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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    46 Junho 2018  
 
 
POLÍTICA DA PSICANÁLISE

PARA ENTENDER MELHOR A QUESTÃO DA NÃO REGULAMENTAÇÃO DA PSICANÁLISE


Ana Maria Sigal [i]



Como se pode regulamentar um tratamento psicanalítico?

Que lei pode determinar uma alta, qual é o conhecimento teórico que responde à verdadeira psicanálise? Há uma escola teórica que seja mais psicanalítica que outra? Há uma instituição que seja a legítima representante da psicanálise?

Definitivamente não. Com frequência se escuta dizer que regulamentar a psicanálise seria uma forma de proteger este saber, já que impediria que fosse exercido por qualquer um. No entanto, pensamos exatamente o contrário - cumprir leis enunciadas externamente torna estes enunciados vazios, uma vez que estes não são enunciados produzidos desde um pensamento ético-político interno ao próprio saber. Esta ética nos diz que a psicanálise é um saber subversivo que enfrenta o sujeito com sua verdade e que o caminho que se percorre, tanto no tratamento quanto na formação, é singular e único.

O importante é que existe um enunciado comum: a psicanálise não é um saber teórico desengajado da prática e sua transmissão se funda essencialmente na análise pessoal, condição do conhecimento do próprio desejo inconsciente. A formação complementa-se com a prática clínica supervisionada e o conhecimento teórico. Justamente estas são as condições éticas, o chamado tripé da formação psicanalítica, que impedem que a psicanálise seja regulamentada por uma lei externa a si própria, uma lei jurídica ou de Estado, ou uma deontologia profissionalizante elaborada por um conselho profissional, CRP ou CRM, que diga quem é ou não um psicanalista.

Na psicanálise se trata do encontro com uma verdade, a verdade do sujeito, que não segue as leis da lógica cartesiana e sim as que regem o inconsciente. Dito isto, vemos que tanto a terapia quanto a formação têm leis e ética próprias, que decorrem do próprio saber. As leis externas a ela pertencem a um esquema burocratizante que enuncia normas a se cumprir. Lembremos que mesmo se Freud nos diz que a psicanálise é uma psicoterapia, ela tem diferenças contundentes em relação ao que as associações de psicoterapias definem como o seu fazer. Esta questão levanta uma grande polêmica na França quando se tenta regulamentar a lei de Saúde Mental, o que nos põe em contato com as grandes questões políticas – ou seja, as questões de poder - que circundam esta problemática, já que se ligam aos planos de saúde, aos laboratórios que propagam os remédios psi, e aos DSM 4 e 5, que acabam expulsando a psicopatologia psicanalítica para impor a figura das síndromes como nomenclatura para a classificação das doenças mentais.

Sobre a burocratização da psicanálise e do conhecimento se apoiam os grupos que desejam lucrar ou se apropriar do prestígio que a psicanálise tem alcançado em mais de 100 anos de prática.

As instituições que querem se apropriar desta prática por meio da regulamentação formam até 2000 psicanalistas por ano e respondem ao tripé propondo 50 sessões de análise via internet, um conhecimento teórico que mistura teoria a elementos religiosos - no qual o supereu e o diabo formam uma unidade moralizante - e cuja prática clínica inclui mandatos a serem cumpridos para se obter saúde. O poder da sugestão e a obediência funcionam como elementos sobre os quais se apoia a transferência, dando aos pastores o poder de providenciar a saúde magicamente, contrariando toda ética interna ao pensamento psicanalítico. Com o tempo, estas instituições vão se aprimorando e escondendo cada vez mais as inaceitáveis evidências de que respondem a uma moral que tem por objetivo o submetimento de seus fregueses e o aproveitamento econômico do dízimo. Hoje em dia existe o “sindicato de psicanalistas” que oferece formação e titulação; nada os impede, já que qualquer profissão pode ser sindicalizada, desde podólogo até encanador, mas ler seus programas e suas propostas de ensino nos evidencia sua estranheza em relação à psicanálise. Existem numerosos agrupamentos que escondem sua ideologia e se utilizam do tripé como elemento formal para oferecer uma suposta formação. Basta ver as propagandas do IBCP, que oferece formação em psicanálise e embriologia, para entender como estas instituições procuram lucrar com o ensino de uma pretensa psicanálise.

O texto de Freud, A questão da psicanálise leiga (1926), inaugura uma problemática fundamental no campo da formação e damos a ele um espaço singular. Neste texto, Freud defende Theodor Reik, destacado membro de sua comunidade, que foi denunciado como charlatão e perseguido pelo Estado por conduzir tratamentos sem um título que o habilitasse para isso. Aqui Freud dá uma resposta ao Estado e à comunidade médica, defendendo a ferro e fogo a ideia de que o psicanalista se forma a partir de sua própria experiência de analisando, e que o saber médico não contribui com base alguma para este ofício, como justamente nos mostram determinadas paralisias histéricas, que não seguem as bases neurológicas que lhes dariam sentido. Pelo contrário, nos casos de histeria nas quais a paralisia é uma conversão, o saber médico impede a escuta do recalcado, porque impõe um saber científico que não considera as determinações que afetam o corpo a partir dos fantasmas, onde um sintoma orgânico explicita um conflito psíquico e não segue as vias neurológicas esperadas. O ataque a Reik é um ataque à própria psicanálise, à sua descoberta fundamental - o conceito de inconsciente - e ao valor da fantasia e da palavra na produção do sintoma. Freud nos diz que, como profissão, a psicanálise é uma profissão impossível. Preferimos entendê-la como um ofício.

