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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    49 Abril 2019  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

SEDES, ESCOLA COM EDUCAÇÃO


Em continuidade com seu projeto clínico-político, o grupo Escuta Sedes realizou, na noite da quarta-feira 12 de dezembro de 2018, uma roda aberta à comunidade para conversar com o educador e cientista político Daniel Cara sobre o mal-estar político em nossa atualidade social. Diante da consolidação de perspectivas que subtraem a liberdade de professores e estudantes, o evento visou à construção cotidiana de narrativas em torno da vida futura que, coletivamente, temos a produzir.

Este Boletim registra a abertura da conversa por Dedé Oliveira Ribeiro e publica a reportagem de Silvia Lopes de Menezes, integrantes do grupo.



SEDES, ESCOLA COM EDUCAÇÃO: ABERTURA



DEDÉ OLIVEIRA RIBEIRO [i]

Temos vivido tempos em que o diálogo, o trabalho, a empatia e o respeito ao outro vêm se tornando cada vez mais difíceis.


Esta percepção tem levado pessoas a se unirem em esforços contra o crescimento do autoritarismo, da injustiça, da precarização do trabalho (no nosso país, desde sempre tão pior do que precário...), da negação de tudo que não é espelho.

Aqui no Sedes a luta contracorrente também tem ganhado forças. Desde setembro deste ano de 2018, os diálogos têm se intensificado nesta instituição – que desde seu nascimento valoriza a Educação e a busca aguerrida por justiça social e por direitos para todos.

Da apreensão e da vontade de fazer algo coletivamente, nasceu Ninguém solta a mão de ninguém– um grupo com aproximadamente 200 pessoas. Deste, nasceram subgrupos, infinitas mensagens de Whatsapp, cartas, palestras, rodas de escuta, trocas.

Somos majoritariamente psicanalistas, mas não só. Somos ligados diretamente ao Sedes, mas não só. Somos alunos e professores, mas não só.

Essas incríveis rodas de conversas realizadas pelo Escuta Sedes, gratuitas e não partidárias, vêm reunindo pessoas que se sentem afetadas pela situação política atual e devem continuar a acontecer em 2019.

Algumas dezenas de profissionais “da escuta e do cuidado com o outro” coordenaram rodas que já receberam aproximadamente 150 participantes que vieram falar - e ouvir.

Estudantes, educadores e educadoras, de escolas e universidades, públicas e privadas, talvez tenham sido a maioria dos presentes. As preocupações com o futuro do país se misturam com aquelas relacionadas à vida profissional, à academia, à liberdade de expressão, à cultura.

Precisamos falar desses medos. Mas também de luta e enfrentamento. Do que vamos construir coletivamente. Nas salas de aulas. Nas ruas.

Nosso convidado de hoje é Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, bacharel em ciências sociais, mestre em ciência política e doutorando em Educação pela USP.

Ele vai nos ajudar nessa empreitada, contando um pouco como tem sido a batalha em um front estratégico: a luta contra o Escola Sem Partido no Legislativo, no qual vencemos, ontem, um round[ii]. Vai falar também das perspectivas de luta no próprio Legislativo e no Judiciário. <

Passo, então, a palavra a ele, convidando a todas e todos a continuarmos juntos em outros espaços de luta também. Obrigada.





O ESCUTA SEDES EM RODA DE CONVERSA COM DANIEL CARA:
O PROJETO ESCOLA SEM PARTIDO E A CONSTRUÇÃO DE FUTUROS POSSÍVEIS



SILVIA L. MENEZES[III]



Nós, do Escuta Sedes, estávamos habituados a rodas de conversa. Nas nossas rodas, porém, marcadas pela heterogeneidade dos participantes, havia sempre uma forte circulação da palavra e dos afetos. A roda de conversa com Daniel Cara, em 12 de dezembro de 2018, seria, de certa forma, uma ousadia: pela primeira vez alguém estaria na roda sendo particularmente convidado a falar e, também pela primeira vez, teríamos um tema disparador da conversa. Que outras novidades essa roda nos traria?

Nosso convidado, Daniel Cara, iniciou sua apresentação apontando a necessidade de relacionar o projeto Escola sem Partido ao avanço do ultraconservadorismo no mundo. Contou que sua origem remonta a um texto do procurador paulista Miguel Nagib, de 2004, depois de a professora de sua filha comparar Che Guevara a Francisco de Assis. Trata-se de uma perspectiva de guerra cultural, em que conceitos sociológicos são distorcidos em teorias conspiratórias como a do marxismo cultural e em construções políticas como a da ideologia de gênero. No entanto, na visão de Daniel, movimentos contra doutrina de esquerda não teriam a suficiente força de atração para fazer com que um projeto como o Escola sem Partido fosse um risco desde o início. Cara acredita que isso só passou a ser relevante a partir da campanha do segundo turno das eleições de 2010. A descriminalização do aborto estava em pauta e Dilma, que segundo ele sempre foi uma militante feminista e uma mulher de posições muito claras, não se colocou como era esperado. A seguir, a presidenta revogou o kit anti-homofobia, mesmo sendo a homofobia causa de muito sofrimento nas escolas, assim como o racismo, o machismo e o preconceito por classe social. Segundo ele, o avanço do Escola sem Partido estaria justamente associado a uma estratégia de produção de pânico cultural, através da qual se evidencia o comportamento de grupos que supostamente contaminariam a sociedade, ameaçando a maioria sociológica. O pânico produzido chegou eventualmente ao ponto de professores acusarem colegas de proselitismo sexual e de uma erotização das crianças.

