O método psicanalítico proposto por Freud é o pilar sólido sobre o qual o trabalho psicanalítico se desenvolve. Ele foi ampliado por autores pós-freudianos, que contribuíram para o aprofundamento da teoria e da técnica psicanalíticas. No início, a psicanálise ocupou-se principalmente do sofrimento dos neuróticos. Atualmente, o sofrimento não se apresenta mais somente com a face da neurose. Ao analista cabe acolher o paciente contemporâneo, acometido por patologias caracterizadas pela passagem ao ato, e não pelo recurso à simbolização - como drogadições e compulsões -, por afecções psicossomáticas e depressões.
A teoria e a técnica psicanalíticas evoluíram para que pudessem ser tratados os casos nos quais as questões centrais iam além dos sintomas gerados pelo recalcamento, incluindo a problemática da constituição do Eu e suas falhas. Assim, foi possível ampliar as indicações de tratamento psicanalítico para crianças, adolescentes e adultos com diferentes formas de distorção do Eu e as patologias do narcisismo delas resultantes, como psicose, melancolia, antissocialidade, etc. Aqui estão incluídas as afecções psíquicas nas quais a precariedade simbólica é característica e as perturbações são produzidas no registro do corpo físico, e não do corpo erógeno, como na histeria. Entre elas, temos as doenças psicossomáticas e as distorções e angústias diante da imagem corporal - essas últimas discutidas por Borguese (2017) - que podem gerar ataques contra a integridade física do próprio sujeito.
Consequentemente, as demandas das análises na contemporaneidade vão além da utilização da escuta flutuante, da lida com as transferências, resistências e interpretações para trazer à consciência os conflitos inconscientes recalcados. Elas incluem o trabalho com o ainda não representado, com as falhas da constituição do Eu, que requerem uma clínica de continência, sustentação e manejo, na qual a contratransferência é utilizada como ferramenta.
A contratransferência - "conjunto das manifestações inconscientes do analista relacionadas com as da transferência de seu paciente" (Roudinesco; Plon, 1998, p. 133) - foi vista inicialmente por Freud somente como um fato perturbador que recaía sobre os pontos cegos do psicanalista e necessitava ser controlado para não prejudicar o processo analítico. A identificação projetiva - modalidade de projeção na qual o indivíduo projeta no objeto aquilo que recusa em si (Laplanche; Pontalis, 1970) - de acordo com Ferro (1995), também foi pensada como incômoda por Melanie Klein. Essas perturbações eram vistas como algo de que se livrar e davam a entender que o processo analítico não estava transcorrendo como deveria. Contudo, como afirma Ferro (1995), hoje sabemos que tanto a contratransferência quanto a identificação projetiva são fenômenos de comunicação inconsciente entre o paciente e o analista. Principalmente com pacientes não neuróticos, mas não somente, é necessária uma disponibilidade do analista para perceber como é afetado pelo paciente na contratransferência e nas identificações projetivas. O analista é convocado a identificar e elaborar essas comunicações inconscientes mais primitivas e devolvê-las ao paciente.
Minerbo (2020) discute as características da transferência/contratransferência em casos de pacientes neuróticos e não neuróticos. A autora ressalta que, nesses últimos, o psiquismo do psicanalista é intensamente convocado na contratransferência e em sua dimensão corporal, como caixa de ressonância afetiva. Ele também é chamado a sonhar com o paciente para poder realizar construções sobre a cena traumática agida e ainda não representada.
Para Green (1990), a comunicação na análise envolve tanto o corpo do paciente quanto o do analista. Ambos os corpos trabalham e se comunicam, inconscientemente e pela fala. Alguns analisandos podem causar dores de cabeça, provocar sensações estranhas, momentos de confusão, angústia e reações somáticas no psicanalista.
Abud, Silva e Espósito (2009) comentam que, no trabalho com pacientes psicossomáticos, a contratransferência pode manifestar-se como cansaço, culpa, sensação de impotência e paralisia. Esses pacientes "atacam o analista incessantemente, defesa oriunda da pulsão de morte contra a mudança, vivenciada como um perigo mortal" (Abud; Silva; Espósito, 2009, p. 78).
