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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    55 Setembro 2020  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

ESCUTA E O PRÊMIO CARRANO


FERNANDO AMARAL[1]


Eram outros tempos. Nem tão distantes, se pensarmos no trem da história. O filme é Bicho de sete cabeças. Listado como um dos cem melhores filmes nacionais de todos os tempos pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, o filme foi lançado em 2000, na virada do século. Um país que retomava suas produções de cinema, depois de tempos difíceis. E um filme marcante, que contava a história de um jovem internado em manicômios depois de ser pego pelo pai com um baseado e de todo o preconceito e suas repercussões em relação à loucura e às drogas. O filme foi baseado em um livro lançado alguns anos antes do filme, Canto dos malditos. O autor, Austregésilo Carrano Bueno, contava seu périplo por instituições psiquiátricas, história esta que marcaria decisivamente a história da luta antimanicomial no país. Os manicômios, as instituições psiquiátricas, questões sobre Saúde Mental, sobre a loucura, sobre drogas, sobre preconceitos, surgiram com mais espaço, tempo e profundidade para debate nos espaços públicos, nas escolas de primeiro e segundo grau, na política, com vivacidade, polêmica e ideias, muitas novas ideias.


O movimento pela reforma psiquiátrica, desde meados dos anos 70 do século passado - o primeiro movimento na área da saúde com participação popular, desde o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental - conseguia a aprovação, em 2001, da Lei da Reforma Psiquiátrica: reinserção, respeito aos direitos humanos, respeito à diversidade, constituição de redes de tratamento, acompanhamento e acolhimento em substituição aos manicômios e políticas de internação massiva e compulsória. Conquistas.

Carrano, portanto, foi um dos agentes fundamentais na transformação da política para Saúde Mental no Brasil. Um tratamento mais humanizado e respeitador, cidadão, que não trata a Saúde Mental com clausura. Eram tempos pós ditadura, vivíamos um flerte com a democracia, um hiato na história de um país marcado por relações autoritárias e abusivas de poder. Nem faz tanto tempo assim...

No ano passado, primeiro ano do atual governo federal, diversas portarias e normas técnicas foram publicadas na área da Saúde Mental. Como fundamento central, o retorno da concepção de internações compulsórias, de grandes hospitais psiquiátricos e a ideia de que é preciso aprisionar, apartar, separar, isolar os loucos, os viciados, os degenerados. E neste ano, simbolicamente, em 18 de maio de 2020, dia da luta antimanicomial, um general que responde interinamente pelo Ministério da Saúde assinou portaria que extingue o serviço de acompanhamento de presos com transtornos mentais no SUS - o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei. Este é o nosso tempo.

O Escuta Sedes surgiu entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018. Identificando recrudescimento de discursos beligerantes e intolerantes na disputa política, psicanalistas ligados ao Instituto Sedes resolvemos criar um espaço de escuta, uma roda de conversas, destinado a fazer circular a palavra, a inquietude, o incômodo, o medo, intercambiar impressões, experiências, vivências, como mecanismo para lidar com as angústias geradas naquele momento. Um espaço para elaboração, um espaço para resistir. Um espaço para não se deixar adoecer. Passadas as eleições, percebemos que as razões que nos motivaram a criar este espaço de escuta persistiam e se intensificavam - do discurso político, à prática. Políticas públicas mudam diretrizes, discursos de ódio e intolerância encontrando espaços para ressoar, inclusive incorporados ao discurso oficial. Os tempos e a necessidade de elaboração destas angústias, destes incômodos. A dimensão social deste sofrimento psíquico. E a palavra como expressão de resistência ao adoecer. Todos os tempos.

Desde 2009, o Prêmio Carrano de Luta Antimanicomial e Direitos Humanos - uma homenagem a Austregésilo Carrano Bueno, que faleceu em 2008, militante ativo da Luta Antimanicomial - tem como objetivo dar continuidade à sua luta por mudança nas condições de tratamento de pessoa em sofrimento mental. Organizado pelo coletivo Gato Seco - nos telhados da loucura, o prêmio pretende ser e é um momento de homenagens a pessoas e iniciativas que atuam na área de Saúde Mental e de Direitos Humanos. E, também, um momento de reflexão, crítica e denúncia. De luta, portanto. E de festa. A festa do encontro, das trocas, das possibilidades.

