PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    46 Junho 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

VIDAS EM TRÂNSITO


Nos dias 04 e 05 de maio de 2018 aconteceu o evento Deslocamentos, organizado pelo coletivo Escutando a Cidade em parceria com o Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise.

Nosso Coletivo é composto pelos psicanalistas Alessandra Sapoznik, Luiza Sigulem, Miriam Chnaiderman, Pedro (Peu) Robles e Soraia Bento e pela historiadora Paula Janovitch.

Nossa proposta é um exercício de leitura e registro do devir da cidade, em particular nossa São Paulo, em seus múltiplos desdobramentos na psicanálise, arquitetura, arte e política (ver site www.escutandoacidade.com.br). Propusemos esse encontro com a finalidade de compartilhar o trabalho que desenvolvemos em ressonância com vozes parceiras que pensam e vivem o universo da urbanidade. Tomamos como ponto de partida os deslocamentos como conceito psicanalítico, como viagem, como mudança de povos e/ou indivíduos de um lugar para outro e como experiência de descentramento do sujeito.

Como coletivo, trabalhamos desafiados pela composição das diferenças e afinidades que nos unem e provocam. Construímos nosso texto a partir de sextantes que configuram um círculo.

A abertura do encontro foi feita por Alessandra Sapoznik e Luiza Sigulem que demarcaram os pressupostos do grupo; em destaque, as ideias de que a escuta psicanalítica excede o interior do sujeito e de que a errância representa uma como afirmação de outras formas de viver. Benjamin nos inspira a nos des-orientarmos pela cidade.

Encerramos a empreitada com um sarau para musicar nosso desejo de celebrar a vida em expansão, exaltando a criatividade e potência dos encontros na diversidade. Os músicos palestinos Yousef Saif e Ian Nain e o brasileiro Francisco Lobo encontraram a voz do poeta angolano Ermi Panzo para chorar a dor do negro a quem profetizaram o ser ninguém, a dor do amor perdido na distância mas, acima de tudo, para dar expressão artística à busca pelos ideais políticos e sociais.

Que falem as vozes que estiveram presentes, seja como comentadores nas mesas, seja como escutadores-viajantes.



MESA NOVAS HISTÓRIAS


Miriam Chnaiderman [i]


Foi depois de muita discussão sobre o evento que quisemos marcar o início com uma mesa que trouxesse histórias de trabalho e luta. A primeira mesa do evento Deslocamentos seria emblemática de como pensamos os desterros, perdas e os não-lugares. Como nos ensinou Vilém Flusser, em belo ensaio de Márcio Seligmann-Silva [ii], o apátrida pode ter uma possibilidade de criação livre das amarras do enraizamento. Abertura para mundos possíveis. Em um contemporâneo eivado de histórias tão dolorosas, de barcos apinhados cruzando oceanos, de devastação e desrespeito com indígenas, com a miséria aumentando em um Brasil tão triste, queríamos que a possibilidade da vida e da criação se fizesse presente. O que nos norteou foi buscar uma roda de conversa com pessoas que fizeram de sua vida uma possibilidade de luta por um mundo melhor. Marcávamos assim uma posição de luta e não de melancolização ou vitimização. Tudo isso foi fruto de muita conversa no coletivo, onde Luiza nos alertou sobre o risco da estigmatização do refugiado.

Na escolha daqueles que participariam dessa roda de conversa, achávamos fundamental a presença de um indígena, pois a luta deles é imensa. Ter um indígena na mesa inicial marcava nossa solidariedade a uma dura luta secular e que se agudiza nesse Brasil sombrio de hoje. Convidamos Tiago (liderança do povo Guarani Mbya), Karai Tataendy em guarani. O refugiado do oriente seria representado pela militante síria Sara Ajlyakin. Pensamos no trabalho do artista plástico Ícaro Lira para falar dos restos e da memória perdida. Ícaro não pôde participar e convocamos Edith Derdyk, também artista, que traça com seus fios do fazer artístico uma tessitura entre a arte e a experiência na cidade. João Junior é diretor do grupo Estopô Balaio, que faz um lindo e importante trabalho no Jardim Romano, periferia de São Paulo, onde mostra possibilidades de elaborar o traumático provocado pelas enchentes devastadoras. Interessou-nos apontar caminhos de criação em meio à destruição atroz do abandono do poder público, resgate de histórias e mundos perdidos, destruídos, assassinados.

