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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    57 Novembro 2020  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

CLANDESTINIDADE POLÍTICA. UM LADRILHO PARA INCLUIR [1]



MARIA AUXILIADORA DE ALMEIDA CUNHA ARANTES [2]

Introdução


A clandestinidade política foi a alternativa que muitos militantes de esquerda encontraram para continuar no país, combatendo a ditadura civil militar, entre 1964 e 1979. Todas as organizações políticas, colocadas na ilegalidade e proibidas, tiveram muitos de seus militantes presos, torturados e assassinados. Muitos foram banidos ou cassados. Outros buscaram o exílio.

Um contingente expressivo dos militantes de esquerda permaneceu dentro do país. Muitos tornaram-se clandestinos. Seu objetivo: combater os militares, resistir em luta, denunciar as violências cometidas e chegar mais perto do coração da ditadura e feri-la de morte. Afastaram-se do seu grupo de origem e familiar, dos amigos e colegas, de suas profissões e locais de trabalho. Deixaram a casa, seus pertences, suas vestes e identidade civil.

Formaram a coluna vertebral da resistência aos militares dentro do próprio país. Reuniram-se febrilmente, construíram planos estratégicos e de ação. Brigaram entre si rompendo laços de companheirismo, divergiram sobre os caminhos a seguir. Abraçaram-se como nunca. Cada despedida talvez fosse a última. O amanhã, absolutamente hipotético. A certeza do futuro terminava a cada pôr-do-sol. Tinham sido alijados das fileiras da cidadania, cassados como profissionais, jubilados como estudantes, demitidos sumariamente de seus trabalhos, perseguidos sem trégua. Os clandestinos foram incorporando, ao seu jeito, a desconstrução de suas marcas identitárias. Tornaram-se Ninguém, agasalharam-se com o anonimato. Jovens mulheres precocemente taciturnas, sonhos de vida familiar postergados, sonhos de maternidade interrompidos. Não dispunham de qualquer repertório para imaginar um futuro. Não se sabe quantos foram os clandestinos que assim permaneceram até a Anistia de 1979. Quantos foram os que escolheram percorrer estradas sem traçado, sustentando a resistência e o enfrentamento aos militares dentro do próprio país.

Após a anistia de 1979 muitos reapareceram publicamente, silenciosos e discretos, sem se revelar ex clandestinos. Não foram recebidos em festa. Não houve faixas e fotos com seus nomes. Não houve celebração pelos seus atos de resistência. Apareceram simplesmente, saídos de uma bruma em dissolução. Não informaram sobre onde estiveram. Foram evasivos sobre seus sentimentos e próprias histórias. Ouviram contar, a seu respeito, acontecimentos imaginados. Permaneceram calados nesta escuta que às vezes os surpreendia.

É a estes brasileiros, jovens, adultos, idosos e crianças, a quem dirijo minha homenagem. Dar um testemunho sobre esta experiência de vida, frente a vocês, dentro do Laboratório Psicanálise, Política e Sociedade do Departamento de Psicologia Clínica da USP, na cidade de São Paulo, materializa a possibilidade de tornar conhecidas histórias não reveladas.

Minha homenagem aos militantes que conheci na época e também aos que não conheci pessoalmente. Incluo neste abraço familiares e amigos dos que foram assassinados, dos que não tiveram seus corpos devolvidos para serem pranteados. Permanecem desaparecidos. Permanecem clandestinos.

Primeiro de abril de 1964

O golpe militar no Brasil ocorreu em noite de lua cheia. Quem conta esta história é Pedro Gomes, um dos oito jornalistas que tiveram textos publicados no livro Os idos de março e a queda em abril. O trecho a que me refiro diz assim: Governador, estou aqui para fazer a revolução. O senhor aceita? Aceito, general. Quem perguntava era o general Olympio Mourão Filho; quem respondia era o governador de Minas Gerais, o senhor Magalhães Pinto.[3]

O diálogo se passa no segundo semestre de 1963, na cidade de Juiz de Fora, sede da IV Região Militar e a cena se completava com a presença do general Luiz Carlos Guedes, também comandante da Infantaria desta Região. A partir desse dia conspiramos até a deposição do governo de João Goulart - conta o general Olympio Mourão. O governador nos deu seu apoio pessoal e a participação decisiva da Polícia do Estado de Minas Gerais. Ele foi o chefe civil da Revolução.[4]