Neste tempo de 2020, o Escuta Sedes seguiu com seu tempo, de escuta e de acolhimento. Nas intensas rodas de conversa o projeto ganhou corpo e consistência. Psicanalistas ligados a diversos departamentos do Sedes, numa realização conjunta e horizontal, seguiram na construção do dispositivo, uma roda que possibilite a circulação da palavra, o reconhecimento da dimensão social do sofrimento psíquico, um dispositivo também dinâmico e que segue sendo pensado, gestado, escutado. Enfrentamos o desafio da pandemia e levamos o Escuta para o mundo virtual, porque sentimos que o desalento, as inquietações, as angústias e as contradições têm se ampliado em tempos de isolamento social necessário para conter o avanço da pandemia e em tempos em que muitos não puderam e não podem entrar em quarentenas - que são bem mais que quarentenas.

E neste 2020, o Escuta foi indicado e recebeu o Prêmio Carrano, em sua décima segunda edição. Na tarde de 14 de junho, o Escuta participou da festa, da celebração do prêmio, conjuntamente com outros grupos e pessoas ligadas à área da Saúde Mental e de Direitos Humanos. Uma festa que neste ano foi virtual. Mas que teve todo o sabor do encontro, do abraço, do respeito. E com muito humor - tão importante, sabemos. Uma tarde de encantamento com experiências importantes, de denúncia contra a política de retrocessos, que nos adoecem. E de defesa do Sistema Único da Saúde.

Para nós do Escuta, o prêmio foi também o reconhecimento de que estamos constituindo um espaço para o nosso tempo, um espaço de resistência, de escuta, de construção coletiva, um acalento necessário para tempos difíceis.

Sobre o prêmio Carrano: https://www.facebook.com/premiocarrano/

A festa:

https://www.facebook.com/watch/live/?v=288324918882655&ref=watch_permalink

Sobre o Escuta: https://sedes.org.br/site/manifesto-escuta-sedes/





DISCURSO DE RECEBIMENTO DO PRÊMIO[2]



LUCIANA MANNRICH[3]



Boa tarde a todos! É com muita alegria que o Escuta Sedes recebe o prêmio Carrano de Luta Antimanicomial e Direitos Humanos. Num momento em que já nos sentíamos oprimidos pela política reacionária que nos assola desde o golpe de 2016, fomos confrontados pela pandemia causada pelo novo coronavírus. Trancados em nossas casas por conta do isolamento social, tão necessário mas também revelador de nossa brutal desigualdade, nos parece muito oportuno lembrar do confinamento compulsório de Austregésilo Carrano Bueno, ainda tão jovem, num hospital psiquiátrico. Sua experiência foi narrada no livro Canto dos malditos e transformada em luta, através da militância antimanicomial, por um tratamento digno para pessoas em sofrimento psíquico.

Este prêmio, tão importante num país que se depara a cada dia com sua face mais racista, homofóbica, autoritária e violenta, já foi entregue a pessoas da importância de Antonio Lancetti, Erica Malunguinho e a iniciativas como Casa do Saci e Centro de Convivência É de Lei. Na tarde de hoje, repartimos esse reconhecimento tão alentador com as outras iniciativas aqui presentes que engendram importantes mudanças sociais e políticas.

A história do coletivo Escuta Sedes teve início no segundo semestre de 2018, no momento em que a candidatura de Jair Bolsonaro ganhava força e tornava-se cada vez mais disseminado um discurso que incitava a violência e a intolerância, ameaçando toda expressão das diversidades humanas. Sintomas como estados ansiosos, depressivos e persecutórios começaram a chegar aos nossos consultórios e instituições com nova intensidade e frequência, sendo crescentes as falas que relacionavam o sentimento de grande vulnerabilidade ao contexto político e ao risco de rompimento de laços sociais e familiares.