Não sabíamos como seria esse encontro, as pessoas não se conheciam. Eram diferentes histórias e diferentes formas de estar no mundo. Meu papel como moderadora era extremamente delicado.

Sara Aljyakin pede para nos encontrarmos antes, todos que estaríamos juntos na abertura do evento. Marcamos em uma padaria em um sábado final de tarde. Fomos eu, Paula, Alessandra, Soraia e Peu do Coletivo, Sara e Ícaro. Sara estava aflita com seu português, queria saber se achávamos que ela podia mesmo falar em português. Cheguei na padaria um pouco antes, sentei em uma mesa de fora, olhando para a rua. Era um dia quente. Entardecia. Logo vejo uma jovem mulher, muito linda e moderna, cabelos muito negros, chegando. Logo nos reconhecemos e nos apresentamos. Sara é sorridente, muito vivaz e afetiva. Falamos um pouquinho e logo ela pede para ir até a calçada fumar. Na calçada um homem negro alto, cabelo dread, está sentado buscando alguma comida ou dinheiro. Veste-se estranhamente, muito colorido. Imediatamente pede um cigarro a Sara que prontamente lhe oferece um e o acende. Fica falando com esse também jovem sempre com muita alegria e desenvoltura. Aquilo tudo me encanta. Sara tinha vindo a pé do Bexiga até Higienópolis. Tem uma outra relação com a cidade. Uma relação de entrega e abertura.

De fato, a relação com a cidade esteve presente em todas as falas.


Karai Tataendy agradeceu, no início da roda de conversa, a oportunidade de estar junto com pessoas que lutavam como ele e que faziam com que soubesse que a sua luta não é única, não são só os povos guaranis que sofrem. Relata uma dura luta pela demarcação das terras e de como não podiam respeitar suas tradições, como o nomadismo. Na década de 80 tinham duas aldeias e hoje são 8 aldeias: “a gente tá fazendo a auto-demarcação de resistência”. Karai Taetendy trouxe o filho até o Sedes. Está formando mais um líder, mantendo a tradição que vem de seu pai cacique. Termina afirmando que a única saída é a luta.


Sara termina sua fala também falando da luta. Não quer ouvir que é bem-vinda no Brasil. Quer lutar junto por um Brasil melhor. Sara, que em Damasco trabalhava em uma tese sobre a cidade e foi se sentindo deslocada, sem lugar. Na luta contra uma ditadura opressiva precisou se exilar. No momento em que a ONU decidiu não contar mais os mortos na Síria, Sara perdeu sua escrita. Lembra de Adorno, para quem o único lar é a escrita. E, esse lar, Sara não tem mais. Fala da dor do exílio, cita Eduardo Said: o exílio é uma morte sem a misericórdia da morte. Mas, Sara luta: “Entrei no urbano via luta. Quero ser uma sujeita política junto com vocês”.

João conta da sua história de nordestino, de como seu sotaque era considerado “bonitinho”. Conta de seu processo de busca através da cidade, de seu lugar silenciado nessa cidade barulhenta. “Eu queria ganhar o mundo e queria que o mundo me ganhasse”. Passa então a nos apresentar o Jardim Romano, onde a enchente não fica nos pés, mas “fica no gogó”. Lá encontrou seus interlocutores e pares. E explica: “Em Natal, estopô balaio é: quando você tem algo que está entalado dentro de você, você dá o estopô balaio porque aí você vai e resolve. Era preciso dar o estopô balaio na cidade”. Quando as pessoas precisam sair de suas casas e continuam resistindo, elas estão re-existindo.

João afirma que assim aconteceu a grande cura de sua vida: “Jardim Romano me espelhou. Lugares da poesia e do sensível instalados. O que a gente quer é ser ouvido e ser sujeito nessa cidade. Aí atravessei o espelho”.