Quanto à lua cheia há uma explicação: a data do golpe havia sido determinada para o dia 2 e não para primeiro de abril, dia da mentira no Brasil[5]. João Goulart estava no Rio de Janeiro no dia 30 de março onde fez um discurso inflamado aos sargentos reunidos na sede do Automóvel Clube. No dia seguinte, o general Guedes, que tomaria as primeiras iniciativas militares para depor Jango, informou que não esperaria a lua minguante e apoiou a decisão impulsiva do general Mourão Filho de partir para a prisão de Jango, no Rio de Janeiro. Guedes disse aos seus soldados : Eu jamais começo alguma coisa séria no quarto minguante.[6]

Deslocaram-se no 31 de março rumo ao Palácio das Laranjeiras no Rio de Janeiro -à época estado da Guanabara- buscando o presidente que já retornara a Brasília. O marco da queda de João Goulart é sua partida de Brasília durante a noite de 1º de abril de 1964. Seu avião aterrissou em Porto Alegre no 2 de abril, de onde seguiu para o exílio no Uruguai. O exército dormiu janguista no 31 de março e acordou golpista em 1º de abril.[7]

Até hoje não se sabe se foi a lua cheia, se foi o governador de Minas de olho na presidência em 1965, ou o próprio general Mourão precipitando o golpe com apoio do supersticioso general Guedes. Não foi coincidência, nem a majestade dos astros. Foi uma conspiração traiçoeira, apoiada pelo governo norte americano com a operação Brother Sam tornada pública somente muitos anos depois. A mentira em relação à data do golpe dos militares, comemorada no 31 de março, evitando o 1º de abril, é uma Fake News como tantas que se avolumam em relação à história do nosso país.

III Ação Popular

Ação Popular nasce em 1961/62. Seus fundadores, entre os quais me incluo, eram majoritariamente militantes da Ação Católica Brasileira, principalmente da Juventude Universitária Católica, a JUC. Nos últimos anos da década de 1950, a América Latina vivia um período convulsionado com a vitória da Revolução Cubana. As ideias revolucionárias se espalharam e no Brasil chegavam sedutoras, encontrando, na juventude, um acolhimento instigante. Para os estudantes secundaristas da JEC e os universitários da JUC um desafio se impõe: tentar compatibilizar a revolução não armada com as propostas da revolução armada e radical. A estrutura nacional da JUC, que se aliou a partir de 1961 à organização da UNE - União Nacional dos Estudantes- tornou a organização da AP, ao se implantar, uma organização de abrangência nacional, forjada em laços de ideais estabelecidos anteriormente na militância da Ação Católica, que se estendia além dos estudantes, incluindo também as cinco irmãs, como eram chamadas: a JAC, JEC, JIC, JOC, JUC - Juventude Agrária Católica, Juventude Estudantil Católica, Juventude Independente Católica, Juventude Operária Católica, Juventude Universitária Católica.

A partir de 1965, ainda sem a necessidade da clandestinidade total, intenso debate teórico ideológico se estabelece entre os militantes da AP e prevalece a exigência de uma organização com identidade própria, que se desvinculasse da Igreja Católica. A Resolução Política de 1965 define uma perspectiva de luta revolucionária de cunho popular, apoiada sobre as próprias forças, dirigida por um partido proletário. A consigna ousar pensar, ousar falar e ousar lutar, oriunda do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, é incorporada como uma das diretrizes para a reorganização ideológica e política da AP. Determinados à resistência e ao enfrentamento dos ditadores, a Ação Popular Marxista Leninista, agora chamada APML, necessita de militantes que se integrem na produção, como então propúnhamos, como meio de transformação ideológica de sua origem de classe pequeno burguesa. A vitória revolucionária de Cuba que exportara a ideia de foco guerrilheiro, a expressiva liderança de Ho Chi Minh no Vietnã e a relação com o Partido Comunista Chinês indicam os novos caminhos para a APML. Uma das principais consequências foi a decisão de implementar a integração na produção para transformar a organização de classe média em uma organização proletária.

