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TEMA

O tempo da pergunta: i.a. e aceleração



Em 23 de junho de 2008, Chris Anderson, então editor-chefe da revista Wired, publicou um artigo que seria alvo de intensos debates. O texto intitulado "O fim da teoria: o dilúvio de dados torna o método científico obsoleto" [The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete] foi um disparador que opôs comentadores de diversas áreas e lugares do mundo, na concordância ou na discordância. Se não é difícil encontrar quem se aproxime ou se afaste das ideias do autor, raro é deparar com algum posicionamento que não seja marcado por afetos intensos - o que nos dá indícios do quão delicada é essa discussão em nossa cultura.

Mesmo tratando-se de uma publicação de mais de 15 anos, o argumento central de Anderson continua atual e ganha mais vitalidade com a difusão de ferramentas baseadas em inteligência artificial: segundo ele, a enorme e ainda crescente capacidade de acumulação e análise de informação permite produzir conhecimento sem a necessidade de recorrer a modelos teóricos capazes de produzir generalizações. Ao contrário, a possibilidade de mobilizar e processar uma miríade de dados a cada instante resultaria em um tipo de conhecimento mais preciso e rápido, uma vez que dispensaria as amarras decorrentes de proposição, debate e legitimação de modelos, paradigmas e métodos, entre outros. Um crescimento exponencial da velocidade e da capacidade de conhecer. A presença massiva de ideias que remetem à temporalidade, como aceleração, velocidade e agilidade, não é um acaso, o que torna o tempo uma questão a ser examinada com cuidado. Faremos isso à frente.

A divisão das reações ao texto pode ser esquematizada da seguinte maneira, de modo muito próximo de como as recepções das novas tecnologias de inteligência artificial têm-se dividido também: de um lado, um grande público que enxerga na aceleração tecnológica um caminho indiscutível de melhoria das condições de vida da humanidade. Consideram que problemas e desvios eventualmente encontrados no progresso serão resolvidos pela própria tecnologia e, frequentemente, imputam aos desenvolvedores um lugar privilegiado em relação à produção de soluções que garantiriam um futuro melhor. Tais posições usualmente são consideradas utópicas, ou mesmo dissimuladas, por autores críticos, que compreendem o avanço tecnológico de outra maneira (Morozov, 2016; Cesarino, 2022; Faustino; Lippold, 2023; Crary, 2023). Essa vertente crítica propõe uma análise de como a tecnologia tem se desenvolvido de uma forma específica que a faz atuar na manutenção de relações de poder, de violências e de segregações. Mas, no caso do texto de Anderson, as discordâncias contam também com a presença de estudiosos da ciência (filósofos, sociólogos, historiadores), que apontam certa ingenuidade, ou até mesmo ignorância ou falta de crítica em relação a como o ex-editor da Wired compreendia o que é ciência.

Fato é que, apesar da divisão de reações e das críticas contundentes, o tipo de questão que enfrentamos hoje com a disseminação de ferramentas baseadas em inteligência artificial mostra que as ideias de Anderson continuam pertinentes. Afinal, a inteligência artificial pressupõe um uso automatizado, intencionado e muitas vezes obscuro da enormidade de dados disponíveis e da capacidade de processamento. O fato de Anderson poder ser criticado em diversos sentidos não significa que o cenário por ele descrito não esteja sendo implementado. Reconhecer os problemas de base pode nos ajudar a localizar os impasses que enfrentaremos, e talvez nos indique alguns caminhos para compreensão e ação. Esse será o meu esforço nas próximas linhas.

Uma boa parte das críticas a Anderson centram-se na discussão sobre a irredutibilidade ou não da ciência a um método dedutivo. Trata-se de uma discussão interessante, com enorme tradição, mas apontada por alguns filósofos da ciência como pouco produtiva, em especial se abandonamos a busca incessante por algum tipo de unicidade metodológica (Hacking, 2012 [1983]). Seria mais produtivo olharmos para uma questão mais básica, algo que nos ofereça a possibilidade de pensarmos em termos mais gerais, não somente em relação ao método científico, mas também sobre a própria produção e a função do conhecimento.

Há um equívoco fundamental nas ideias de Anderson no que tange ao direcionamento e aos vieses presentes na produção de dados. Embora não afirme diretamente, existe uma concepção subjacente dos dados como coisas que simplesmente existem, que estariam aí para serem coletados. Contudo, há algumas considerações que complexificam bastante essa ideia. A primeira diz respeito à própria demarcação do fazer científico enquanto algo que não apresentaria compromissos para além de seguir o estabelecido pela epistemologia ou por discussões metodológicas. Como demonstra Isabelle Stengers (2000 [1993]), embora exista um esforço recorrente pela definição dos limites da ciência somente com base em critérios epistemológicos ou metodológicos - as tentativas de sustentação da unicidade da ciência -, a história desses ensaios é marcada por fracassos. Sempre há um ponto que escapa a essa possibilidade de determinação epistemológica ou metodológica e que, necessariamente, remete à presença da política na produção de conhecimento. Política aqui pensada como aquilo que diz respeito a todos e que conjuga, para além de relações de poder, a hierarquização de interesses, anseios e afetos. Ou seja, sempre há um ponto em que algo da ordem subjetiva se faz presente, ponto esse que ecoa em todos os momentos do conhecer, desde a própria construção dos objetos ou a produção de dados.

