveis. Elas (nós) querem(os) e não querem(os) esquecer. Não dava para esquecer e nem para lembrar. Como uma mulher disse em seu depoimento: "é terrível lembrar, mas é mais terrível ainda não lembrar". Há memórias que ficam inscritas, cravadas no corpo. Mulheres que depois da guerra seguiam sentindo cheiro de sangue e tinham reações alérgicas ao colocar roupas vermelhas. Pesadelos e gritos de madrugada as acompanham por toda a vida. Alguns relatos falam que elas viram tanta atrocidade - algumas passagens, tão cruéis, beiram a desumanidade, me doeram tanto ao ler que mal consigo reescrevê-las aqui - tantas atrocidades e horrores, e maldade e ódio, coisas que enlouquecem. E, segundo os relatos, lá na guerra não enlouqueciam, não adoeciam (apesar da fome, frio, dores). Sentir ternura e amor colocava em risco a sobrevivência. Um soldado que não suportou matar foi executado. Mas, depois da guerra, muitas adoeceram, enlouqueceram, doía cada lembrança, na carne viva.

A autora diz que as lembranças são um renascimento do passado, que é uma criação. As lembranças criam. O que a autora criou a partir da criação em cada narrativa, e o que nós leitores criamos a partir da leitura/escuta. Eu li/criei uma história sobre afetos, sobre o humano e o amor que emergem em detalhes e brechas do ódio e do desumano, da onipresença da morte, da guerra. Os detalhes e as brechas me parecem a marca dessa voz feminina nestas mulheres. "A memória feminina sobre a guerra, em termos de concentração de sentimentos e de dor, é a que tem mais 'tempo de exposição", a autora nos diz, "é ainda mais terrível e angustiante matar, porque a mulher dá a vida. Presenteia, carrega-a por muito tempo dentro de si, cria. Entendi que para as mulheres é mais difícil matar."

Muitas dessas mulheres que foram para o front eram meninas. As aceitavam a partir de 18 anos mas há relatos de meninas de 16 e 17 anos. Meninas que carregavam o fuzil "como quem segura uma boneca". O desejo de ir para o front chamou minha atenção. Queriam ir para a linha de frente. Meninas novas ainda na escola. Mães que deixariam os filhos. Porque ficar na retaguarda parecia menos luta? Queriam ir para a luta armada, sentir que lutavam. Como uma delas relata: "Somos uma geração em extinção que acreditava que há coisas maiores do que a vida humana. A pátria e a Grande ideia". Havia um romantismo da revolução. Há o relato de uma menina que insistiu muito para ir ao front, e que o comandante, relutante, sentia pena, sentia-se mal, mas milhares de soldados haviam morrido, precisavam mandar reforços, ainda assim ele tinha medo e pena que elas perdessem a humanidade, a doçura, queria "que a guerra não mutilasse suas almas".

Há muitos relatos sobre o corpo da mulher afetado pela guerra. Mulheres que deixavam de menstruar, uma que ficou mais alta, muitas que ficaram com cabelos brancos, que mudaram a fisionomia. Haviam os abusos e assédios sexuais. Uma mulher relata que foi ao médico depois da guerra; ao ver os exames, ele perguntou quantos enfartes ela tinha tido na vida pois tinham cicatrizes no seu coração que apareceram no exame, e ela disse nenhum. Mas reconheceu que o coração partiu na guerra, e estava lá, visível, no registro orgânico do corpo, além do simbólico. Outra mulher de linda voz perdeu-a na guerra e a voz só voltou quando retornou à casa. Fome, frio, medo, dor física, escutar bombas e tiros, tudo isso provocou efeitos sobre o corpo e o psíquico. E as narrativas, ao relatar a história do corpo afetado, produzem figuras simbólicas que falam como o afeto, o sentimento, a dor psíquica, a culpa por tantas mortes também marcavam profundamente o corpo delas:

"A alma de uma pessoa envelhece durante a guerra. Depois da guerra, nunca mais fui jovem", "até hoje não tenho rosto de mulher", "aos dezenove anos meus cabelos ficaram brancos", "perdi as lágrimas... o dom das lágrimas, um dom feminino".