Para pensar o avanço da ultradireita a partir da crise econômica mundial de 2008, Cara fez uma interessante análise com base em conceitos fundamentais de Maquiavel, a fortuna e a virtù. A fortuna diz respeito a um improvável que joga a seu favor, a partir de variáveis que não se pode controlar, e a virtù seria a capacidade do ator político de agir fazendo bom uso da fortuna. Pois bem, em sua avaliação, a ultradireita fez um acerto quando, aproveitando do fato de que todo processo de grave crise econômica é seguido de um crescimento de perspectivas mais autoritárias, percebeu uma tendência para a busca do “antissistêmico” e de algo que transmitisse segurança. E foi nesse sentido que as teorias de gênero se tornaram um alvo fundamental.

De fato, uma linha importante da fala do nosso convidado disse respeito à estratégia discursiva da ultradireita e do que temos a aprender com ela. Elementos comuns como o shame e o ataque moral, por exemplo, são fartamente copiados por comunicadores porque provocam isolacionismo e enfraquecem o adversário. Para ele, aliás, só as fake news não explicam a ascensão de Bolsonaro. A imagem do candidato começou a ser construída em campanha desde 2014 e sua proposta foi bem sintetizada no slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Além disso, disseminou o risco da destruição social que seria produzida pelo suposto marxismo cultural e criou a ideia da desconstrução do PT, em uma estratégia discursiva muito bem planejada. A análise desta estratégia possibilitou a vitória dos opositores do Escola sem Partido, com o bloqueio na tramitação do projeto naquele dezembro, pois dela decorreu uma fundamental mudança discursiva. Primeiro, ao conseguirmos manter Paulo Freire como patrono da educação brasileira. Paulo Freire é visto pela ultradireita como sinônimo de pedagogia, de pedagogia como antônimo de disciplina, e o fascismo trabalha justamente com a narrativa da dicotomia. Os defensores do Escola sem Partido acreditam que o aluno tem que ser disciplinado, domado e, nessa linha, um policial é melhor do que um professor. Mas recuaram diante do risco de perda do reconhecimento internacional que o eminente educador possibilita ao nosso país. Depois, foi preciso encurralar regimentalmente o projeto na Câmara, barrando sua aprovação com uma bem construída estratégia argumentativa e sem entrar diretamente no embate. Daniel Cara detalhou essa estratégia, que passou por desqualificar a proposta do Escola sem Partido na relatoria de Magno Malta e postergar o quanto possível a votação, inclusive para não promover a demonização das escolas no processo eleitoral.

Ora, o professor é alvo fácil, disse ele. Desde a década de 1990 vem sendo culpabilizado pelo fracasso escolar. As avaliações de larga escala são cruéis porque revelam que a educação está indo mal, mas sem dizer o porquê. E o professor, como o agente público que está à frente da sala de aula, se torna o inimigo comum. O importante argumento que contribuiu para impedir esta votação foi, então, o de que o professor cerceado e com medo de se expor não vai dar uma boa aula e, com isso, seus alunos ficarão limitados. E esse argumento se tornou um sucesso nas redes sociais porque disseminado a partir de uma outra lição aprendida com a ultradireita: diversificar os agentes das falas, ao invés de apostar em intervenções de poucas figuras muito influentes. Além disso, logo foi ficando claro que perseguição legal tem efeito bumerangue e a adoção desta prática faria com que também os professores conservadores ficassem com medo. Afinal, todas as referências sociais são perdidas quando se questiona até o conhecimento instituído. Sendo assim, decresceu o apoio à estratégia de Bolsonaro e aumentou a defesa da estratégia de Olavo de Carvalho, a de deslocar a questão da lei para a guerra cultural, na linha que acabou levando inclusive à nomeação de Velez como ministro da Educação.

Cara trouxe muitas informações sobre a estratégia regimental que fez com que se barrasse a votação do Escola sem Partido naquele momento: a obstrução por vários parlamentares, forçando uma discussão infinita com requerimentos e questões de ordem. Esta é, segundo ele, uma estratégia democrática de preservação das minorias no Congresso Nacional, porque gera desgaste e força a negociar. Depois disso, tendo havido um erro regimental por parte do presidente da sessão, o projeto foi perdendo apoio e terminou sendo retirado para voto na próxima legislatura.