Houve uma cisão entre os militantes. Formaram-se duas correntes; a corrente que considerava que o país já era capitalista e a força revolucionária estava na cidade, e a corrente majoritária que considerava que o país ainda era semicolonial e semifeudal e que a força do campesinato organizada seria vital para o avanço da revolução no país. Falava-se em tomada das cidades a partir do campo. Nesta corrente estavam os que aderiram à integração na produção, que entre 1967 e 1969 passaram imediatamente a se deslocar para uma das 23 frentes de trabalho distribuídas em diferentes áreas geográficas no país, com vistas à construção da sonhada aliança operário estudantil camponesa. As frentes estavam distribuídas entre os estados do Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Goiás e Rio de Janeiro. O deslocamento para estas áreas encontrou militantes idealistas, temperados no humanismo e sem restrições teóricas à proletarização. Os recursos materiais da APML eram doados pelos próprios militantes oriundos de sua condição de classe e o repasse de bens e demais posses à organização não encontrou obstáculos. Estavam familiarizados com os ideais forjados anteriormente pelo humanismo católico, agora mesclado ao materialismo.

IV Clandestinidade Política

Durante a vigência da ditadura houve um avanço ostensivo da violência pelas armas e uma tentativa de legalização das ilegalidades. Civis da área das ciências jurídicas contribuíram fortemente para a redação dos Atos Institucionais (AI), que chegaram a ser dezessete baixados e mais cento e quatro medidas complementares. A construção da exceção materializada nas disposições dos Atos Institucionais foi uma tentativa de mascarar a maciça presença dos militares no poder e legalizar o ilegítimo. Impuseram o Estado de Exceção.

Os ditadores militares, com apoio dos Estados Unidos, dos empresários e dos civis, vão consolidando a exceção como norma. Com as armas prendem, matam e torturam, jogam corpos nos rios, escondem nas matas, incineram nas usinas de açúcar, provocam acidentes fatais nas estradas e eliminam opositores sob tortura, dentro de delegacias de polícia ou em prédios pertencentes ao Estado. Torturam e matam nas casas da morte.

A APML será uma das aproximadamente cinquenta organizações de esquerda atingidas pela ditadura referidas nos processos reunidos pelo Projeto Brasil Nunca Mais, publicado pela Cúria Metropolitana de São Paulo em 1985[8]. A natureza das organizações e grupos clandestinos é majoritariamente de orientação marxista e todos defendem a reação dos oprimidos contra a truculência dos militares. Alguns propuseram o recurso imediato à luta armada; outros, a tentativa de uma transição pacífica rumo ao socialismo. A diversidade das modalidades e táticas da clandestinidade será uma decorrência das avaliações de cada grupo e de cada organização que enfrentaram a ditadura. Construíram uma resistência clandestina, determinada, corajosa e incansável. Na APML a decisão de integração na produção, que vigorou entre 1967-1969, propunha um tipo de vida semelhante à vida das comunidades e territórios que lhes foram designados para viver, lutar e resistir. Trabalhavam na terra, no plantio e na colheita, nas casas de farinha, nas fábricas, nos sindicatos rurais e urbanos, nas cooperativas de produção e de trabalho e introduziam o método de alfabetização de adultos nas áreas rurais. A experiência da clandestinidade colou-se na pele dos clandestinos e colou-se nas suas almas. As estratégias que eram materiais tornaram-se para sempre psíquicas. O tempo todo o clandestino teve que negociar consigo mesmo a sustentação da clandestinidade. O militante entrava ou caía na clandestinidade, num primeiro momento, para escapar da repressão. Permanecer clandestino e tornar-se um clandestino envolveu escolhas dolorosas entre perder ou perder. Escolher o que se quer perder. Desistir da militância, sair do país e exilar-se, ou permanecer e envolver-se num labirinto sem saída e sem tempo. Dos militantes que conheci dentro da APML muitos viveram mais de 10 anos clandestinos. É a estas vidas que dediquei meu estudo, buscando entender os embates para sustentar a escolha feita em condição dura e adversa.

V Testemunho

A experiência que vivi como integrada na produção entre 1967 e 1968, quando fui sequestrada juntamente com meus filhos de dois e três anos de idade, permanece na minha alma. Fomos presos no dia em que foi baixado o Ato Institucional número cinco, o AI 5, dia 13 de dezembro de 1968. Vivíamos na região que nos fora determinada pela nossa Organização para exercer a militância no estado de Alagoas.

