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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    54 Junho 2020  
 
 
CINEMA

FILMES DE PLÁSTICO FEITOS À MÃO


ELAINE ARMÊNIO [1]



Filmes de plástico é o nome de uma produtora de filmes inaugurada em 2009. Os filmes desta produtora parecem feitos à mão, pois sua realização tem um jeito muito familiar, caseiro e aparentemente traduzem histórias simples e cotidianas.

Os diretores de cinema Gabriel Martins, André Novais Oliveira, Maurílio Martins e o produtor Thiago Macêdo são pessoas que vêm de uma classe média baixa. Apesar do sobrenome igual, Maurílio e Gabriel não são irmãos. Eles se conheceram na faculdade de cinema em 2006 quando, ao se apresentarem no início das aulas, descobriram que moravam em bairros próximos, na cidade de Contagem, que faz parte da grande Belo Horizonte. Descobriram também muitos interesses em comum. Gabriel tinha conhecido André Novais na escola livre de cinema no ano anterior e também tinha afinidade com ele. Os três passaram a se reunir com frequência, conversando sobre seus interesses de produzir e fazer filmes, sonhando e planejando juntos essa possibilidade no futuro. Então fizeram um primeiro curta, ao custo de R$ 500,00, com sacrifício, e fundaram a Filmes de plástico.

Os filmes se passam na periferia de Contagem, local de origem e de vida dos diretores até uma certa idade, onde continuam morando seus pais e parentes. Em muitos filmes eles mesmos atuam, assim como seus pais, irmãos, namoradas e também atores, alguns do teatro, com uma história e inserção social próxima a deles. O local é a casa dos pais, a rua, a vizinhança, a praça. Mas, se começa e de alguma forma continua caseira, a qualidade é profissional. E, deste local, pequeno, seus filmes e diretores atravessaram fronteiras, ganhando muitos prêmios e repercussão internacional.

Conseguiram um feito surpreendente, rompendo o cerco do dinheiro, da classe social e do racismo, com uma arte que, mais do que outras, requer muito investimento financeiro. Arte e conquistas de qualidade, com uma expansão dos trabalhos que vem se potencializando ao longo dos anos.

O primeiro foi o Filme de sábado (2009, 18’), roteiro e direção de Gabriel Martins, realizado na sua casa com atuação coadjuvante de Maurílio. O enredo deste filme mostra as limitações e o tédio de um jovem e o que ele constroi de forma fantasiosa para curtir o sábado como quem mora em uma cidade de praia. Resolveram já assinar como produtora Filmes de plástico, mas ainda sem estar formalizada. Quando isto se dá, passaram a usar como símbolo a baleia de plástico deste filme.

O filme Fantasmas (2010, 11’), curta dirigido por André Novais Oliveira, é filmado de uma forma muito inovadora: não vemos os personagens, só ouvimos a conversa deles. A imagem é de uma rua à noite, com carros passando. A esquina próxima é bem iluminada por ser um posto de gasolina. Estão falando e um dos personagens fala bastante de uma obsessão amorosa, e é deste ponto que vê o carro da ex-namorada parando na esquina do posto. Este filme foi apresentado na Mostra de Tiradentes e foi muito comentado. Inácio Araújo definiu esse filme como uma obra prima, pois considerou que, com poucos elementos, expressa de forma forte e intensa a obsessão amorosa como ele nunca tinha visto antes. Fantasmas foi e ainda hoje é muito comentado e analisado nas escolas e faculdades de cinema.

Gabriel e Maurílio fazem o filme Contagem (2010, 18’) como trabalho final da faculdade, realizado na cidade deles, que dá nome ao filme. Exibiram-no no Festival de Brasília e o cineasta Carlos Reichenbach, idolo de todos eles, adorou o filme, ficou muito entusiasmado com o trabalho deles e escreveu no seu canal do YouTube que considerava que este grupo estava iniciando um “novo ciclo deflagrador” (sic). Ele não pode ver o quanto estava certo, não pode acompanhar todas as conquistas destes diretores até hoje, pois faleceu em 2012.