Ou essa frase dita por um homem, ex soldado e marido de uma delas, que se amaram na guerra: "Eu tenho um conhecimento mais concreto da guerra, mas ela tem o sentimento. E o sentimento é sempre mais brilhante, sempre mais forte do que os fatos. (...) Você não imagina como é bonito o riso de uma mulher na guerra. A voz de uma mulher."

Uma das coisas que mais me afetou foram as brechas e detalhes que elas criavam para se fazerem humanas, se fazerem mulheres. Elas relatam como o ódio, necessário para viver a guerra, se apropriava de seus corpos e pensamentos, mas também relatam que ficavam acordadas a noite apenas para ouvir pássaros, que cantavam para os soldados quase morrendo pois a voz de uma mulher cantando era algo acolhedor que todos ali sentiam falta, que a todos comovia. Uma se escondia à noite para dormir com um vestido que tinha trazido escondido. Ficou presa uns dias por isso. Numa passagem triste e ao mesmo tempo bonita havia feridos no meio do campo, precisando ser resgatados, e cada vez que algum soldado chegava perto, recebia tiros dos alemães; então uma menina levanta, era possível ver que era uma menina pois ela tirou o chapéu, e ela começa a cantar... e isso cria uma pausa, uma brecha, param de atirar, talvez para poder escutar aquele canto de mulher, e ela consegue resgatar um ferido. Uma pausa de humanidade.

Outra mulher conta que quando ela estava indo para o front pensou em comprar uns sapatos de que ela tinha gostado, sapatos de salto, e perfume. Coisas que não usaria na guerra. Diz que ela não queria acreditar na guerra: "É difícil renunciar imediatamente à vida como era até então. Não é só o coração; todo o organismo opõe resistência". Essa fala me fez pensar que o não menstruar, os cabelos brancos, que podem ter relação com a falta de alimentação, magreza e a condição sub-humana que viviam, também podem falar da resistência do corpo pulsional, um corpo que resiste. Afinal aconteceram casos por exemplo de mulheres que engravidaram na guerra. Alguns casos de amor, gravidezes até desejadas, outras indesejadas e até consequência de estupros. Houveram abortos, suicídios e filicídios. Deixar de ser mulher na guerra era de certa forma uma resistência. Manter-se mulher na guerra, também. O corpo resiste, cada qual à sua maneira. Muitas destas que "deixaram de ser mulher" voltaram a ser mulher depois, outras nunca sentiram-se mulher de novo.

Quando um comandante enviava meninas alistadas para posições não no front, mas como escrivãs, na cozinha etc, e ele comentou "que pena, são bonitas", uma delas se exalta, o que a beleza tem a ver com isso?, e elas insistem que querem ser militares, e enfim o comandante as envia ao front, ao horror. Há relatos também de mulheres no meio do confronto preocupadas com não se ferirem no rosto, ou nas pernas, não queriam morrer feias. O que a beleza tem a ver com isso? Uma delas disse, quando um soldado se apaixonou por ela, para eles esperarem o fim da guerra, pois não é possível amar onde não há beleza. Outras tinham urgência pelo amor ali mesmo, qualquer forma de afeto. Segundo a autora, a beleza aparecia como algo indestrutível da existência das mulheres. No meio do caos, se preocupavam em limpar os sapatos e roupas, não queriam ficar sujas de sangue e lama, queriam se limpar, se arrumar, cantar. Escondiam brincos ou anéis para dormirem com eles. Encontravam nesses detalhes de beleza, o fazer(-se) beleza, fazer-se mulher e humana. Uma beleza feminina que emerge nos discursos, nos "detalhes, nuances, cores e sons". Elas contam como eram bonitas as manhãs na guerra, olhavam o nascer do dia, e podia ser o último. Viam beleza ali, nisso. "Elas se lembravam da guerra como uma época da vida. Não tanto das ações, mas da vida" de maneira que, segundo Svetlana, o pequeno vence o grande, o humano vence o desumano, a pequena história, dos detalhes, do íntimo, é contada ao invés da Grande História da Vitória.

A autora diz: "antes eu achava que sobreviver ao sofrimento deixava uma pessoa mais livre, que ela pertencia então apenas a si mesma. Que sua própria memória a defendia. Naquele momento, estava descobrindo que não, nem sempre". Depois da guerra tinham medo da vida. "Depois de aprender a odiar era preciso aprender a amar de novo".

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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim e do grupo do Feminino.




 
 
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