Os efeitos do trabalho clínico no corpo do psicanalista é um tema pouco estudado, e nem mesmo Freud o colocou em perspectiva. Contudo, esse fato não exclui o corpo do analista e nem faz dele um corpo inerte. Nesse sentido, retornamos a Ferenczi, que insistiu na importância da investigação dos processos que ocorriam no analista em sua prática terapêutica (apud Leite, 2006).
Para que a análise aconteça, é preciso que o clínico, de corpo presente, seja suporte para a cena transferencial. A presença, contudo, não ocorre de forma positivada, mas se dá na ausência. O psicanalista estando ali, na relação terapêutica, possibilita a atualização das fantasias de seu analisando, mas está ausente como indivíduo. Ele torna-se presente quando não há palavra, e seu corpo dá suporte ao irrepresentável, quando sente em seu corpo o que não pode ser representado pelo paciente. Assim, ele pode dar sustentação ao trabalho psíquico do analisando (Mattuella, 2015).
Desse modo, o analista exerce sua função por intermédio não apenas de seu intelecto e conhecimento, mas também de seu psiquismo e de seu corpo. Este, colocado a trabalhar em cada sessão na transferência/contratransferência, sofre intensidades, demandas, provocações e, muitas vezes, ataques. O sofrimento dos pacientes ressoa internamente no psicanalista, demandando atenção e reclamando energia psíquica para elaboração. O psicanalista está suscetível a excessos e regressões que necessitam ser endereçados. A análise pessoal, a supervisão, o estudo e a pesquisa, a interlocução com os pares devem visar não apenas o bem-estar do paciente, mas também do psicanalista, que necessita igualmente de atenção, amparo e cuidado para manter-se bem e não adoecer.
Mesmo que o psicanalista tenha concluído sua análise, os desafios clínicos diários, principalmente com pacientes difíceis, podem ser demasiados. Ferreira (2008) discute as possíveis repercussões do trabalho clínico no corpo do psicanalista, pois este é o lugar atingido pelos afetos de raiva, angústia e dor dos pacientes atendidos durante muitas horas semanais e por longos períodos de tempo. O autor conclui que é grande a probabilidade de que a "escuta do excesso de conteúdos dolorosos, desagradáveis e angustiantes que carregam possa ter um efeito traumático, inconsciente, com impacto no corpo do analista" (Ferreira, 2008, p. 66).
Hipoteticamente, o excesso da ordem do traumático poderia resultar em uma doença psicossomática no psicanalista. O exercício da clínica poderia gerar uma exposição excessiva a conteúdos pesados e densos de afetos e ideias difíceis de tolerar e elaborar. O excesso diz respeito às intensidades somatórias das pulsões mobilizadas no analista dentro dos campos analíticos com seus pacientes. Para desvencilhar-se do excesso da pulsão, a somatização poderia ser uma solução.
Portanto, o objetivo deste artigo é explorar a ideia de que afecções psicossomáticas podem surgir em decorrência do trabalho clínico do analista. Para tanto, serão discutidos teoricamente as afecções psicossomáticas e o excesso pulsional no trabalho clínico, além de apresentarmos um relato clínico para exemplificar essa ideia.
Afecções psicossomáticas
Os conceitos de conversão e das afecções somáticas nas neuroses atuais tecidos por Freud em seus trabalhos publicados em 1895, posicionaram-no como o grande precursor da psicossomática. Na conversão histérica, ele concebe que um conflito psíquico pode ser convertido em sintoma físico. Nas neuroses atuais, aventa a hipótese de o excesso pulsional somático transformar-se em doença orgânica desvinculada de reminiscências, fantasias ou sonhos.
Quando discute sobre as neuroses atuais - neurastenia, neurose de angústia e hipocondria -, Freud (1996 [1895]) coloca a possibilidade de desvio da pulsão excessiva não elaborada para o campo somático. O acúmulo de excitação e a insuficiência psíquica para sua elaboração produziriam, como consequência, "processos somáticos anormais" (Freud, 1996 [1895], p. 118). Em "A sexualidade na etiologia das neuroses" (1996 [1898]), Freud ressalta que toda neurose é de etiologia sexual. Contudo, na neurastenia (neurose atual ou psicossomática), a etiologia é do tipo contemporâneo, e os sintomas são somáticos, tais como pressão intracraniana, propensão à fadiga, dispepsia, constipação, irritação espinhal, etc.