O convidado usou o conjunto dessa estratégia como exemplo de que os movimentos sociais têm que dominar as regras do jogo, conhecer os regimentos do legislativo e sugerir manobras nesse sentido, considerando o perfil de cada parlamentar. A vitória a que se referiu era significativa, pois, ainda que o projeto fosse colocado em votação nas duas casas em paralelo, logo no início do novo mandato, o trâmite seria mais longo, envolveria audiências públicas e poderíamos estar mais bem preparados.

Para nos prepararmos para os próximos passos, Cara sugere o Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas [iv], que trabalha tanto na perspectiva pedagógica de a escola proteger os professores quanto na estratégia de defesa política. Além disso, propõe apostar no constrangimento de figuras que defendam a perseguição contra professores, tanto via imprensa quanto em articulação com promotores, gerando muitos processos, embora sem fatalismo jurídico. É, segundo ele, uma “guerra de guerrilha”. Não dá para ser oposição da ultradireita nas redes sociais. O que falta para vencer o Escola sem Partido é olhar para o fato de que o projeto apresenta um modelo de escola que dialoga com os valores cristãos. É preciso retomar o valor da educação democrática e da agenda da Constituição que ainda não se completou por falta de recursos e conquistar corações e mentes com um projeto em que as pessoas de fato queiram se engajar. Só depois da derrota em 2018 conseguimos aumentar nosso engajamento. Para construir um novo mundo, não se pode trabalhar com os mesmos termos, com as mesmas lógicas, com a mesma narrativa do que foi superado nessas eleições, que foi a década de 1980.

Assim, a fala de Daniel Cara mobilizou, na plateia, diversos questionamentos. No diálogo que então se estabeleceu, foi ficando claro que estávamos em sintonia em relação à ideia de que, para superar o medo, é preciso estarmos juntos. Cara disse que política é emoção e que as duas emoções preponderantes seriam o medo e o afeto. Steve Bannon já teria dito que as igrejas neopentecostais estão em crescimento porque dão afeto e o Mais Médicos, segundo ele, também era uma política de afeto. Apontou ainda que cada militante de ultradireita é considerado por eles como um formador de opinião e que, ao darem protagonismo a essas pessoas, eles criam vínculos de afeto. No entanto, as pessoas chegaram à ultradireita pelo medo. O medo é, portanto, uma estratégia de recrutamento, enquanto o afeto é uma estratégia de pertencimento. Cara fez, inclusive, referência a uma conhecida fala de Mujica: é preciso ter humildade e nenhuma vitória ou derrota é definitiva, afirmando, em seguida, que, se o projeto Escola sem Partido fosse aprovado, iríamos precisar bater à porta de cada escola a fim de dizer que isso é inconstitucional e transforma os alunos em dedos-duros.

Estamos sendo convocados, diz ele, a entrar na guerra cultural, mas não podemos entrar na guerra cultural de qualquer maneira. É preciso jogar bem, jogar bonito e jogar com raça, como Pelé. Só a vida prática supera as hegemonias, e se o governo Bolsonaro for de crescimento econômico e redução de renda e não promover a redução do desemprego, ele vai perder apoio, mesmo que não de forma automática pelo fato de fazer um uso profissional da propaganda. E, para ele, nós, por nossa vez, precisamos mobilizar o afeto. Afeto é estar junto e estar junto é estar junto mesmo e, principalmente, ouvir. Não é justamente isso que fazemos em nosso trabalho nas rodas de conversa Escuta Sedes?

No encerramento de sua participação nesta roda tão viva, Cara falou de sua experiência no movimento Vira Voto. Disse que o que aprendeu ali foi que quem ouvia mais era quem virava voto e quem falava demais não virava voto nenhum. Completou dizendo que o ouvido tem que ser um ouvido honesto. Mostrou-se, então, esperançoso. Brincou com isso, ao dizer que só se está esperançoso quando se está em movimento e só se está em movimento quando se está esperançoso. Para ele, a reorganização da esquerda não vai se dar em volta de uma mesa. Convocou-nos, então, a estar junto. Em movimento. Do que mais se trata em uma roda de conversa? O Escuta Sedes é justamente isso: um espaço de presença aberta e gratuita num dispositivo grupal de acolhimento, para circular a palavra e produzir futuros possíveis. Enfim, espaço para ouvir e ser ouvido. Seguimos trabalhando. Participem!



[i] Educadora, professora de história. Psicanalista, ex-aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[ii] Em 11/12/2018 foi inviabilizada a votação do Escola sem Partido na legislatura em curso, o que significa que em 2019 terá que recomeçar sua tramitação do zero.

[iii] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[iv] Disponível em http://www.manualdedefesadasescolas.org/manualdedefesa.pdf. Acesso em 25 de março de 2019.




 
 
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