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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    48 Novembro 2018  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

UM PASSEIO PELAS RODAS DE CONVERSAS ESCUTA SEDES


SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [i]



Como convém à abertura de um canteiro de trabalho marcado pela psicanálise, no início tratou-se das formas singulares pelas quais os próprios psicanalistas estranhavam e respondiam cotidianamente ao autoritarismo crescente no cenário eleitoral. Uns contaram da repartilha conjugal de suas famílias de origem: mais fácil manter a lucidez quando ele debate democracia e Estado de direito com os primos dela e ela, com os primos dele. Outros vieram passar um momento significativo, incluído o próprio aniversário, em meio ao corpo coletivo que aquela centena de pessoas começava a formar: era agora pequena a família que lhes restava. Ali, inter-departamentos, podia haver ou não muitos conhecidos, mas era de todo modo no aconchego da comunidade Sedes que a palavra assim circulava.

Dentre outros efeitos potentes daquela primeira grande roda de conversa, um amplo grupo levou em frente a tarefa de construir um serviço de escuta da população, a ser proposto a sujeitos afetados pela situação política corrente. A clínica cotidiana praticada nos mais diferentes espaços, públicos e privados, individuais ou grupais, vinha indicando um significativo incremento da angústia restante de conflitos intersubjetivos: com a família, os colegas, os amigos. Esse afeto não mentia ao descortinar uma paisagem na qual se expressavam conflitos psíquicos diante das inquietantes estranhezas: em uma palavra, a história erótica do sujeito antagonizava com a preservação de seus ideais sociais. Nestas condições, resultava difícil descrer da própria mortalidade. Regressivamente também se perfilavam embates entre ternuras e desligamentos, entre alegrias e alergias de contato, tocando os narcisismos das grandes diferenças. Mais ainda: os corpos insones, alheios aos sonhos, em sua fantasmagoria insistiam em demandar lugar psíquico onde inscrever suas dores. Nauseante repetição mortífera: para tantos, não seria esta a sua primeira ditadura.

Levou-se precisamente uma semana para que, através das noites e do fim-de-semana, se desdobrassem um sem número de mensagens e duas estruturantes reuniões, configurando-se o dispositivo das Rodas de Conversas Escuta Sedes:

A situação política atual tem mexido com você? Você se sente desamparado(a), ameaçado(a), preocupado(a)? Tem tido pesadelos ou perdeu o sono? Está enfrentando conflitos com a família, colegas, amigos?

Venha participar das Rodas de Conversa – Escuta Sedes, lugar de acolhimento e troca de experiências.

Serão encontros pontuais, em grupos de até 15 participantes, sem agendamento prévio nem continuidade obrigatória e com duração de duas horas.

As rodas são abertas, não partidárias e gratuitas.

 



Divulgadas através de redes seletivas, que excluíram os meios virtuais de massa a fim de poder acolher a todos e de proteger o serviço de indevidas intrusões, as primeiras rodas de conversas se deram ao longo das duas semanas que precederam o 2o turno das eleições nacionais, em três diferentes horários diários. Na equipe de trabalho, registros falados e escritos prosseguiriam: 14 pessoas entre 78 e 18 anos! Muito intensos e implicados. Esta primeira roda de conversas tirou da frente a pergunta: Para quem?, ao reafirmar a aposta numa experiência que promove a circulação da palavra e a possibilidade de partilhar no coletivo e em presença: isso tem muita potência!. Habitadas por gente se sentindo em risco – físico, moral, psíquico – as rodas escutaram artistas, músicos, escritores, pedagogos, professores, jornalistas, cientistas sociais, porteiros, estudantes, ativistas, psicólogos, servidores públicos, funcionários do sistema S, agentes culturais, ambientalistas, economistas, pacientes, colegas e alunos do próprio Instituto e tantos outros, de perto e de longe, que falaram em confiança e convalidaram a corporeidade da escuta na construção de narrativas simbolizantes. Em questão, o futuro profissional, a divisão familiar, a insuficiência do voto, a autenticação para o horror.

No pós-eleição, muita gente voltou, trazendo outros parentes, colegas e amigos ou mesmo seguindo junto com o trabalho elaborativo sustentado através desses grupos pontuais com coordenação diferente a cada encontro. Novos participantes também chegaram. Por fim, as rodas também foram frequentadas por profissionais dedicados a trabalhos conexos: educadores especialistas em rodas, psicodramatistas inseridos em intervenções públicas, psicanalistas interessados em derivar a proposta para sua localidade.

Em transferência com a tarefa, coordenadores das rodas trabalharam bem juntos, às vezes por primeira vez; ali pela 4a reunião do Escuta Sedes é que se abriu o tempo de estreitar, em grande grupo, o conhecimento recíproco.