Laplanche e Pontalis (1970) enfatizam que Freud já demonstrava uma preocupação em fazer a distinção entre a conversão histérica e os sintomas somáticos nas neuroses atuais. Os autores destacam "a tendência para distinguir a conversão histérica de outros processos de formação de sintomas, para os quais se propõe por exemplo o nome de somatização: o sintoma de conversão histérica estaria numa relação simbólica mais concreta com a história do indivíduo" (Laplanche; Pontalis, 1970, p. 150).
Em seu trabalho intitulado "Das neuroses atuais à psicossomática", Ferraz (1997) comenta que
Freud já alertara - antecipando a importância que isso viria a ter no futuro para as expansões da teoria e da clínica psicanalítica - para o fato de que havia duas formas bastante diferentes de se processar a excitação psíquica: transformando-a diretamente em angústia - na qual resultariam sintomas predominantemente somáticos ou não simbólicos - ou, então, procedendo-se à mediatização simbólica, na qual resultariam sintomas eminentemente psíquicos. (Ferraz, 1997, p. 25)
Na neurose atual, ou doença psicossomática, o mecanismo é diverso do histérico. A somatização acontece com o endereçamento ao corpo de energias psíquicas brutas, que não foram representadas e que, portanto, estão impossibilitadas de sofrer recalque. Não existe na doença somática uma rede simbólica, pois essa energia psíquica não foi simbolizada, e o recalque da representação não aconteceu.
Em meados do século XX, Marty, Michel de M'Urzan e Michel Fain foram os principais pioneiros da escola de psicossomática psicanalítica francesa. Eles utilizaram a teoria das pulsões de Freud, incluindo os conceitos de pulsão de vida e morte para a compreensão e o trabalho com pacientes somatizadores ou com funcionamentos mais desorganizados, e introduziram o conceito de pensamento operatório. No pensamento operatório existe um empobrecimento da capacidade de simbolização das demandas pulsionais pela fantasia. Ao invés de manifestações psíquicas, surgem expressões corporais, mímicas faciais, manifestações sensório-motoras e dores físicas (Volich, 2014). No pensamento operatório existiria pouca mentalização.
Volich (2014) relata que para Marty, as vias orgânicas, motoras e de pensamento representam uma hierarquia progressiva de recursos a ser usada para manter o equilíbrio da economia psicossomática. Quando a intensidade dos estímulos é muito grande e na ausência de recursos mais organizados, a economia psicossomática pode reagir de forma primitiva, gerando movimentos contraevolutivos e provocando descargas motoras e de comportamento, além de desorganizações somáticas. Para esse autor, o adoecimento orgânico ou psíquico seria um recurso de regulação do equilíbrio psicossomático e suas relações com o ambiente e as pessoas. As dinâmicas evolutivas e contraevolutivas do desenvolvimento seriam determinadas pelas interações entre as pulsões de vida e de morte em determinado sujeito. Essas relações são marcadas tanto por "fatores regulares do desenvolvimento (anatômicos, fisiológicos, funcionais) como irregulares e imprevistos, como os traumatismos e condições ‘reanimantes'" (p. 36).