A produtora inaugurada em 2009 continuava produzindo com os três diretores praticamente fazendo tudo. Thiago Macêdo Correia, que tinha produzido junto com eles o Filme de sábado, seguiu trabalhando em produção, ele também tinha feito a Escola livre de cinema. Propôs uma reunião com os três diretores e se ofereceu para ser sócio da produtora; seria o produtor executivo da incipiente produtora Filmes de plástico. Com a experiência que tinha adquirido, responsabilizou-se pela organização da produtora e pela produção dos filmes. Na comemoração dessa sociedade dos quatros dividiram duas empadinhas por quatro, dada as condições financeiras deles.

André Novais Oliveira realiza o curta Pouco mais de um mês (2013, 23’), filme que foi feito em uma manhã e foi com esse curta que eles foram selecionados para a Quinzena dos realizadores em Cannes em 2013. Thiago foi quem inscreveu o filme e eles mal podiam acreditar que tinham sido selecionados para Cannes. André dirigiu esse filme e atuou com a Élida Silpe, então sua namorada e hoje sua esposa. Este filme recebeu uma menção especial do Júri da quinzena dos realizadores e então muitos outros momentos internacionais vão acontecer. A Cannes eles voltaram dois anos depois com Quintal (2015, 20’), de André Novais, realizado com os pais, na casa deles. O enredo mostra a vida de um casal mais velho na periferia de Contagem, quando os filhos já moram fora, em suas próprias casas. Mas, este cotidiano se rompe em alguns momentos com eventos que alguns críticos vão nomear como realidade fantástica, outros de ficção científica. Tem um final ótimo: libertário e com muito humor.

Em 2017 eles participam pela terceira vez na Quinzena dos realizadores com o curta Nada (2017, 27’), do Gabriel Martins, que trata do momento de uma mocinha negra fazer vestibular, os pais têm uma condição financeira que permite que ela, Érica, curse uma faculdade mas quando é perguntada sobre que curso gostaria de fazer, ela responde: nada. O filme vai apresentar a pressão grande sobre Érica para fazer uma faculdade.

O longa-metragem Temporada (2018, 113’) pode ser visto na Netflix. No Festival de Brasília ganhou vários prêmios: melhor filme, melhor direção, melhor atriz. André Novais esclarece que os enredos dos seus filmes trazem elementos da sua vida mas não são filmes autobiográficos. Os filmes são realizados na região em que ele viveu, trazem o tipo de vida das pessoas, muitos deles, como no caso de Temporada, trazem experiências que ele teve; no caso deste filme a personagem trabalha como agente sanitária em Contagem, o que foi um trabalho dele por um tempo, e então nesse filme alguns colegas sanitaristas daquela época participam. O longa metragem Ela volta na quinta (2014, 108’) é um filme onde trabalha toda sua família: seus pais, ele, seu irmão, sua namorada e a namorada do irmão. Mas a história é ficcional, de uma família onde o casal central, casados há muitos anos, vive o desgaste na relação e há uma traição do marido. A relação do casal envelhecendo é encenada de forma que a complexidade das relações está presente. Como contraponto interessante, temos os filhos do casal com suas namoradas, casais que estão começando a vida juntos e conversam sobre suas dificuldades financeiras, seus sonhos e ambições. Ao mesmo tempo, presenciam as dificuldades do seus pais como casal envelhecido e desgastado.

Essa proximidade com a própria vida, filmando o cotidiano da região, desenha a poética da ação desses diretores, que filmam o lugar que viveram, que amam e que apresentam o cotidiano destas vizinhanças tão simples mas retratam o dia a dia com outro olhar, que presentifica a trama das relações e afetos que compõem os personagens.

Em uma entrevista, Gabriel conta que cresceu pensando em ser cineasta e a primeira imagem que ele lembra foi quando propuseram-lhe fazer um desenho sobre o que ele gostaria de ser: ele se fez sentado em uma cadeira de diretor de cinema em uma cena de filmagem. Tinha então nove anos de idade; depois disso, como não tinha condições de fazer cinema, ele desenhava muitos cartazes dos filmes que tinha interesse em fazer.

Alguns de seus filmes têm como roteiro situações de violência, o curta Rapsódia para o homem negro (2015, 24’) tem um negro que morre vítima de um ataque violento e, na trama, há o movimento de vingança do seu irmão, que é entremeado com imagens e cenas de um orixá, marcando a presença de uma religiosidade afro. Em outro filme, Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides (2011, 18’), também surge a temática de vingança e a presença da religião aqui é evangélica. Dona Sônia é Rute Jeremias, conhecida da mãe do Gabriel, seu trabalho é ótimo e ela é premiada como melhor atriz no Vitória Cine Vídeo (2011).