Edith Derdyk, convidada às vésperas diante da impossibilidade de Ícaro Lira estar no evento, foi de uma generosidade ímpar. O trabalho de Edith já nos interessava e isso se confirma na sua linda fala. De início, afirma seu desconforto:

“Estou passando por uma experiência de deslocamento, desconfortável nessa cadeira”. Deslocada. Depois conta de sua experiência de deslocamento e descolamento de sentidos desde 2001. Como educadora, tem trabalhado com a “caminhada como prática poética”. Lembra da música de Gilberto Gil, “como se ter ido fosse necessário para voltar” e depois a de Caetano, “minha língua é minha fratria”. Língua/pátria. Nesse momento as lágrimas escorrem e se dirige a Sara, comovida com a sua fala. Conta que é judia, acentua que ser judia não é concordar com a política de Israel. Sua posição é clara, de oposição. Fala então do desejo de evasão e do desejo de refúgio como constituintes da experiência humana. É sábia sua frase: “o deslocamento e o descolamento são fundamentos para a reinvenção da existência”. Ali confirmamos, nós do Coletivo, o que nos moveu na construção desse comovente encontro.

Assim como João, Edith foi atrás das bordas. Juntou-se a um grupo que queria entender onde termina e onde começa a cidade. Queria o lugar fronteiriço, esse que é o entre. O lugar da lama, que não é nem terra nem água.

Uma moradora do Jardim Romano, quando João contou que queria fazer teatro, falou que sua vida podia ser contada em três atos: água, lama e pó.

Assim, assistimos a cidades-taba indígena, cidades assoladas e artificialmente transformadas por ditadores assassinos, a cidade de lama, água e pó, até chegarmos nas bordas que nos constituem.

Um lindo encontro onde mundos diversos se cruzaram e se encontraram. Sempre pelas bordas, mas juntos no engajamento pelo que é a reinvenção da vida.





MESA A LÍNGUA ERRANTE / O APÁTRIDA


Nelson da Silva Junior [iii]




Tal como o judeu errante não é apenas o judeu errante, a língua errante não é apenas uma língua à deriva do tempo e do espaço. O exilado, o desterrado é mais do que apenas uma vítima infeliz da exclusão do outro. Seu estatuto é aquele de um ponto de vista sobre o humano como tal em relação com o sentido e seus limites, com o não sentido e, portanto, com a linguagem enquanto tal. A língua errante, tal como o exilado, possui a meu ver o estatuto universal da exceção à regra. Com efeito, o exilado vive e mostra o paradoxo simultâneo do excesso e da deficiência da regra.

Seria esse o mesmo estatuto de um apátrida da língua? Barbara Cassin propõe que “a marca do exílio é a transformação da relação com a língua: o exílio desnaturaliza a língua materna”. Em outras palavras, face à outra língua, uma dupla perda nos acomete: nossa língua perde sua coincidência, sua superposição com o todo. Perdemos um universo de certezas e a certeza de nosso universo. Ou seja, simultaneamente à perda do sentimento da língua como co-originária ao mundo, descobrimos que já éramos órfãos sem sabê-lo, amátridas no après-coup. Um pouco como no verso de Paul Celan, esse poeta romeno que escrevia em alemão: “minha língua materna é a língua dos assassinos de minha mãe”.

Mas o que então nos tornaria apátridas da língua? Como rebater a diferença entre a relação materna e paterna em nossa moradia e com sua perda nas línguas?

Talvez considerando que o estado de orfandade materna ainda não exclui uma paternidade adotiva. Pois podemos viver, e de certo modo vivemos sempre exilados da naturalidade do sentido. Isso não impede que adotemos uma segunda ou terceira língua como novo lar e morada. Mas essa adoção implica a possibilidade de que a perda da língua materna não seja a única, nem tampouco nossa derradeira perda. Outras expulsões, outros exílios são possíveis. Lembro-me aqui do tocante filme Uma temporada na França , que retraça a dor desta dupla exclusão, da pátria e a da língua de adoção. Só aqui começa a condição de apátrida da língua. Pode-se perder a pátria adotiva e sua língua. O apátrida da língua seria então comparável àquele órfão adotado e posteriormente rejeitado, mas sem poder ser devolvido ao orfanato, pois já não há orfanato. Nesse sentido, o exilado é o apátrida da língua, pois ele é aquele que perdeu seu primeiro, seu segundo e, muitas vezes, seu terceiro lar. “Quem sai de sua terra natal, em outros cantos não para”, assim canta Luiz Gonzaga, com conhecimento de causa.