Dejours (2023) coloca a psicossomática como um enigma. Refere que o termo "psicossomático" não caracteriza uma doença, um paciente ou uma abordagem específica. Por se tratar de um enigma, a questão seria: "De que maneira a psicanálise é afetada pelas doenças do corpo objetivo?" (Dejours, 2023, p. 1). O autor busca encontrar um sentido do sintoma ou doença somática. Para tanto, utiliza como pressuposto a teoria da sedução generalizada de Laplanche (2015), segundo a qual o adulto, no cuidado do corpo da criança, mistura ali seus conteúdos eróticos, que chegam à criança como mensagens enigmáticas implantadas em seu corpo. A criança tenta traduzir essas mensagens, mas a tradução é sempre imperfeita. O traduzido daria origem às teorias sexuais infantis. A sobra dessa tradução imperfeita resultaria no recalcado, que seria o não traduzido que se torna fonte de excitação interna e estaria no princípio da formação da pulsão. Dentro dessa perspectiva, o acidente de sedução
seria provocado por uma reação compulsiva violenta do adulto, oriunda de seu próprio inconsciente. Trata-se, em suma, de uma sedução que deu errado. A violência - ou estupro - produz na criança um afluxo de excitação que congela seu pensamento, que excede muito suas capacidades de ligação de tal quantidade de excitação [...] No acidente de sedução, nenhum trabalho de pensamento, nenhuma tradução é possível [...] No acidente de sedução, o intraduzível conduz à formação de um inconsciente não recalcado [...] um inconsciente sem conteúdo de pensamento, que proponho caracterizar sob o nome de inconsciente amencial. (Dejours, 2023, p. 5)
Dejours propõe que entre o inconsciente sexual recalcado e o amencial se forma uma clivagem, que "se encontra no princípio da clivagem do Eu e que separa, ao mesmo tempo, o corpo erógeno do corpo inabitado e inabitável" (2023, p. 5). Quando o inconsciente amencial se manifesta, ele irrompe com forças destrutivas para o eu e apresenta-se como descompensação psicopatológica ou somática.
Neste trabalho, discutimos a possível afecção psicossomática no corpo do analista, sendo que o mecanismo aqui ressaltado é o da descarga do excesso pulsional, que geraria uma somatização. Isso não quer dizer que teorias psicossomáticas como as de Marty e Dejours percam seu valor. A relevância aqui estabelecida é a do mecanismo de descarga somática quando a pulsão é excessiva.
Como relata Freud em "Além do princípio do prazer" (1996 [1920]), a camada do córtex cerebral receptora das excitações internas não possui nenhum escudo protetor. Consequentemente, devem ter uma preponderância econômica e podem ocasionar distúrbios econômicos comparáveis às neuroses traumáticas. Desse modo, os impulsos que surgem das pulsões pressionam no sentido da descarga.
O excesso pulsional no trabalho clínico
O trabalho do psicanalista acontece na relação terapêutica entre ele e seu paciente, dentro de um enquadre terapêutico, e tem como fundamentos a escuta e a transferência. A escuta não se restringe somente ao aspecto perceptivo da fala do paciente, mas certamente depende dele. Em 2023, no Seminário Teoria das Pulsões do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Miriam Chnaiderman enunciou, a partir da observação de surdez em analistas, sua hipótese de que talvez um excesso de pulsão pudesse resultar em perdas auditivas. Esta ideia instigadora de que a escuta, com o excesso pulsional mobilizado na transferência e contratransferência, pode levar a uma somatização está sendo explorada neste artigo.
O som que chega ao corpo não é considerado pulsão, pois as excitações pulsionais foram caracterizadas por Freud (1996 [1915]) como advindas do interior do organismo, por exercerem uma força constante para a qual não há possibilidade de fuga. Contudo, Freud também afirma que a pulsão sexual geralmente possui um objeto primeiro fora do corpo: o seio materno. Desse modo, o autoerotismo é um estado secundário, que surge com a perda do seio. A partir da vivência do bebê dos cuidados maternos e do apoio em órgãos e funções corporais, há uma subversão libidinal das funções corporais, que gera o corpo erógeno e permite o acontecimento do autoerótico. Tendo como base esse raciocínio, Laplanche defende a tese de "uma gênese intersubjetiva da pulsão" (2015, p. 238). Nesse sentido, podemos falar dos sons da fala e do ambiente (sua presença ou ausência, sua grande intensidade ou intensidade insuficiente) como possíveis geradores de pulsão no bebê. Seguindo essa ideia da gênese pulsional intersubjetiva, é possível pensar que a escuta dos pacientes pode mobilizar pulsão no analista.
Quando descreve os sintomas da neurose atual, denominada neurose de angústia, Freud menciona a presença de uma irritabilidade geral que aponta para um acúmulo de excitação ou incapacidade de tolerar tal acúmulo. Ele faz uma menção especial à hiperestesia auditiva ou hipersensibilidade ao ruído, um sintoma explicável "pela íntima relação inata entre as impressões auditivas e o pavor. A hiperestesia auditiva revela-se frequentemente como sendo causa de insônia" (Freud, (1996 [1895]), p. 97).