Às 20 horas do dia 13 de dezembro de 1968 soldados da polícia militar do estado arrombaram a golpes de fuzil a porta da casa onde morávamos. Vivíamos em Pariconha, subdistrito da cidade de Água Branca. Nesta casa estávamos eu, meus dois filhos e uma companheira com a filha de sete anos. Fomos presas. Posteriormente prenderam nossos maridos que estavam fora da região e também a liderança camponesa com quem nos reuníamos para o trabalho político. Pude constatar no dia do AI 5 a articulação da repressão no país. Morávamos em uma região onde não havia energia elétrica, água encanada, saneamento básico, era alto sertão de Alagoas, terra por onde Lampião transitou. Havíamos ouvido no rádio de pilha a leitura do AI 5. Assim que terminou a leitura na Hora do Brasil nossa casa foi cercada pela polícia militar.

Aos berros, do lado de fora da casa, o capitão de polícia disse: “As senhoras estão sabendo do AI 5? Abram a porta, agora podemos invadir e prender suspeitos. Vocês são suspeitas”.

Respondemos também aos berros, embora muito assustadas: “Não vamos abrir porta nenhuma. Estamos sós com as três crianças”. Resistimos. Embrutecidos, invadiram nossa casa destruindo porta e parede para entrar. Eram cinco ou seis militares fardados portando fuzis. Nós os enxergávamos desfigurados pelas chamas bruxuleantes das duas lamparinas de querosene ainda acesas.

Percebi como a ditadura estava articulada nesta investida. Estávamos num lugar longínquo e os militares não só estavam informados como - fui percebendo - meu sequestro com os filhos, que durou de 13 de dezembro de 1968 a maio de 1969, foi bem articulado, envolvendo diferentes forças da repressão. Ficamos presas no Dops de Maceió e transferidas a cada mês para outras prisões: uma delegacia de bairro recém inaugurada, depois transferidas para a Escola de Aprendizes de Marinheiros e finalmente confinadas em um Hospital da Polícia Militar na ala de doenças infecto contagiosas. Até chegar no tal hospital havíamos permanecido sem contato com advogados e muito menos familiares, que não tinham qualquer notícia do nosso paradeiro. Fomos julgados por um tribunal militar, éramos cerca de doze pessoas -de memória não tenho os números exatos- contando as lideranças camponesas, dois casais de adultos pais das três crianças. Todos os homens do grupo receberam penas a cumprir. Fomos absolvidas nós duas e as crianças e intempestivamente expulsas da sala do tribunal porque os meninos ficaram correndo em algazarra, escondendo-se entre as cadeiras da sala e atrás das cortinas de veludo, talvez de tecido, que chegavam até o chão. Ao entrarem para a sessão, os militares que o compunham, perguntaram irritados por que motivo havia crianças no recinto. Nossa advogada informou: “Porque estão presas, Meritíssimo”.

Minha prisão com os filhos não consta de nenhum registro no Estado de Alagoas. Em 1988 Aldo era deputado federal constituinte e esteve oficialmente em Maceió, onde foi informado que não havia registro da prisão das crianças e mulheres. Registraram somente a prisão dos homens. Sim, foi um sequestro - um sequestro da minha história e da história dos meus filhos.

Após sair de Alagoas em 1969 fiquei clandestina mais sete anos em São Paulo. Mantínhamos somente encontros políticos para cumprir as tarefas que nos cabiam como militantes da APML. Articulava a minha militância cotidiana com as tarefas de casa e de educação das crianças em idade escolar, tentando não perder a ternura apesar de endurecida. Fiquei clandestina até a prisão do Aldo no episódio conhecido como Chacina da Lapa, em dezembro de 1976. Pessoalmente permaneci, a partir de então, sem filiação orgânica, partidária, e me dediquei à luta pela construção da campanha pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita e posteriormente às práticas de Defesa dos Direitos Humanos. Assim continuo.

No campo profissional, necessitei enfrentar a enorme distância entre a graduação em psicologia concluída em 1963 na Universidade Católica de Belo Horizonte e o retorno à minha atualização como profissional dessa área vinte anos depois. Um pouco aturdida pelos novos caminhos da psicologia, com a possibilidade de uma formação em psicanálise, entrei nesta estrada com o cuidado de uma militante política. Encontrei, no Instituto Sedes Sapientiae, acolhimento e a possibilidade de fazer a formação no Curso de Psicanálise; mais tarde, ingressei no mestrado em Psicologia Clínica na PUC/SP

Minha dissertação acadêmica juntou dois campos que até então pouco conversavam: psicanálise e política. Durante a qualificação e defesa, da qual participaram em momentos diferentes Manoel Berlinck, Alfredo Naffah, Celio Garcia da UFMG e Renato Mezan, consegui aproximar a psicanálise da política, considerada então uma aproximação extramuros.

