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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    48 Novembro 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

A COR DO MAL ESTAR: PSICANÁLISE E RACISMO: DA INVISIBILIDADE DO TRAUMA AO LETRAMENTO [i]

DODORA e CRISTINA HERRERA [ii]



Bom dia a todos. Sou Cristina Herrera e tenho o prazer e o privilégio de estar na abertura deste evento como Articuladora da Área de Formação Contínua e, consequentemente, na coordenação da Incubadora de Ideias pela gestão 2017-2018 junto com Christiana Freire.

Em nome da Comissão Organizadora do evento, formada por Anne Egidio, Maria Aparecida Miranda, Marisa Correa da Silva, Christiana Freire, Cristina Herrera, Heidi Tabacof, Noemi Kon e Thiago Majolo - agradeço ao Conselho de Direção e ao Departamento de Psicanálise, e em especial à articuladora de eventos Christiane Freire, pela possibilidade da sua realização.

Agradeço também à Dodora Arantes, não só como membro do Departamento, mas como parte da Diretoria do Instituto Sedes Sapientiae, por aceitar este convite para a participação no evento.

Por último, à presença e participação do historiador professor Sidney Aguilar, cuja investigação e pesquisa foi fundamental para a produção do impactante filme Menino 23: Infâncias perdidas no Brasil, dirigido por Belisário Franca.

Este evento inaugura um projeto pioneiro no Departamento, chamado: A cor do mal estar: Psicanálise e racismo: da invisibilidade do trauma ao letramento . Um projeto apoiado por este Instituto, para a formação de um Grupo de Trabalho e Pesquisa ligado a Área de Formação Contínua, que visa à compreensão do sofrimento causado pelo racismo estrutural da sociedade brasileira. Propõe investigar as marcas do racismo na construção da subjetividade brasileira atravessada por uma cultura escravagista, perpetradora deste racismo ainda vigente nos dias de hoje.

Aos efeitos de potencializar a importância deste trabalho, me parece fundamental situar o projeto, na linha do tempo, dentro da história do Departamento, e referido a um evento organizado em 2012 sobre esta temática: O racismo e o negro no Brasil: Questões para a Psicanálise. Evento que resultou em um livro com o mesmo nome, editado em 2017 com o apoio do Departamento de Psicanálise.

Este evento, na época, propôs um espaço de elaboração e reflexão multidisciplinar das questões sobre o racismo, que perpassam a relação entre brancos e negros no Brasil marcando a subjetividade de cada um de nós. Questões que atravessam os espaços da nossa prática clínica e institucional, se fazendo presentes também na formação e transmissão da psicanálise.

Maria Lucia da Silva - psicanalista e ativista do movimento negro, e integrante da ONG Instituto AMMA: Psique e Negritude - fez uma proposta, que foi trabalhada na Incubadora de Ideias do Departamento, e acolhida por Noemi Kon, nessa época Articuladora da Área de Eventos do Departamento. Uma Comissão Organizadora heterogênea de psicanalistas, membros do Departamento e ex-alunos do curso de Conflito e Sintoma, organizaram a realização deste evento.

Hoje, o grupo de trabalho - fruto de longas conversas e reflexões nos encontros da Incubadora de Ideias - A cor do Mal Estar: Psicanálise e racismo: da invisibilidade ao letramento , proposto pelas psicanalistas Anne Egidio, Marisa Correa da Silva e Maria Aparecida Miranda retoma, de certa forma, estas marcas que permaneceram no Departamento.

Anne, Marisa e Miranda inauguram hoje esta atividade, que tem como ponto de partida um trabalho de intervenção, primeiramente no Departamento de Psicanálise, do qual fazemos parte, no sentido de alertar os psicanalistas sobre um tema tão primordial e, lamentavelmente, ainda tão pouco abordado em nossa clínica.

Esperemos que este evento-intervenção ao redor da apresentação do filme, seja o primeiro de muitos que nos possibilitem continuar construindo espaços de reflexão e criação de um espírito psicanalítico aberto às problemáticas do nosso tempo, e da nossa História. Um trabalho que possa fazer frente aos efeitos traumáticos do silenciamento social - um trauma da sociedade brasileira que antes de ser individual é de ordem social. Um trabalho que incida neste desamparo discursivo produzido não só pelo racismo presente até os dias de hoje, mas pela própria denegação do racismo e dos 300 anos de escravidão, que fazem parte da História do nosso país.

Enfim, estamos aqui dando início a um trabalho de letramento de questões étnico-raciais entre os psicanalistas deste Departamento, proposto pelo projeto. Um letramento daquilo que precisa ser decifrado, que se repete e insiste em se inscrever na vida de cada um de nós e de todos, mesmo sendo denegado no discurso social.

Bem-vindos ao trabalho! Vamos deixar a palavra com a Dodora antes da exibição do filme. Num segundo momento passaremos a palavra ao professor Sidney que fará comentários sobre o filme e depois deixaremos lugar para a apresentação do projeto: a palavra para as nossas queridas colegas Anne Egidio, Marisa Correa da Silva e Maria Aparecida Miranda. Após a apresentação abriremos ao tempo de debate. Obrigada.