Diante desse cenário de embrutecimento, em que pairava a real ameaça de ruptura dos principais pactos civilizatórios, usuários, funcionários, alunos e professores do Instituto Sedes Sapientiae se reuniram para planejar possíveis ações de resistência e de combate à violência. Um grupo de diferentes inserções se destacou para oferecer escuta, espaço de amparo e de circulação da palavra, reunindo uma heterogeneidade bastante incomum na instituição. A partir de um posicionamento ético em que o sujeito é respeitado e ouvido em sua singularidade construímos o dispositivo de escuta grupal Rodas de Conversa.

Constituídas como lugar de compartilhamento do sofrimento, de reconhecimento do aspecto coletivo das pressões vividas pelos acirramentos políticos e tensões sociais que contaminavam os espaços mais íntimos de cada um, as Rodas de Conversa possibilitaram dar voz à dimensão social do sofrimento psíquico, ao contrário do silenciamento que o confinamento nos diagnósticos psicológicos ou psiquiátricos pode produzir, a quem se sentia inquieto ou desamparado frente às diferenças e aos futuros possíveis.

Até o início desse ano as Rodas aconteciam presencialmente todas as sextas feiras, de 17 às 19h, sem agendamento prévio e sem continuidade obrigatória. Mas eis que fomos atropelados por uma pandemia que trouxe consigo o imperativo do isolamento social. Manter as rodas girando tornava-se uma responsabilidade diante de um quadro de tamanha desolação e também um desafio. Que aceitamos.

Em um mês nos reorganizamos e voltamos a oferecer o serviço de escuta, no mesmo dia e horário, mas agora virtualmente. Uma nova realidade para os coordenadores e participantes, que tiveram que se haver com novas tecnologias, com a necessidade de inscrição prévia e sem a presença imediata do corpo do outro, tão asseguradora de nossa humanidade.

As rodas de conversa são hoje um espaço em que sustentamos, participantes e coordenadores, a incerteza e o não saber. Espaço democrático de circulação da palavra que segue aberto, heterogêneo e mais imprevisível do que antes. Lugar de encontro onde é possível falar e ouvir sobre as perdas materiais e subjetivas que se deram na pandemia e sobre a violência, tanto política como social, que aumenta cotidianamente.

Embora não seja possível participar da roda virtual para quem não tem acesso à tecnologia, e são muitas as pessoas nessa situação, constatamos que chegamos mais longe do que poderíamos imaginar, possibilitando a inclusão de tantas outras que vivem distantes do bairro de Perdizes, de São Paulo e até do Brasil. Participantes de muitos lugares e de diferentes idades e condições sociais podem contar com esse espaço que, ao manter-se existindo em meio a tanta incerteza, torna-se um ponto de ancoragem.

Se já estávamos atônitos com o aumento da violência e dos ataques às nossas instituições nesse governo, assistimos horrorizados à sua absoluta incapacidade de lidar com a pandemia que ceifa a vida de mil brasileiros diariamente. Choque cotidiano que pode paralisar o pensamento e impedir a movimentação do discurso e dos corpos. Seguimos então colocando a psicanálise no seu devido e mais precioso lugar: dar voz à singularidade, engendrar representações e pensamentos, ajudar o humano a resistir, insistir e persistir. Assim como esse prêmio que agora recebemos, que não apenas reconhece nossa iniciativa, como nos dá força para seguir adiante.



[1] Discurso proferido em nome do coletivo Escuta Sedes, composto por Ana Lucia Gondim Bastos, Carmen Alvarez, Celina Giacomelli, Dedé Oliveira Ribeiro, Débora Andrade, Fernando Amaral, Lindilene Shimabuko, Luciana Chauí, Luciana Goulart Mannrich, Lúcia Helena Navarro, Márcia Mello Franco, Maria de Fátima Vicente, Maria Rita Gordin, Maria Silvia Borghese, Nayra Ganhito, Silvia Lopes de Menezes, Sílvia Nogueira de Carvalho e Simone Pugin.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do coletivo Escuta Sedes.

[3] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do coletivo Escuta Sedes.




 
 
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