A autorização de verdade decorreu da leitura de um texto de Freud sobre a pujante escultura de Moisés de Michelangelo. Este artigo apareceu pela primeira vez, anonimamente, na Revista de psicanálise Imago, dirigida pelo próprio Freud e o disfarce só foi descoberto dez anos depois, em 1924. Na primeira edição da Imago, aparecia uma nota de rodapé rascunhada pelo próprio Freud, dizendo: “Embora este artigo estritamente falando, não se conforme às condições sobre as quais as contribuições são aceitas para publicação nesta revista, os redatores decidiram imprimi-lo, visto o autor, que é pessoa do seu conhecimento, atuar nos círculos psicanalíticos e sua maneira de pensar ter, na realidade, uma certa semelhança com a metodologia da psicanálise.”[9]

Fiquei fascinada com a clandestinidade de Freud, cauteloso na aproximação da arte com a psicanálise. Com este salvo conduto, avancei no começo dos anos de 1990 por um caminho em construção no Brasil que aproximava psicanálise e política e que hoje se impõe como um campo da psicanálise ocupado e pulsante.

Para encerrar, uma palavra sobre o livro Pacto revelado, psicanálise e clandestinidade política, publicado em 1994 e reeditado em 1999. [10]

Renato Mezan publicou o texto O método psicanalítico no texto acadêmico: três exemplos e algumas observações [11] quando completou trinta e cinco anos como orientador do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica de PUC/SP. Foi meu orientador durante o mestrado que deu origem ao livro Pacto revelado. Em relação à minha dissertação, fez a seguinte observação:

O mestrado de Maria Auxiliadora Arantes, Pacto Revelado, se baseou em seus 10 anos de experiência de clandestinidade política e em depoimentos de militantes com quem compartilhou essa condição. Para que se tornasse uma dissertação não bastavam as memórias, deveria haver uma questão que pudesse dar corpo a um texto arguido e defendido publicamente. Após meses buscando a questão e os recursos disponíveis pela psicanálise para analisar esta experiência encontramos o caminho.

Em termos psicanalíticos a ideia da clandestinidade sugeria que a força de um ideal de ego podia reduzir a usura do narcisismo exigida pela necessidade de manter em segredo a própria identidade, de comportar-se em cada minucia da vida diária como se fosse outra pessoa, pois qualquer passo em falso podia levar à prisão, à tortura e à morte. Disso decorria a hipótese metapsicológica a investigar que deveria responder à seguinte questão:

em certas circunstâncias extremas, como se constitui um equilíbrio específico entre as instâncias ideais do psiquismo e os fatores egóicos que estruturam a auto imagem?

E foi por esse caminho, que uma experiência dramática e traumática pode simultaneamente ser melhor integrada à vida psíquica de quem vivenciou, e permitir acrescentar um pequeno mas importante ladrilho ao vasto mosaico dos conhecimentos psicanalíticos.

São Paulo, 30 de setembro de 2020





[1] Texto apresentado em 30 de setembro, a convite de Miriam Debieux e do Laboratório Psicanálise, Política e Sociedade do Departamento de Psicologia Clínica-IPUSP. Coordenação do evento, Marta Cerruti; comentadora, Sandra Alencar: https://psicanalisepolitica.wordpress.com/2020/10/03/evento-clandestinidade-politica-desdobramentos/

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e diretora do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] Polvora, Helio coord, Os idos de março e a queda em abril. Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 1964, p. 67, Minas: Do diálogo Ao Front - Pedro Gomes.

[4] idem

[5] Rene Armand Dreifuss, 1964: A conquista do Estado, Ação Política, Poder e Golpe de Classe , Petrópolis, Vozes, 1987.

[6] Polvora, Helio coord, Os idos de março e a queda em abril. Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 1964. O trecho citado é de Pedro Gomes, Minas: Do diálogo ao Front.

[7] Frase atribuída ao general Cordeiro de Farias.

[8] A publicação contou com o apoio decisivo do Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns.

[9] Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas , Rio de Janeiro, Imago, 1980, vol. XIII, O Moisés de Michelangelo (1914).

[10] Arantes, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha, Pacto Re-velado: psicanálise e clandestinidade política, São Paulo, Escuta, 1994 (Plethos), 2ª ed., 1999.

[11] O método psicanalítico no texto acadêmico: três exemplos e algumas observações, mimeo, s.d,18 p.




 
 
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