QUIMERAS

Revirão

Andrea Nathan Costa


A onda

          Uma falha submarina sob as águas da praia de Nazaré, em Portugal, canaliza e amplifica a energia do oceano, projetando ondas de até 30 metros de altura. O fenômeno atrai surfistas e turistas, assim como milhões de visualizadores no YouTube.

          "É recorrente", digo a Livia. É a primeira vez que trago um sonho para a sessão, e sinto-me como um gato que deposita o passarinho morto na porta do quarto do dono. "A onda é gigante, como aquelas de Nazaré, mas a praia é conhecida, a mesma onde eu passava férias com a família: Massaguaçu."

          A areia de Massaguaçu, na divisa entre Caraguatatuba e Ubatuba, litoral norte de São Paulo, é grossa, áspera, amarela. O estreito trecho entre a estrada e a arrebentação tem a declividade de uma rampa de skate. No sonho, desde pequena, ao tentar sair do mar ameaçador, meus pés afundam na duna movediça, e, mal começo a avançar rumo à terra firme, uma nova onda me arrasta de volta para a água.

          Não tenho coragem de contar a Livia que reconheço, na troca da onda de Massaguaçu pela de Nazaré, o que Freud descreveu como deslocamento. Nem que sei que se trata de um sonho de angústia, quando o objetivo de proteger o sono falha, e eu acordo com taquicardia, os pelos do braço eriçados, medo de virar de lado e dormir de novo. Prefiro buscar o sentido da metáfora. Quais seriam as ameaças condensadas na forma de 90 milhões de litros de água?

 

 

O tsunami

"Foi um tsunami", digo a Livia sobre os eventos que varreram minha vida em 2022. A pandemia havia transcorrido em surpreendente calma e harmonia. Lembro de fazer fogueiras no quintal com meus três filhos e o Venâncio, pai do Bruno, o mais novo. Mutirões para lavar e estender as roupas. Ensaios de músicas dos Beatles para tocar na noite de Natal.

Então, a esperada vacina. E, com ela, a entrada do filho mais velho numa escola nova, uma ETEC modelo, recomendadíssima pelo meu vizinho Jorge e pelo Cláudio, um publicitário que largou tudo para fazer pão. Um mês depois, Felipe, que sofre de misofonia, começou a ter crises de pânico na escola. "Mamãe, socorro, vem me buscar. Não tô conseguindo respirar", ele escrevia no WhatsApp.

Na mesma época, minha sogra Therezinha, uma senhora dócil e franzina com Alzheimer avançado, mudou-se para nossa casa. Agora somos eu, Venâncio, Felipe, o mais velho, Gustavo, o do meio, Bruno, o mais novo, e a vovó. O diagnóstico de um câncer de mama exige que se junte a nós um cortejo de cuidadoras. Cada uma chega num horário diferente, trazendo notícias do trânsito, dos mortos da covid, de uma surra do marido, da depressão da filha adolescente.

"E o trabalho?", pergunta Livia, adivinhando que eu buscaria refúgio das desventuras domésticas na função de comerciante. Em 2002, eu abandonara a carreira de jornalista para abrir uma casa noturna, lotada desde a primeira semana. Em 2022, porém, a maré de sorte parecia ter refluído para bem longe de Pinheiros, onde ficavam minha pizzaria e meus dois bares na época. As obras do Marola estavam atrasadas, com os aluguéis altíssimos acumulando-se, e as notificações de despejo da pizzaria, que havia sido vendida para uma incorporadora, juntavam-se às contas atrasadas na escrivaninha do escritório.

"Foi aí que começou", digo a Livia. "As pessoas pararam de entender o que eu estava dizendo". Os almoços no restaurante árabe com meu sócio tornaram-se tensos; nossos comentários sobre os negócios eram interpretados pelos dois como acusações. Em casa, as brigas com Venâncio passaram a ser diárias, motivadas pela falta de paciência dele com os meninos e pela minha insatisfação com a roda-viva das cuidadoras. Finalmente, percebi que havia algo errado quando briguei com o designer de sobrancelhas.

Desde a primeira sessão de psicanálise, em 2006, meu bloqueio em demonstrar agressividade sempre foi uma questão. Eu não reclamo com o cozinheiro que salga a comida, intimido-me com comentários atravessados de amigos, sempre engoli em seco e deixei para lá. Como seria possível que, de repente, uma resposta atravessada ao visagista escalasse ao ponto de eu sair às pressas do salão Hariel, para nunca mais voltar?