Inversamente, podemos nos perguntar o que nos faz esquecer deste exílio, o que nos aliena do caráter universal da exceção? Por que aderimos tão frequentemente às normas de um modo cego?

Pois, é com a linguagem que nossa crença em sua condição supostamente inalterável e concreta poderia se dissolver. A alterabilidade da língua pelo sujeito parece ser indissociável de uma crítica política dos efeitos identitários das normas. A distância, o hiato entre o sujeito que se altera ao alterar sua língua e aquele que crê na identidade, nas normas de sua cultura, me parece ser o local a se fazer um questionamento radical sobre a alienação na significação enquanto tal. Nesse hiato é que podemos compreender o sentido dos três trabalhos apresentados na mesa Língua Errante / O apátrida: Caterina Koltai, Márcio Seligmann-Silva e Peter Pál Pelbart apresentaram trabalhos que pareciam ter sido planejados para serem apresentados em conjunto. Foi um grande momento do Instituto Sedes Sapientiae.




MESA NARRATIVAS DO ÊXODO E DA DIÁSPORA


Pedro [Peu] Robles [iv]

A convidada Sybil Safdie Douek discorreu sobre o exílio a partir de seu lugar nas últimas gerações de sefaraditas, ou judeus árabes. Como uma gota no oceano de judeus exilados, Douek relembra o exílio como dor e escuridão, mas também traz outra perspectiva resgatando o primeiro exílio - o de Abraão - como um exílio voluntário, vivido como abertura e promessa, como possibilidade de existência. Neste percurso, Douek se apoia em Franz Rosenzweig, por meio da imagem do judeu peregrino e errante como expressão de uma realidade histórica que, para além dela, é constituinte da identidade judaica. A partir da pergunta "Pra que existe o judeu?” do autor Maurice Blanchot em seu artigo “Ser judeu” é que Sybil constrói sua fala. Da resposta dada pelo autor, Sybil nos leva ao que Blanchot chama de “a verdade nômade”, aquela que não se apoia na certeza do solo, que move, que erra, inscrita no movimento do êxodo e do exílio. Não sendo a permanência, a certitude e a fixidez os únicos modos de residir no mundo. Pelos olhos de Blanchot, Douek descreve a verdade nômade inaugural de uma nova forma de relação com a exterioridade.

Ayrson Heráclito atrela seu trabalho às suas origens: nascido em 1968 no interior da Bahia, filho de um casamento interracial, marcado por grandes tensões de um ambiente marcado, de um lado pela misoginia e racismo, de outro pela resistência e a cultura. Essa origem atravessa sua obra, de modo que Heráclito se vê como um artista não só descendente da tradição europeia, mas também um artista dentro da perspectiva africana. Ele nos conta sobre seu trabalho como resultado de um fluxo contínuo e de muitas conexões entre África e Brasil, que está intimamente ligado à tradição da cultura africana pré-colonial, que veio para o Brasil em razão do holocausto da escravidão. Heráclito então revela ser, além de artista, um Ogã, pai cuidador dentro do Candomblé. É deste lugar, onde a religião e o artista não se separam, que Ayrson indaga: “Quais são as consequências da escravidão na alma da humanidade? Como se enfrentam essas doenças da alma?” E apresenta seu recente trabalho, que caminha nesse sentido de cura: “Os Sacudimentos: a reunião das Margens Atlânticas”. Descrito por ele como um exorcismo afro-brasileiro de dois grandes monumentos arquitetônicos ligados ao tráfico atlântico de escravos e à colonização. A Casa dos Escravos na Ilha de Gorée, no Senegal e a Casa da Torre, de Garcia d'Ávila, na Bahia.