Nessa passagem, Freud aponta para o fato de que o som pode ser sentido como tão excessivo e incômodo ao ponto de gerar irritabilidade e insônia. Ele estabelece uma associação direta do som, percebido como invasivo e assustador, com a geração de irritabilidade e somatização, neste caso, insônia. Logo, podemos pensar que um excesso de pulsão gerado pela escuta pode resultar em uma afecção psicossomática.
Freud (1996 [1915]) forjou o conceito metapsicológico Trieb, ‘pulsão', como um representante psíquico dos estímulos vindos do interior do corpo, que atingem a alma. É o conceito-limite entre o somático e o psíquico, como uma medida de exigência feita ao psiquismo no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo. A partir dessa demanda de trabalho para reduzir a excitação gerada pela pulsão - que não pode ser regulada pela descarga e ação reflexa, como as excitações fisiológicas -, o aparelho psíquico vai se desenvolvendo e se constituindo.
Birman (2021) evidencia o aspecto econômico do aparelho psíquico. Na essência, a pulsão é excitabilidade pura e
[...] dominar essas intensidades implica inscrevê-las em representantes psíquicos. Essa inscrição no registro dos representantes é o que se realiza pelo trabalho do aparelho psíquico propriamente dito. Seria, assim, pela mediação da inscrição das excitações em representantes psíquicos que a regulação das excitações pulsionais se realizaria efetivamente. (Birman, 2021, p. 97)
Entretanto, podemos problematizar que, no início da vida e dependendo da intensidade da excitação, o aparelho psíquico não consegue ainda realizar seu trabalho de inscrição dos representantes psíquicos e, consequentemente, da regulação psíquica das pulsões. A defesa mais primitiva, quando o aparelho psíquico ainda é incipiente, é um retorno da energia da pulsão para o corpo em forma de doença física.
É o que Joyce McDougall discute em seu livro Teatros do corpo: O psicossoma em psicanálise:
[...] as estruturas psíquicas mais antigas da criancinha articulam-se em torno de significantes não verbais nos quais as funções corporais e as zonas erógenas desempenham um papel preponderante. Não nos surpreendemos com o fato de um bebê que foi brutalmente separado de sua mãe durante um período prolongado ou que foi submetido a um choque reaja por hiperfuncionamento gástrico ou por uma colite. Quando um adulto em circunstâncias psíquicas similares cai doente somaticamente, somos tentados a concluir que estamos diante de uma forma arcaica de funcionamento mental que não utiliza a linguagem. (McDougall, 2013, p. 10-11)
Nesse mesmo livro, a autora propõe a noção de solução psicossomática, para retirar as expressões somáticas de uma vertente psicopatológica entre neurose e psicose e pensá-las como uma expressão da dinâmica psíquica em termos dos conflitos entre as instâncias do Eu e do Id e com os extravasamentos econômicos possíveis. Desse modo, a solução psicossomática é considerada como uma solução de compromisso, uma tentativa de autocura, como eram para Freud a conversão histérica ou o delírio psicótico. Ela utiliza o ponto de vista econômico e considera os distúrbios psicossomáticos como provenientes de sobrecarga afetiva com que não se pode lidar pelo pensamento ou por fantasias. É um excesso que não pode, naquele momento, ser qualificado pelo aparelho psíquico e transmutado em reflexão ou fantasia (Staal, 2013).
Essa solução psicossomática pode ter sido utilizada muito cedo pelo bebê, por ser esse um funcionamento mental primitivo, quando ainda não tinha recursos psíquicos para dar outros destinos à pulsão, e pode ser reutilizada a qualquer momento da vida adulta, mesmo que o indivíduo tenha desenvolvido outras defesas psíquicas capazes de outras cartografias pulsionais.
