PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    46 Junho 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

EM NOME DO PAI?


MARIA BEATRIZ VANNUCCHI [i]



O evento Questões sociais e políticas na história da psicanálise: ontem e hoje , que vem acontecendo este ano, teve dois encontros até agora e contou com a participação de psicanalistas e pesquisadores de fora e de dentro do nosso Departamento. Estes falaram sobre o trabalho teórico e prático de psicanalistas com interessantes contribuições para o debate sobre o lugar da psicanálise nos espaços públicos. Porém, como disse Christiana Freire na abertura do evento, Otto Gross, Sabina Spielrein, Erich Fromm e Frantz Fanon “em diferentes circunstâncias e momentos históricos, por discrepâncias políticas e conflitos com os regimes vigentes, foram de certa maneira apagados da História”.

A apresentação de Noemi Moritz Kon dedicou-se a pensar o fenômeno de esquecimento desses autores, como um sintoma da instituição psicanalítica que “tomou como política de transmissão um modelo historiográfico arcaico, pela ‘mitificação do mestre’, um modelo personalista no qual foi construída uma lenda da autogeração, num processo de partenogênese, da psicanálise por seu valoroso pai”.

Rafael Alves da Silva, que falou sobre as origens das clínicas públicas psicanalíticas, perguntava se não seria justamente a ausência de grandes mestres o que caracteriza o momento atual e o que permitiria a abertura para a retomada dessas histórias de autores e das práticas que ficaram submersas na memória oficial. Experiências e desenvolvimentos teóricos que pretenderam ultrapassar a prática liberal privada, como as clínicas públicas, e sobre as quais ainda sabemos pouco. Basta notar que não temos ainda literatura traduzida em português sobre as clínicas públicas dos primórdios da psicanálise e alguns dos textos desses autores só recentemente têm sido estudados e traduzidos no Brasil.

A diversidade e complexidade de questões levantadas no evento não caberiam neste relato, mas vou pinçar algumas questões na sequência dos debates.

Marcelo Checchia, autor do livro Por uma psicanálise revolucionária - Otto Gross, nos apresentou a conturbada biografia e as arrojadas posições políticas deste psicanalista dos primeiros tempos da psicanálise.

Contemporâneo de Freud e inicialmente bastante valorizado, foi o primeiro autor que articulou psicanálise e política. Gross pensava a psicanálise como um trabalho preliminar à revolução, “o fermento de revolta” que levaria à “libertação da individualidade” e ao estabelecimento de uma nova ética. O acento em sua luta antipatriarcal foi patologizado pelo círculo psicanalítico, inclusive por seus historiadores. Em decorrência de um diagnóstico de esquizofrenia após uma fracassada análise com Carl Jung, Gross não só perdeu um lugar de reconhecimento clínico e teórico, como também sua liberdade e sua condição de autonomia. Sob a tutela jurídica de seu pai, Gross passou a vida entre batalhas jurídicas, internações e a condição de fugitivo, consumido pelo uso de drogas, vindo a morrer em condição de quase indigência.

Embora tenha exercido a clínica e publicado diversos textos psicanalíticos, segundo Checchia, “Otto Gross foi retratado de maneira mais justa por historiadores que não tinham interesse especificamente na história da psicanálise, mas sim pelo anarquismo, pelos escritores do expressionismo alemão ou pela sociologia de Max Weber”.

Renata Udler Cromberg em sua exposição Psicanálise na Rússia soviética e a luta de Sabina apresentou o percurso de Sabina Spielrein articulado com a história da psicanálise na Rússia soviética. Assim como Otto Gross, também fez parte do círculo psicanalítico em seus primórdios e, tendo vivido no ocidente entre 1904 e 1923, voltou para sua terra natal, já URSS, onde esteve presente no desenvolvimento do ensino, na formação e na construção de laboratórios psicanalíticos. Seu trabalho foi fundamental para o estabelecimento da psicanálise em seu país, onde chegou a contar com o apoio estatal na construção dos laboratórios, na pesquisa universitária e até em experiências pedagógicas com crianças, durante o período de Lênin. Com a ascensão de Stálin esses trabalhos perderam o apoio e foi proibido o exercício da psicanálise, por ser considerada uma prática reacionária liberal capitalista. Em 1931, a Sociedade de Psicanálise é dissolvida e desde 1936 não tivemos notícias de Sabina Spielrein. Há pelo menos três versões de sua morte, mas sabemos que, junto com suas filhas, ela foi brutalmente assassinada pelos nazistas em 1942.

Uma psicanalista que antecipou o conceito de pulsão de morte e os estudos psicanalíticos sobre a linguagem permaneceu silenciada por muitos anos, não só pelo terror totalitário e racista, mas também pela história da psicanálise. Será que podemos pensar com Gross que o traço patriarcal da instituição psicanalítica teria recalcado, ou mesmo denegado, suas contribuições?