Nas palavras de Ayrson: “Se quero sacudir algo, se tenho a proeminência de exorcizar alguma coisa, é a história da escravidão e da colonização, sem sombra de dúvida, é nisso que incide a minha ação artística, a minha reflexão crítica de artista, de cidadão e sobretudo de homem”.


Arlene Clemesha traz em sua fala, como marco temporal do êxodo palestino, o dia 29 de novembro de 1947, quando a ONU votou pela partilha da Palestina, na época governada por britânicos. No mesmo dia, os palestinos foram expulsos de suas casas. Clemesha relembra o apoio de Trotsky quanto à criação do território judaico, mas a desaprovação de como isto estava sendo feito, produzindo uma situação ainda mais trágica. Arlene retoma que boa parte da questão palestina está relacionada ao êxodo, o não ter um país, um porto. Do mesmo modo, destaca os efeitos, na vida do povo palestino, da contestação permanente da sua condição, de seu exílio, da sua identidade, do seu direito de retorno, em última análise de seus direitos humanos. Contudo, apesar da fragmentação entre cinco populações e entre outros muitos refugiados dispersos, palestinos e palestinas permanecem unidos pelo conceito de resistência, Sumud,“viver é resistir”.



 

MESA ATRAVÉS DA CIDADE


Maria de Fátima Vicente [v]



Deslocamentos através da cidade fazem conexões e trocas, trazem sustos e surpresas, levam a paralisias e a novos engates. O tempo acelera, acomoda ou extravasa. Ou ambos. A dor vem e passa. A alegria também. A criança corre com seu pano vermelho e faz lembrar a criança do poema, aquele que diz “quando a criança era uma criança”. As asas do desejo dos que deambulam pela cidade podem fazer a vida ser o que ela deve e o que ela pode ser. São Paulo não é Berlim, não é Buenos Aires, não é Tóquio. Não é New York, nem a Cidade do México. Também não é Tel–Aviv nem Teerã. Sobre ela, um de seus poetas-maiores disse: “São Paulo é como o mundo todo (no mundo um grande amor perdi)”. Por aqui perde-se de tudo e se encontra quase outro tanto em coisas e gentes.

Numa mesa do Sedes, em São Paulo, em um certo sábado à tarde, encontraram-se quatro autores em seus dizeres e uma plateia que acedeu em ser público, fazendo-se também autora de dizeres: perguntas, comentários, digressões – as livre-associações que contam e a escuta flutuante das aventuras das pulsões de vida.

Coube a mim ser mais um(a) à mesa. Invoquei minhas proteções para poder realizar a tarefa de coordenar o tempo e de dar lugar às falas. Fui contemplada, em especial depois daquele sacudimento do qual, assistindo, participamos.

Pretendi não atrapalhar. Pretendi deixar fluir, deixar a pedra rolar. Escutar a pedra-palavra na terceira margem do rio. E desejei ser capaz de ter o silêncio que a sustentasse em sua ronda. Espero ter conseguido. Houve tempo, espaço, lugar para a fala circular. Foi bom. Foi lindo. Foi verdadeiro.

Sou grata por ter estado ali, rente ao acontecimento.




COMENTÁRIOS DE PARTICIPANTES



PEDRO BERESIN (Historiador, aluno do curso Conflito e Sintoma)

Deslocamentos foi uma longa viagem. Pensei muito, muito. Muita violência, alguma beleza, muitas perguntas. Doloridas as reflexões de Peter Pál Pelbart sobre o colonialismo, ainda mais quando investigadas em suas dimensões subjetivas, aprofundadas por Sybil Safdie e Arlene Clemesha. Um lento e penetrante passeio pela tragédia da modernidade e de seu ambíguo legado. Se em meio a tanta inquietude é possível uma síntese, ela apareceu para mim na compreensão do conflito de judeus e palestinos como paroxismo do colonialismo e do Estado-Nação. Os párias da Europa e os párias do mundo árabe incapazes de ultrapassar as fronteiras – conceituais, culturais, subjetivas e afetivas – das quais eles mesmos foram vítimas por dezenas e centenas de anos. Alguém da plateia me revelou: "Há um sentido forte, potente, criativo em ser judeu, ser palestino, povos que por tanto tempo viveram sempre na diferença, na terra do Outro". Pois é, e os judeus nacionalistas, logo aqueles que tanto se debruçaram e se gabaram da autenticidade de nosso povo, foram os que mais se assimilaram à Europa: em Israel, não querem reinventar o ser judeu, querem ser alemães, franceses, espanhóis, portugueses...