A experiência clínica de McDougall ensina "que todos os analisandos (e os analistas também!) somatizam, mais dia, menos dia, [...] e que as eclosões somáticas coincidem, na maioria das vezes, com acontecimentos que ultrapassam a capacidade de tolerância habitual desses pacientes" (2013, p. 24). A autora reconhece que a solução psicossomática, um recurso arcaico infra ou pré-verbal ao soma, pode coexistir com organizações mais evoluídas do psiquismo, não representando um estado dominante ou um déficit, pois não é uma estrutura. De fato, os pacientes que utilizam essa solução preservam, inconscientemente, a capacidade de adoecer, pois isso lhes permite uma saída em períodos de crise.
Nesse sentido, a ocorrência de afecções somáticas no corpo do analista poderia ser a solução psicossomática encontrada para lidar com uma sobrecarga afetiva e pulsional. Para o psicanalista, esse excesso poderia advir do exercício de um trabalho clínico atendendo muitos pacientes, demasiado em termos afetivos e da mobilização de pulsões que causa. Há momentos em que a sobrecarga pode ser maior, dependendo do momento pessoal que o analista atravessa e do tipo e da quantidade de pulsões mobilizadas pelos pacientes.
Vamos supor que o analista esteja mais fragilizado ou lidando com situações difíceis em sua vida pessoal (por exemplo, um filho doente ou uma separação) e que esteja atendendo vários pacientes difíceis ao mesmo tempo, ou que a problemática dos pacientes tenha relação direta com as questões que está vivendo pessoalmente. Isso poderia gerar uma sobrecarga e uma reação psicossomática.
Em seu trabalho "O cotidiano traumático" (2014), Nosek discute que seria equivocado considerar o trauma somente como um distúrbio que ocorre excepcionalmente, em locais distantes e com pessoas com as quais não nos identificamos. O autor considera que buscamos construir nossos hábitos e fronteiras e queremos habitá-los para nos defendermos dos estrangeiros e do imprevisível da vida. Contudo, o estrangeiro e o imprevisível atravessam nosso cotidiano e chegam a nós de todas as partes: do mundo, do nosso corpo, da nossa alma. Eles se "impõem como tempestade da qual queremos nos abrigar" (Nosek, 2014, p. 59). "O presente é excesso e, portanto, escuro" (Nosek, 2014, p. 54). É necessário encontrar a coragem para transformar essa escuridão não em ausência, "mas naquele real que está à espera de autoria, naquela intuição que está à espera de forma" (Nosek, 2014, p. 54).
Nessa direção, Nosek aponta como o trabalho do analista é criar sentidos junto com o paciente, e que esta geração de sentido é precedida por um gesto ético.
Nossa ética precede nossa técnica: livre associação significará submeter-se ao estranho. Significará, na medida das nossas possibilidades, submetermo-nos ao traumático que a presença dele inevitavelmente trará [...] Susto e espanto são a marca de nossa presença na sala de análise. (Nosek, 2014, p. 59)
Essa reflexão de Nosek corrobora a ideia do quanto a clínica pode vir a ser excessiva para o analista, podendo demandar elaborações que nem sempre ele será capaz de realizar de imediato. Para o analista, o risco do excesso pulsional decorrente de sua atividade de trabalho é considerável. Um dos destinos possíveis desse excesso pulsional no psicanalista seria uma reação psicossomática.
Relato clínico
Para exemplificar a possibilidade de uma somatização do psicanalista decorrente de um excesso pulsional gerado em seu trabalho clínico, relato a seguir uma experiência pessoal.
Depois de um período muito intenso de trabalho como psicanalista, fiquei acamada, com dor nas costas e sem conseguir me sentar. Eram muitos pacientes, vários deles passando por momentos críticos na análise, e eu, na minha vida pessoal, também estava vivendo muitas questões difíceis. Quando terminavam os atendimentos do dia, eu tinha a sensação de que tudo estava intenso demais, uma overdose. Sentia um incômodo enorme pela sensação do excesso vindo dos pacientes e da minha condição menor, naquele momento, de suportar e elaborar o que era mobilizado pulsionalmente em mim. Vivi esse mal-estar por uma semana e não me ocorreu, na época, que meus limites econômicos pudessem estar sendo ultrapassados. A preocupação em atender os pacientes e não os abandonar, a questão financeira, o fato de precisar trabalhar para viver e uma falta de noção e cuidado com meus limites impediram-me de tomar alguma providência. Adoeci. Uma pequena dor na lombar, que eventualmente se apresentava, agravou-se, ao ponto de eu ficar acamada por duas semanas, impedindo-me de atender os pacientes. Uma inflamação na musculatura lombar e dos glúteos foi diagnosticada por imagem. Foi necessário tomar corticoides e fazer fisioterapia.