Maurílio teve mais dificuldade, quando jovem, de acompanhar seus interesses de assistir filmes, séries de TV e cinema pois sua casa não tinha televisão por causa da religião; então ele assistia muitas séries e filmes na casa do seu vizinho Delardino Caetano, que atua o Seu Alcides no filme Dona Sônia ... É diretor do filme Quinze (2014, 26’); o enredo deste curta traz as relações entre mãe e filha na realização de uma festa de quinze anos, as linhagens femininas, seus sonhos, o sofrimento e conflitos derivados das dificuldades financeiras e a presença significativa e forte da amiga-namorada da mãe. Mas a presença do amoroso nas relações é o tom principal do filme. No filme Constelações (2016, 25’) são dois estranhos viajando à noite, refletindo e expressando suas angústias e sofrimentos.

Gabriel e Maurílio dirigem juntos os filmes Contagem (2010, 18’) e uma sequência deste curta no longa metragem No coração do mundo (2019, 120’). Esse último tem no enredo um personagem que faz pequenos bicos e delitos e resolve apostar em um plano mais arriscado.

Gabriel, Maurílio e André atuam e participam em outras atividades nos filmes da produtora: como assistente de produção, como diretor de fotografia e outros, o Thiago também atuou num ou noutro filme, em todos é o produtor executivo.

Em muitos dos filmes de André atuam seus pais, seu irmão, sua namorada. Sua mãe, Maria José Novais Oliveira (Dona Zezé), atuou em mais de um filme dele e ganhou dois prêmios como melhor atriz; ela faleceu em 2018, uma perda grande para o seu filho, sua família e para a produtora.

Em vários filmes trabalham atrizes e atores, alguns deles compartilham a mesma origem e crescimento dos diretores. Grace Passô é a personagem principal de Temporada; é muito boa atriz e foi premiada como melhor atriz no Festival de Brasília pela atuação neste filme. Renato Novaes Oliveira, irmão do André, atuou em vários filmes e segue como ator. A atriz Karine Teles também uma atriz importante trabalha no filme Quinze. Russão Apr é um ator bem carismático do filme Temporada.

Os diretores desta produtora têm como escolha fazer roteiros não muito fechados e não é do entendimento deles diferenciar muito atrizes e atores dos que não são profissionais da área. O personagem e suas falas são criados juntos nos ensaios e uma parte da criação da personagem cabe aos atores.

No ano passado a produtora completou 10 anos de existência; deste percurso, trazem na bagagem a premiação de muitos filmes e a participação em muitos Festivais e Mostras nacionais e internacionais. A Folha de São Paulo fez uma reportagem muito boa dessa comemoração.

Eles têm muito interesse que os filmes possam ser passados em locais públicos de apresentação. Os cinemas do centro de Belo Horizonte e do centro de Contagem são pouco acessíveis pelo preço e pela distância. Há um projeto de um telão grande na Praça do Divino, que é uma praça importante da região em que eles moram, e onde algumas cenas dos filmes se passam. É um projeto caro e estao em contato com a prefeitura para realização desta proposta. Até agora não aconteceu, mas junto com o cineclube ali da região eles puderam passar vários filmes na praça e, de uma forma mais simples, outros deles na garagem do Maurício.

Eles têm contato com os jovens que estão começando e com outras produtoras independentes. Oferecem oficinas e cursos, no facebook há um cartaz atual de um curso que será ministrado pelo Maurílio.

Torcemos por mais sucessos, editais, patrocínios para essa moçada que vem realizando um ótimo trabalho.

Conquistas democráticas que precisam de muita ampliação para diminuir as diferenças sociais e o racismo abrindo espaços e vagas, e bons lugares para todas as etnias. Para todas as pessoas em ressonância com os movimentos atuais contra o facismo e contra o racismo.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, articuladora da área de Clínica no Conselho de Direção do Departamento, integrante do GTEP, do grupo O feminino e o imaginário cultural contemporâneo e da equipe editorial deste Boletim.




 
 
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