Uma tentativa vinda de fora do campo psicanalítico - aquela que dá origem ao Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, Movimento do qual nosso Departamento de Psicanálise faz parte - aconteceu no ano 2000, quando o deputado da bancada evangélica Eber Silva apresentou uma lei no Congresso para transformar a psicanálise numa profissão.

Este projeto foi apoiado por uma sociedade chamada Sociedade Psicanalítica Ortodoxa Brasileira (SPOB), que promete um título profissionalizante; ao término do curso - que exige poucas horas de análise, uma supervisão on line e o estudo de algumas apostilas que distorcem o saber psicanalítico - se pretende responder, de forma espúria, ao tripé freudiano.

O movimento Articulação abriu uma luta intensa, esteve no Congresso, encontrou deputados aliados, explicitou os motivos pelos quais nos opúnhamos a esta regulamentação e conseguimos que a lei fosse arquivada. Finalmente, anos depois, em função deste arquivamento o TRF negou permissão à SPOB para desempenhar atividades profissionais de psicanálise no país. O tribunal chegou a um entendimento unânime após julgar a apelação da instituição e considerou improcedente seu pedido de ministrar cursos, realizar debates e conferências sobre psicanálise, e praticá-la como profissão em todo o território nacional. Apoiou-se na ideia de que a formação em psicanálise não integra ainda o elenco dos currículos de graduação aprovados na legislação atual. Nenhuma universidade dá o título de psicanalista, e esperamos que assim se mantenha. Isto abre outra discussão sobre psicanálise e universidade. Entendemos a universidade como um aliado importante para a pesquisa e sua relação com outros saberes, acreditamos na importância de que a Psicanálise se inclua na graduação e na pós-graduação como saber teórico, mas discordamos que na universidade possa haver formação de analistas, já que aquela não poderá atender aos outros elementos do tripé. Somos contra a possibilidade de que a universidade regulamente a psicanálise como profissão ou dê titulação de analista. Por enquanto de fato inexiste uma lei que regulamente a profissão de psicanalista e batalhamos para que a situação permaneça desta forma.

No decorrer destes anos, fomos desenvolvendo outras lutas, sempre ligadas ao problema da regulamentação da psicanálise. Pronunciamo-nos contra o Ato médico, enviamos cartas ao Congresso e conseguimos, junto a outras instâncias que lutaram por isto, que não se transformasse em lei. Um confronto importante se desenvolveu em relação às instituições que regulamentavam as psicoterapias, em especial a ABRAP. Entendemos que as psicoterapias se regem por uma forma diferente de entender os pilares que sustentam a psicanálise e não temos nada contra sua regulamentação, mas pretendemos que a psicanálise fique fora destas tentativas, não porque seja o “ouro puro”, mas porque seus objetivos e princípios éticos são diferentes. A lei que se apresentou para a regulamentação inclui desde florais da Bach e cromoterapias a outras. Nada temos a dizer sobre sua validade mas, sim, sabemos que nada têm a ver com o modo em que se conduz a cura, se compreende o sintoma e se trabalha a transferência em psicanálise. Nada temos contra a regulamentação das psicoterapias gestálticas, cognitivistas comportamentalistas, apenas pretendemos que a psicanálise não esteja incluída nesta regulamentação, já que seu objetivo e ética são diferentes. Na psicanálise se parte da condição conflitante da própria constituição cindida do sujeito e o que está em jogo numa análise é se confrontar com esta condição. O sintoma se entende como uma fala, como algo que o sujeito tem a dizer, e o objetivo não é apagar a fala, e sim aproveitá-la para encontrar os deslocamentos, as condensações, os recalques que nos permitem aceder ao estrangeiro em nós.

Todo este complexo campo de nosso saber nos depara com a impossibilidade de ter uma regulamentação que nos dê garantias, já que um título de psicanalista pretenderia dar-nos certezas sobre um saber que sempre escapa, que se descentra permanentemente, abrindo novos enigmas e novas angústias.

Hoje uma nova tentativa de Regulamentação aparece no Senado, esta vez sem disfarces, como foi a última tentativa que pretendia regulamentar a psicanálise junto às terapias naturistas. Desta vez, à cara limpa, o senador Telmário Mota apresenta a PL101/2018,com o título de “Regulamentação da psicanálise”. Lendo a proposta vemos que seu espírito nada tem a ver com os princípios e a ética da psicanálise, pois aborda estudo, pesquisa e avaliação do desenvolvimento emocional e processos mentais e sociais de indivíduos, grupos e instituições, com a finalidade de análise, tratamento, orientação e educação, propõe a elaboração de pareceres técnico científicos e nos diz que o exercício da profissão de psicanalista zelará pela relação de transparência com o paciente e seus familiares ou responsáveis, prestando-lhes as informações adequadas e pela segurança do paciente e demais pessoas envolvidas no atendimento, evitando sua exposição a riscos.

As numerosas outras indicações que não se albergam dentro da psicanálise mostram que o senador pouco conhece sobre o que pretende um tratamento psicanalítico, assim como nada sabe sobre sua formação. Oferece também adjudicar o título de analista àquele que tenha exercido durante três anos a prática da psicanálise, tentando com isto seduzir numerosos profissionais que sentiriam assim que têm uma titulação.

Acredito que temos motivos mais do que suficientes para lutar para que nenhuma instância legal possa se atribuir a função de ser a verdadeira autorizadora deste saber.



[i] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora e supervisora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Representante do Departamento no movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.




 
 
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