TRANSFORMAR O SOFRIMENTO EM FORÇA

 

DODORA ARANTES [iii]

 


A escolha do título revela o sentimento que me tomou ao terminar a leitura de O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise [iv] . Na apresentação, Noemi Moritz Kon descreve o espírito que sustentou o evento organizado em 2012 pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, registrado neste livro, que expressa o resultado de “nossa capacidade de transformar, pelo compartilhar ativo, o sofrimento em força”[v].

Ao enfrentar as questões do racismo no Brasil aprendemos com Kabenguele Munanga que “as crenças racistas não recuam, apesar de as pessoas terem mais acesso à ciência através da educação, o que mostra que a racionalidade em si não é suficiente para que todas possam abrir mão de suas crenças racistas.”[vi] Munanga vai além dizendo que o racismo brasileiro é um crime perfeito, pois “além de matar fisicamente alija, pelo silêncio, a consciência tanto das vítimas quanto da sociedade como um todo”. [vii]

Penso que esta seja uma das vertentes que este evento de 2018 avança no caminho de romper o silenciamento, fazendo com que palavras sejam plenamente expressas e as falas acolhidas.

A imposição do silenciamento é um dispositivo de poder. Dispositivo “é qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.” [viii]

O mito da democracia racial brasileira reconhecida pela Organização das Nações Unidas – ONU - em relatório publicado em 2013, [ix] avalia o racismo como fenômeno estrutural e institucionalizado em nossa cultura. [x] Institucionalizado em parte pelo silenciamento, em parte pela recusa, em parte por conveniência e muito pela conivência.

Onde estamos hoje?

Frente à desconstrução do mito da democracia racial que o silenciamento alimentou permitindo que o crime perfeito fosse consumado. Os dispositivos estão usurpados pelo poder para anunciar o desmonte da Democracia ancorada no Estado Democrático de Direito.

Estamos à véspera da proibição de nosso direito de sustentação das pautas civilizatórias. Por isso acolho como momento especial em nosso Instituto a realização deste evento que traz mais uma vez à cena o encontro da psicanálise com a política.

O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise inaugurou de forma plena esta vertente dentro do nosso Departamento, hoje ampliada com a conquista de novos protagonismos. O mergulho apaixonado na realização do evento de 2012 relatado nos textos que compõem o livro são estímulo para acolher desdobramentos que têm sido construídos durante estes anos em cuidadosa aliança e parceria.

Não menor o cuidado, em 2018, na construção de A cor do Mal Estar: psicanálise e racismo- da invisibilidade do trauma ao letramento, combinando projetos de integrantes do Departamento e o documentário Menino 23, que revela uma história silenciada durante décadas pela conivência dos racistas brasileiros que em 1933 abraçaram o integralismo, em aliança com o fascismo e o nazismo. Uma história enterrada com tijolos, desmontada pela determinação de um professor de história e a corajosa parceria com um diretor de cinema. Professor Sidney Aguilar e diretor do filme, Belisário Franca. Ponto de partida: o não silenciamento de uma jovem aluna sobre segredos de família. O documentário atinge ao mesmo tempo o mito da democracia racial e a prática nefasta da ditadura Vargas. Um soco na alma!

Ao terminar, agradeço o privilégio de ter sido convidada, pela Comissão Organizadora deste evento, para compor com a Cristina Herrera esta abertura.

Cinco minutos, ela me disse. Achei que seria fácil. Não foi. Falar em cinco minutos sobre construções, em um momento de anunciado desmonte de conquistas civilizatórias em nosso país, exige certezas que neste momento nos são interditadas.

Mas estar junto pensando o Brasil, entre pares, amigos, colegas e convidados, nos fortalece. Estar dentro do Instituto Sedes habitado historicamente pelas pautas democráticas que buscam a Justiça Social como meta, a liberdade de expressão como direito e o respeito ao ser humano como fim, nos fortifica. Por dentro e por fora. Momento histórico? Pode ser. Mas das nossas histórias pessoais, com certeza.

Ao finalizar me refiro a Maria Lucia da Silva que retomou, na Introdução ao livro Violência e Sociedade o que disse filósofo africano Joseph Ki Zerbo: “diante da luta antirracista e anticolonial, “ao deitarmos estaremos mortos”.[xi]

Seguimos à frente de pé. Juntos.


 



[i] Fotos de Noemi Moritz Kon.

[ii] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

[iii] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e diretora do Instituto Sedes Sapientiae.

[iv] O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise / organização Noemi Moritz Kon, Cristiane Curi Abud, Maria Lucia da Silva - I ed - São Paulo: Perspectiva, 2017, 304 p.

[v] Op. cit . p. 28.

[vi] Op. cit . p. 33.

[vii] Op. cit. p. 40.

[viii] Op. cit . p. 257 (a construção do termo dispositivo é de G. Agamben, referida por Pedro Mascarenhas).

[ix] No dia 12/12/2014 o jornal O Estado de São Paulo publicou um artigo que explicitou a posição da ONU a respeito do tema do racismo contra o negro no Brasil.

[x] Tânia Corghi Veríssimo, op. cit. p. 233.

[xi] Maria Lucia da Silva , Violência e Sociedade - o racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro , Maria Lucia da Silva, Marcio Farias, Maria Cristina Ocariz, Augusto Stiel Neto (orgs). São Paulo: Escuta, 2018 p.25




 
 
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