Foi na nascente desses cuidados coletivos que se puderam recolher as seguintes orientações dessa intervenção tão contemporânea: a fluidez do serviço é função da transferência institucional que o sustenta; diante da violência que quebra a coexistência se impõe o recurso à potência grupal; intensificar conexões com outros espaços de cidadania, na composição de redes de relações internas e externas, permite a derivação de projetos culturais, terapêuticos e políticos vivazes; a hospitalidade que enlaça é um ato de resistência à indiferença que se constituiu no espaço social; assim como as rodas, as aulas e discussões dos cursos e grupos de transmissão da psicanálise conduzidos por integrantes da equipe Escuta Sedes estão abertas à atualização permanente do saber sobre as subjetividades e as sociabilidades na urgência da atualidade.

Fica o convite para alunos, membros, aspirantes a membro e amigos do Departamento tomarem parte na conversa e na difusão discreta [ii] dessa roda viva que, em 2018, segue até o dia 20 de dezembro.







ENTREVISTA DO ESCUTA SEDES AO JORNALISTA GILBERTO AMÊNDOLA, DO ESTADÃO



FATIMA VICENTE



Vocês estão sentindo no cotidiano dos atendimentos o aumento dessa angústia advinda do processo eleitoral?
Sim, temos acompanhado o aumento não só da angústia, mas também dos medos, do aparecimento das fantasias mais primárias relativas ao desamparo e à vulnerabilidade frente a ameaças que se apresentam como plenipotentes… As expressões variam muito, mas chama a atenção a presença de sofrimentos mais regressivos como, por exemplo, perturbações importantes e repentinas do sono - insônias, pesadelos, etc, ou do apetite ou na relação com os limites do próprio corpo, perda da vitalidade e/ou da capacidade de enfrentar desafios corriqueiros da vida cotidiana, enfim, condições das quais as pessoas conseguem se queixar, mas não encontram recursos para lidar com elas: identificar os próprios afetos, pensar os pensamentos pertinentes às situações em que se encontram, encontrar saídas possíveis para o que se experencia como muito acachapante. Um modo de estar numa solidão que o/a encerra em um corpo sem palavras, emudecido.

O que é possível fazer para enfrentar essas angústias e medos?
Como observamos, as pessoas, mesmo em tratamento e qualquer que seja o modo, individual ou grupal, privado ou nas redes de atenção públicas, apenas o tratamento não é suficiente! Há condições objetivas, próprias do momento, que fazem pressão e que precisam ser pensadas, entendidas, elaboradas, pois não são sofrimentos pessoais, mas sofrimentos que têm relação com o coletivo e que necessitam do coletivo para serem trabalhados, superados ou, ao menos, amenizados. Para tratar assuntos coletivos o melhor jeito é conversar, dialogar, compartilhar, entre pessoas, em presença! No caso de pessoas que sequer estão em tratamento, que estão mais sozinhas ainda, enfrentando essa realidade falar com a confiança de ser ouvido e respeitado é decisivo!

Como as rodas de conversa podem colaborar para amenizar esses sentimentos?
Promovendo a conversa! Conversar está muito dificultado, atualmente. Ou as pessoas não querem conversar “sobre isso” para não desencadear brigas, ou, quando falam, rapidamente a polarização provoca rupturas ou mais silenciamento, a depender da “correlação de forças” entre os participantes da conversa. As rodas procuram promover um momento de acolhimento e proteção contra os riscos de ruptura e de silenciamento pois a força da palavra, a força da palavra de cada um é respeitada e tem lugar. Nós apostamos que as palavras são potentes, que promovem efeitos, que não podem ser lançadas ao vento sem responsabilidade, sem o cuidado para quem está ouvindo e com quem está falando. Apostamos também que conversar leva a que cada um e cada uma possa se entender melhor e entender o outro, leva a se fazer compreender e a compreender o outro...ou, ao menos, a compreender suas opiniões, ainda que diferentes, e compreender que ainda que diferentes, têm o direito de existir.

As complicações pessoais, sociais e sentimentais advindas desse período atingem homens, mulheres e crianças (classes sociais, raça e gênero) da mesma forma?
Não. Há modos diferentes de ser atingido, a violência tem, e sempre teve na história do país, alvos preferenciais. Eles continuam aí. Mas, no momento, a violência ampliou seu espectro e mais grupos sociais se descobrem, repentinamente, como alvos. Entretanto, o modo de transformar essa situação está, extensivamente, ao alcance de todos. Ou seja, a experiência da sociabilidade básica, que dá lastro à convivência em sociedade, pode ser resgatada no compartilhamento de falas e sentimentos em confiança.

Alguma história que vocês possam contar (sem identificar pacientes, claro), que tenha chamado muito a atenção de vocês?
Todas as histórias têm nossa atenção, em cada singularidade, mas o que chama mais a atenção é o quanto está presente em todas as pessoas a experiência de não reconhecer os que são muito próximos, de não se reconhecer mais numa relação onde se sabia quem era e com quem se estava: na família, no trabalho, nas relações de amizade e amorosas. Uma experiência muito forte de estranhamento, de decepção, de traição, trazendo à tona o medo, o pânico, o terror, o risco de desabamentos psicóticos ou melancólicos que nada têm a ver com o específico de cada um ou cada uma, mas que decorrem desse momento em que a violência toma o lugar das palavras.



[i] Pela equipe editorial deste Boletim.

[ii] Pede-se evitar redes sociais massivas tais como Facebook e Instagram.




 
 
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