Paulo Sergio Souza, que além de psicanalista é linguista e tradutor, participou da mesa A psicanálise e os lestes com o trabalho As outras línguas da psicanálise, apontando o preconceito, o empolamento e a fetichização da “língua psicanalítica”, sobretudo numa certa linhagem lacaniana, e a consequente desqualificação e o desconhecimento das produções em outras línguas na transmissão e na prática da psicanálise. Como se uma espécie de colonização também fosse promovida nos cultos aos mestres.

Citando a primeira epístola de São Paulo aos Coríntios, sinalizou o teor de sua fala; reproduzo um trecho aqui: “...Há, por exemplo, tantas espécies de vozes no mundo e nenhuma delas é sem significação /Mas se eu ignorar o sentido da sua voz, serei bárbaro para aquele que falo, e o que fala será bárbaro para mim” (14:8-11).

Lembrou o menosprezo de Freud e Lacan aos bárbaros, americanos e chineses. Freud desprezou a cultura americana e Lacan chegou a falar da impossibilidade da psicanálise na língua chinesa. Entremeando chistes e os usos linguareiros para fazer notar que é na terra do “entre línguas” que se dá o trabalho psicanalítico, ou que “samething can be” e que “não estamos livres do fato de que a língua nos divide, nem aqui nem na China”.

Lembra, citando um trecho de seu texto “O analista e os bárbaros”, que “a língua que habitamos (e que nos habita) é tão estranha quanto a do outro, pois é de um Outro mesmo que a recebemos, e antes de se deixar impressionar pelo estrangeiro, sobretudo para tirar consequências teóricas, convém começar lembrando que estrangeiros também somos nós... e de nós mesmos. E que se o inconsciente é estruturado como uma linguagem (e não como uma língua) isso não é sem consequência para pensar a estrangeiridade na língua.”[ii]

Na apresentação da mesa que falaria sobre Frantz Fanon, Cristiane Abud lembrou dos efeitos perversos do racismo pela recusa de lugar de reconhecimento na cena social que ele implica. Os negros “estão ali, sabemos que estão ali, mas agimos como se não estivessem. Tal aliança (com a recusa) limita a possibilidade de canalização psíquica da experiência e de palavras para dizer, a violência toma outros rumos e retorna através de atuações”. Ela propõe que façamos do mal-estar causado pela abordagem do tema do racismo uma possibilidade de representação e simbolização para reparação desta chaga.

Deivison Nkosi, pesquisador, sociólogo e ativista negro, nos apresentou o trabalho de Fanon. Médico psiquiatra de formação, Fanon se definia como um humanista, era ávido leitor de Freud e Lacan e admirador do libertário psiquiatra catalão Tosquelles. Nascido na Martinica, só foi pensar sua diferença racial quando saiu da antiga colônia e esteve frente a frente com os supostos concidadãos franceses. Até ali se definia como um francês, e foi na convivência com os franceses que se viu e foi visto como o outro negro.

Fanon pensa o racismo, o colonialismo e a alienação como conceitos interdependentes e diz que a alienação se produz em dois vetores. O espelho da cultura iluminista do colonizador reflete a branquitude como referência de humanidade. O negro colonizado subjetivamente que se identifica com a branquitude, renega seu corpo, seu ser, sua cultura, ficando no lugar do bárbaro, ou do agonizante. Esse processo extremamente violento leva o negro à negação de si mesmo e de seu corpo. A ideologia racista faz uma cisão onde a branquitude é associada à razão, à beleza, ao bem, e a negritude ao corporal, à animalidade, ao sexual. A fantasia colonial objetaliza o negro: objeto ao mesmo tempo temido e desprezado, mas também hipersexualizado e desejado.

O trabalho de descolonização implicaria a clínica por ser um trabalho a partir da própria subjetividade, um trabalho de desidentificação ao ideal branco. A biografia de Fanon e sua produção literária aponta o limite da clínica, o lugar da luta, mas não desarticula a clínica de uma dimensão política.

Tivemos ainda uma mesa, com a mediação de Cristina Herrera, onde Osvaldo Duek, jurista, nos falou de sua rica incursão na área da psicologia social. Ele nos apresentou o pensamento de Erich Fromm e seu próprio pensamento acerca do fenômeno nazista.

Colocando ênfase no fato de que o holocausto foi produto do auge da cultura iluminista europeia, Fromm analisou a formação do caráter autoritário e os efeitos devastadores do nazifascismo. Reconheceu em Schreber a antecipação da sociedade paranoide, fato que teria escapado a Freud. Propôs também que o antissemitismo e o delírio da superioridade ariana se conectavam com o terror à feminização próprio da cultura europeia.

Considerado um “culturalista”, divergia de Freud por considerar o desamparo e não a sexualidade o determinante das formações do inconsciente. Curioso que, mesmo deslocando a sexualidade como determinante das formações inconscientes, foi no campo da sexualidade que ele leu a ligação da massa ao líder e ao racismo. Fromm definiu a identificação com o líder racista como um fenômeno incestuoso, e a atração da massa à destrutividade e ao estrangeiro, ou seja, ao outro da raça ariana como um destino do sadismo e do masoquismo. Sua proposta de superação do ódio ao diferente é a descoberta interior do estrangeiro. Isso me parece tão freudiano!