Não sei se o novo virá desse filete de terra arrasada. Mas, certamente, pensar com os desterrados me abriu um caminho para o deslocamento, para o atrevimento de olhar para além das fronteiras subjetivas do colonialismo e do Estado-Nação. E nessa de pensar contra si mesmo, ousar pensar, sentir e praticar identidades sem exclusão, diferenças sem aversão, disputas sem inimigos, passado sem ressentimento. Atrever-se à coragem da limpeza de um Ayrson Heráclito e quem sabe, um dia, abrir-se para os encontros improváveis, como Yousef Saif e Ermi Panzo.



ANA MARIA SIGAL (Psicanalista, membro do Departamento)

Deslocamentos geográficos, territoriais, deslocamentos simbólicos, deslocamentos culturais, deslocamentos de significantes, todos eles nos situam numa zona de fronteira, todos eles nos obrigam a nos situarmos numa nova posição subjetiva. Ao mesmo tempo, lutamos por manter uma continuidade que nos permita manter aquilo que vem com a nossa história e nossa cultura.

Este evento, realizado por colegas com muito conhecimento da problemática abordada e com sensibilidade e engajamento na cidade, soube compor mesas, convidar colegas, artistas e profissionais de outras áreas que abarcaram grande parte dos problemas que é necessário abordar para entender o traumático e ao mesmo tempo o criativo dos deslocamentos. A cada deslocamento é preciso se reinventar. Os convidados conseguiram percorrer situações que incluíram a diversidade que compunha o auditório. Do começo ao fim, o auditório ficou repleto. Todos nos pensando no outro e em nós mesmos. Identificação e diferença. O público se apegando àquilo que permanecia e àquilo que tínhamos perdido. Deslizamentos permanentes.

Pessoalmente foi muito importante para mim, porque tive a oportunidade de agradecer e colocar o fundamental que foi para mim, exilada política de uma feroz ditadura, no ano 1976, encontrar um lugar de acolhimento onde foi possível encontrar trabalho e construir um projeto que renovava as esperanças de vida. Os argentinos que chegamos naquela época tivemos possibilidade de continuar trabalhando com uma psicanálise engajada politicamente, inserida na saúde pública e colaborarmos para construir um projeto de formação que já tem 40 anos e do qual este evento é um longínquo desprendimento.

Tive oportunidade de recordar e agradecer publicamente a Madre Cristina, Regina Schnaiderman, Marilene Carone, Miriam Chnaiderman, Isaias Melsohn, o Welcome que nos deram e que nos ajudou a não nos sentirmos intimidados pelo deslocamento geográfico a uma cidade difícil, mas costurada pelas redes do afeto.



SILVIA ALONSO (Psicanalista, membro do Departamento)

Múltiplas línguas, saberes, alteridades.

“... en tercer lugar, el estilo siempre parodiado de la pornoteca me habituó a considerar toda especie de lengua literária como un cuerpo cristalizado y muerto, en el cual solamente a golpes de trasposiciones y de injertos del uso hablado, técnico y dialectal, se puede nuevamente hacer correr la sangre y vivir la vida. Y siempre esta triple y única experiencia me mostraba, en el nudo donde ramifican los diversos intereses expresivos y prácticos, la fundamental interdependencia de estos motivos y la necesidad de un continuo rehacerse de los principios, bajo pena de esterilidad; me preparaba con esto a la idea de que, condición de todo avance en poesía, es siempre una atenta referencia a las exigencias éticas, y naturalmente, también prácticas, del ambiente en que se vive ” (Pavese, 1980, p. 13).