Os atendimentos online com a Marisa tornaram-se cada vez mais insólitos. Incapaz de me manter imóvel numa cadeira, eu subia e descia as escadas de pedra que levam ao quintal da casa, descrevendo ofegante os acontecimentos da semana em velocidade x2. Sem intervalos, sem possibilidade de a Renata intervir. "Venha presencialmente", ela sugeria, mas, no redemoinho das tarefas diárias, dirigir do Butantã até a Augusta parecia impossível. Ainda mais que é difícil estacionar naquela região, eu pensava.

"Quando você resolveu procurar um psiquiatra?", pergunta Livia. "Foi quando eu comecei a gostar daquilo", respondi.  A mania - hoje eu sei que é disso que se tratava - havia aberto as portas da minha percepção, como diria Aldous Huxley num livro que marcou minha adolescência. As brincadeiras de massinha com o Bruno tornaram-se imersões no universo infantil do meu filho. Eu entendia como nunca o que ele estava dizendo com aquelas esculturas.

Certo dia, estacionando em frente de casa, vi minha sogra com as cuidadoras pela janela da sala e resolvi dar uma volta de carro. Cheguei à exposição de um artista indígena, na Casa Bandeirante, e comecei a fotografar as obras, feitas de barro, bambu, espinhos; tudo aquilo fazia sentido para mim. Talvez sentido demais. Na calçada, as raízes de uma árvore haviam rompido o concreto. "Isso também é arte", pensei. Ouvi cigarras cantando nas árvores da rua, identifiquei um padrão de chamado e resposta. "Será que eu estou entendendo o canto das cigarras?", cogitei.

"Você é bipolar, Andrea", disse Gargamel, o psiquiatra. Ele estudou com meu irmão na faculdade há décadas, não consigo chamá-lo de doutor Alexandre, como os outros pacientes. "Há muito estigma sobre esse diagnóstico, mas fica tranquila. É só uma hiperexcitação do cérebro, que pode ser medicada. Tenho uma paciente que está ótima há anos. Quando começa a acordar às 4 da manhã para fazer bolo, ela me liga e ajustamos o remédio."

A imagem de uma senhora madrugadora e seu bolo de cenoura pareceu-me benigna o suficiente. Desde então, tomo 600 mg de lítio todas as noites. Nunca mais tentei decifrar o que dizem as cigarras.

 

O tremor

          "Vou para o Nepal escalar o monte Annapurna, volto em duas semanas. Você fica com os meninos", informei meu ex-marido, Ronaldo, em 2013. Por cinco anos, eu cuidara exclusivamente dos dois, para que ele se dedicasse à carreira de artista plástico. Até que, na saída de um vernissage no MAM, ele emendou um chopinho no bar Elefante com os colegas, seguido por amassos no carro da artista carioca que viera a São Paulo para a abertura do Panorama da Arte Brasileira.

          "É estranho, eu já fui esta mulher", digo à Livia. "Hoje me sinto mais fraca, hesitante. Até as minhas mãos estão mais trêmulas."

          Segundo o Chat GPT, o tremor essencial é um distúrbio neurológico caracterizado por tremores involuntários e rítmicos, geralmente nas mãos, mas que também podem afetar a cabeça, a voz, o tronco e, em casos raros, as pernas. Pode ser confundido com o mal de Parkinson, embora os dois tenham causas diferentes.

          Desde pequena, minhas mãos tremem, mais forte quando estou nervosa, mais levemente quando estou tranquila. Fiz inúmeros exames, todos inconclusivos.

          "E a onda?", retoma Livia, enquanto eu enfio as mãos nos bolsos da calça para disfarçar o tremor.

          "Lembro que era alta, maior que das outras vezes. Impossível tentar passar por cima ou por baixo. A correnteza puxa para o fundo, eu nado com força, mas não saio do lugar. De repente ela aparece." "Ela quem?", pergunta Livia. "A surfista. Ela é jovem, forte, está remando sobre uma prancha de surfe. Ela me aponta a corda que liga meu pé à minha prancha. Eu não sabia que tinha uma prancha, mas ela está longe, eu não a alcanço. A surfista então rema com força, alcança a prancha e a arremessa para mim." 


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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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Autor(es)
• Andrea Nathan Costa
Universidade de São Paulo

 Graduada em Comunicação Social e Jornalismo pela Universidade de São Paulo (1998). Cursando o 3º semestre de Psicologia no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Cursando o 2º semestre da Especialização em Psicanálise da Criança e do Adolescente no Instituto ESPE (Ensino Superior em Psicologia e Educação). Cursando o 1º semestre da Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP). Cursando a formação em Psicanálise e Direitos Adotivos no Instituto Ladrilhar, ligado ao laboratório Jacques Lacan da Universidade de São Paulo.


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