As dicotomias o bárbaro e o civilizado, o branco e o negro, masculino e o feminino, o ouro puro da psicanálise e outras teorias, são dicotomias que fomentam exclusões tanto no campo social, como no pensamento psicanalítico. Os autores apresentados neste evento de alguma forma apontaram para essas escotomizações que acontecem nos sintomas sociais e também no interior das instituições psicanalíticas.

Por fim, abordo a mesa que introduziu o tema das Clínicas Públicas, mediada por Claudia Monti Schönberger, em que Rafael Alves de Lima fez um histórico das 12 clínicas públicas nos primórdios da psicanálise espalhadas pelo continente europeu, que eram chamadas de policlínicas ou ambulatórios. Estas clínicas faziam parte da política de difusão da psicanálise e formação de novos psicanalistas, e seus organizadores e mantenedores vinham de um amplo espectro ideológico.

Havia uma composição entre institutos de psicanálise, policlínicas e editoras numa política de expansionismo fiscalizado da psicanálise. Nas policlínicas ou ambulatórios foram formalizados os dispositivos das supervisões, enraizados no modelo de reuniões dos comitês secretos. Alves de Lima trouxe um mapa da rede de cruzamentos das relações de formação, entre as análises e supervisões cruzadas, mostrando o emaranhado entre os psicanalistas nestes primeiros tempos.

A intenção da estatização era uma busca, mas a maior parte destas clínicas eram dependentes de doações particulares, por um lado, e oportunidade de formação por outro. Das diversas policlínicas a única que sobrevive até hoje é a londrina. Com a chegada do nazismo, deu-se a diáspora psicanalítica.

Em sua apresentação, chamou atenção para a ausência de literatura em português sobre as clínicas dos primeiros tempos e para o aparecimento destas questões hoje no Brasil. De qualquer forma, as práticas das clínicas públicas e sociais mantêm aberta a questão do lugar do dinheiro no desenvolvimento de uma análise e na formação dos analistas. Além disso, seria interessante debater as alterações técnicas que se fizeram necessárias na saída dos consultórios particulares. Certamente no próximo encontro esses temas serão abordados.

M. Silvia Bolguese sustenta que precisamos nos perguntar porque a psicanálise não é um anacronismo nos dias de hoje, numa sociedade ferozmente neoliberal, e se ela ainda é uma prática que responde a algo do mal-estar que nos habita.

Distingue as clínicas sociais das clínicas públicas, dos dispositivos estatais de clínica, para lembrar a trajetória de vários psicanalistas deste Departamento, dentre os quais eu me incluo, que se dedicaram a pensar a psicanálise para além da cura tipo. Se Freud propôs um modelo liberal para a clínica das pulsões, isso define claramente a marca psicanalítica que faz a passagem entre sujeito e sociedade. Nesse sentido, quais seriam os limites e as possibilidades de pensar o laço social pela lente do desejo?

Por outro lado, com as questões de sobrevivência física e anímica que aparecem nas clínicas sociais, haveria uma psicanálise para ricos e outra para pobres? Aponta a diferença fundamental entre escutar sujeitos exilados da condição de cidadania e escutá-los como não sujeitos.

Todas estas questões certamente serão retomadas nas várias apresentações, com propostas distintas de clínicas públicas na próxima fase do evento.

Termino com o efeito das falas e dos debates que nos lembram que tanto nas clínicas públicas, quanto nas instituições, ou mesmo em nossos consultórios, a escuta psicanalítica só se sustenta no trânsito extramuros, no encontro com o estrangeiro, nos espaços entre as vozes, entre os corpos e as cores, para além da lógica patriarcal. Lembrar da psicanálise não-toda, entremeada por outras línguas, deixa brechas abertas para transitarmos pelo espaço público com aquilo que caracteriza a nossa escuta.

Referências bibliográficas:

Checchia, Marcelo; Souza Jr, Paulo Sergio de; Alves de Lima, Rafael (orgs.). Otto Gross: Por uma psicanálise revolucionária.Tradução e notas Paulo Sergio de Souza Jr. São Paulo: Annablume, 2017.

Cromberg, Renata. “Psicanálise na Rússia” in Souza Jr., P. S. (org.) A psicanálise e os lestes, Volume 1 – São Paulo: Annablume , 2017.

Faustino, Deivison Mendes. Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

Martins, Oswaldo Henrique Duek. Contribuições para a compreensão do nazismo: a psicanálise e Erich Fromm . São Paulo: Martins Fontes, 2017.

Souza Jr, Paulo Sergio de. “O analista e os bárbaros” in Souza Jr., P. S. (org.). A psicanálise e os lestes, Volume 1. São Paulo: Annablume , 2017.





[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[ii] Souza Jr, Paulo Sergio – “O Analista e os Bárbaros” inA Psicanálise e os Lestes. Volume 1 /Souza Jr P. S., organizador. São Paulo, Annablume, 2017, pg.31.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/