Nesse relato se evidencia a noção de que o excesso pulsional gerado pelo atendimento psicanalítico dos pacientes - caracterizado pela escuta das associações livres e pelo trabalho com a transferência e a contratransferência -, aliado às condições mais reduzidas da analista de elaborá-lo naquele momento, levaram à ocorrência de uma solução psicossomática. A psicanalista somatizou uma inflamação na musculatura lombar como um extravasamento econômico possível. Isso permitiu uma pausa necessária nos atendimentos para o cuidado do corpo, mas também um tempo para descanso e elaboração do ocorrido. Desse modo, a elaboração psíquica desse evento só foi possível de ser feita a posteriori, sendo este artigo, também, um resultado mais tardio desse processo.
Considerações finais
Os excessos de estímulos visuais e sonoros, de demanda de performances eficientes e rápidas, de trabalho, de informações, de exposição midiática são característicos do nosso tempo. O mundo de hoje é excitante, estimulante, demandante e excessivo. Como viventes do século XXI, temos muito a elaborar, e a necessidade de trabalho psíquico para dar conta das pulsões é enorme. O psicanalista tem um trabalho no qual depara, diariamente, com o excesso de sofrimento e da pulsão de seus pacientes. A escuta da associação livre em atenção flutuante coloca-o em um lugar ético de abertura ao não conhecido, ao não previsível, a uma vulnerabilidade a ser afetado. Isso gera uma situação que pode favorecer a ocorrência de excessos traumáticos no exercício de seu trabalho, somados aos excessos de viver no século XXI no Brasil. Ser psicanalista não nos torna imunes ao sofrimento e às neuroses resultantes da nossa história de vida, a eventos traumáticos e muito menos aos percalços socioeconômicos e culturais do nosso tempo.
Este artigo buscou discutir a possibilidade de o excesso pulsional do trabalho clínico do analista - fundado na lida com as transferências e contratransferências que implicam seu corpo e psiquismo - gerar somatizações. A partir da reflexão teórica e de uma experiência vivida como psicanalista, pensamos que isso seria possível, podendo configurar-se como uma solução psicossomática manifestada pelo psicanalista em momentos de crise. Nesse caso, em lugar de uma perspectiva psicopatológica entre neurose e psicose, as afecções psicossomáticas poderiam ser consideradas como expressões da dinâmica psíquica do analista, que, naquele momento, conseguiu lidar com o excesso somente pelo extravasamento somático, e não pelo pensamento ou pela fantasia. A solução psicossomática manifestada nesse contexto não caracteriza o pensamento operatório, pobre na capacidade de simbolização, ou a manifestação do inconsciente amencial, não recalcado, mas um recurso arcaico, a capacidade de adoecer, usado em uma tentativa de autocura em circunstâncias mais adversas. Não representa, portanto, um estado dominante ou uma deficiência, pois não é uma estrutura.
No trabalho do psicanalista, a escuta pode resultar em muito ruído interno, o que pode configurar um excesso pulsional. Se o analista tem as condições básicas de análise pessoal e supervisão, que podem dar conta do trabalho de elaboração desses excessos, tudo pode correr a contento. Se não tiver as condições e as circunstâncias necessárias para elaborar o excesso pulsional naquele momento, o traumático pode caracterizar-se, e é possível que ocorra uma somatização. Para o seu bem-estar, além de uma rede de suporte tecida na troca com seus pares, o psicanalista necessitaria refletir sobre os seus limites e suscetibilidades nos diferentes tempos e configurações de sua clínica e vida pessoal. A atenção e o autocuidado do analista são essenciais para que se mantenha bem e, assim, possa dispensar o melhor atendimento aos seus pacientes.
Agradecimento
A Miriam Chnaiderman, pela generosa e frutífera interlocução.
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ano - Nº 6 - 2024publicação: 12-12-2024 |
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