É esta uma das afirmações entre muitas do autor Cesare Pavese sobre o “ofício do poeta”, o qual sempre que leio sinto ecoar no nosso ofício, o do psicanalista. É claro que, em nosso ofício, a clínica cotidiana nos solicita um permanente “refazer os princípios”; que cada análise nos exige retomar os fundamentos para recriá-los, pois sem isso não haveria análise. Mas esta não é a única via. Para que o corpo teórico psicanalítico não vire “uma língua cristalizada nem morta”, é necessário que “a referência às exigências éticas e naturalmente práticas do ambiente em que se vive” estejam presentes.

Tem sido este um dos pensamentos norteadores do nosso fazer no Departamento e que em alguns momentos se encarna com muita força; penso que um desses momentos felizes foi o acontecimento do evento Deslocamentos, obra do Coletivo Escutando a cidade – de psicanalistas e antropóloga – que na própria nomeação já tem o abrir-se para o mundo, o nutrir-se do extramuros para fertilizar a escuta, para “atualizar e recriar os princípios”... Nesse certo nomadismo que o grupo exercita se deslocando pela cidade para conviver de perto com as línguas diferentes faladas pelos imigrantes, com os movimentos nos espaços ocupados, com os bairros inundados ou com os espaços de memórias, suas histórias e seus fantasmas, o grupo tenta estar mais próximo da alteridade e conviver mais de perto com a diversidade de escutar a cidade no cruzamento das línguas, na complexidade das histórias, na multiplicação das narrativas.

No evento Deslocamentos o grupo pôs a falar migrantes, imigrantes, refugiados, exilados na própria terra que expressaram tristezas, saudades, solidão, caminhos difíceis das experiências de desterritorialização, mas também força, acolhimentos, encontros, lutas que continuam, projetos militantes e, sobretudo, os relatos de como a criação na escrita, na arte, no teatro, se lhes impôs com força de necessidade; muito que se perde da terra, da língua, dos costumes, mas muito que se cria na construção de novos territórios de existência.

Os fenômenos das diásporas, dos êxodos, dos refúgios apareceram nas narrativas daqueles que se debruçam nos estudos da língua, da história, da cultura, das expressões artísticas, das religiões, circulando pelas figuras do judeu, do negro, do palestino, do índio, do sírio, mas também do colonizador, do senhor da Casa Grande, do branco, quebrando os muros entre os mundos e entre as disciplinas para enfim colocá-las a conversar.

Num convite para que, ao nos deslocarmos de cada perspectiva, nos descolemos daquilo que nos prende no mais fixo, o “parado ou morto de nossos pensamentos”. Como nos diz Amós Oz, “poder imaginar outras vidas, outras salas de estar, outros amores e outros pesadelos pode nos fazer sair de nossa sala de estar e ir ao encontro da outra pessoa a meio caminho da ponte”... Pontes construídas por palavras.



JANETE FROCHTENGARTEN (Psicanalista, membro do Departamento)

Eu sonhei. Sonho bom é para contar. Então eu conto.

Final de um evento no auditório do Sedes. Muita gente que chega pela entrada que dá para a garagem. Muita, muita gente, ao som de uma bela, pungente música. Vêm chegando crianças, vem chegando um lindo menino índio no colo do pai, jovens vêm vindo, ao lado de velhos, de paulistanos, de imigrantes sírios, nordestinos, de angolanos. E, aí, surge a madre, a Madre Cristina, ela é conduzida ao palco, a música cessa. Silêncio. A madre desdobra um alvíssimo tecido branco. Nele, há letras, um escrito: “Promover uma ética de trabalho que não seja simples formalismo legal, mas que comprometa o profissional com os direitos da pessoa humana”. A madre sorri, sorri, aponta para o texto, diz: “Aconteceu! Aqui, hoje, isto aconteceu!”. Ela se retira e o sonho também...

Evento Deslocamentos. A nossa Carta de princípios, em ato.





[i] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[iii] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise e professor do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[iv] Psicanalista, ex-aluno do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[v] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/