Junto a isso, devemos considerar a intencionalidade da produção de dados nas plataformas digitais. Por mais que sejam armazenados dados extremamente variados, e às vezes sem uma utilidade clara, não se deve esquecer que há uma intencionalidade sobre quais dados devem ser produzidos e coletados. Como bem aponta Shoshana Zuboff (2018), a atuação das grandes empresas de tecnologia deve ser compreendida dentro do escopo daquilo que eles conseguem ofertar enquanto produto: previsibilidade comportamental. Mesmo que parte dos serviços e das interações não se relacione diretamente a isso, tudo que é feito tem como pano de fundo a produção de engajamento, a qual significa maior quantidade de dados e, por sua vez, maior capacidade de predição e modificação de comportamentos.

Esses dois pontos, um mais geral e o outro específico em relação à mediação digital, são centrais no debate sobre inteligência artificial. Afinal, se deparamos com possibilidades inéditas de produção e tratamento de dados, com quantidades e velocidades que não conseguimos acompanhar, os vieses da própria produção e da análise dos dados facilmente podem radicalizar-se sem que percebamos. O risco é uma grande naturalização acrítica dos saberes que circulam, além da reprodução ideológica de normatividades sociais e violências que se fazem presentes nesse processo. Algo que se vê com incontornável urgência, por exemplo, na perpetuação de uma estrutura sexista na disponibilização de conhecimento em interfaces baseadas em I.A., ou mesmo em tecnologias de segurança pública que reproduzem racismo ao apresentar uma taxa de erro extremamente maior no reconhecimento de pessoas negras.

O que vemos, portanto, são os efeitos que uma relação naturalizada com o conhecimento e com a tecnologia carrega. Não é um fato nem um debate novo, mas algo que ganha proporções inéditas pela aceleração. A velocidade das respostas condiciona dois fatores solidários entre si, e de suma importância: por um lado, a possibilidade de apreciação crítica do conhecimento, como apresentado anteriormente; por outro, o lugar do sujeito na produção dos saberes.

Pensar o lugar do sujeito implica pensar também a função do conhecimento. Para além de uma forma de conhecer e controlar o mundo, há uma dimensão que não pode ser ignorada: produzir conhecimento é uma maneira de elaborar experiências, organizar afetos e descobrir caminhos e destinos possíveis para pulsões. Lembremos que Freud afirma, em "Sobre as teorias sexuais infantis" (2015 [1908]), que o início das atividades científicas das crianças é disparado pela chegada de um par (seja um irmão, seja o irmão de alguma criança conhecida). A partir disso, constrói-se uma pergunta fundamental sobre o início da vida, a qual não deixa de ser um questionamento sobre o amor e o desejo de seus cuidadores. Uma experiência de angústia encaminhada pela via do saber, produzindo perguntas e teorias que tentam integrar os afetos e a história de erotização dos corpos de cada um. Um movimento que demanda uma temporalidade expandida, pois inclui investigações, experimentos e testes; e cujas teorias usualmente incomodam os adultos, o que sugere a precariedade e a incompletude das respostas encontradas (para as crianças e para os adultos). Os restos se marcam e continuam a se fazer presentes e a demandar novas elaborações, o que remete à permanência dessas (e outras) perguntas que nos acompanham e, mais do que isso, fazem parte de nossa constituição.

É preciso dar a devida importância à elaboração presente na produção de saber, e não obliterar a dimensão afetiva atrás de uma tendência ideológica de reduzir processos a ideias rasas de cognição e informação. Desse modo, a reflexão sobre os efeitos de uma relação acrítica e acelerada com novas tecnologias ganha novos contornos. Não se trata somente de pensar sobre como iremos lidar com dados ou com a velocidade com que as interfaces de I.A. podem nos oferecer respostas, mas sim de qual é o tempo que nos resta para lidarmos com as perguntas que nos habitam e constituem. O tempo das perguntas é diferente do tempo das respostas, e não podermos nos demorar na angústia do perguntar é um problema frente ao qual não podemos recuar.


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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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Autor(es)
• Paulo Beer
Universidade de São Paulo


 Psicanalista. Pesquisador; professor convidado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade de São Paulo, onde desenvolve uma pesquisa sobre os impactos subjetivos de novas tecnologias digitais. Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP) da International Society of Psychoanalysis and Philosophy, da Associação de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT). Editor de Lacuna: uma revista de psicanálise, da Revista Traço e da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Contato: paulo.beer@usp.br

Referências bibliográficas

CESARINO, L. O mundo do avesso: Verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu, 2022.

CRARY, J. Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. São Paulo: Ubu, 2023.                                                           

FAUSTINO, D.; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: Por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023.

FREUD, S. (1908). Sobre as teorias sexuais infantis. In: FREUD, S. (1906-1909). O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos. Obras completas, volume 8. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo:  Companhia das Letras, 2015.

HACKING, I. (1983) Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2012.

MOROZOV, E. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2016.

STENGERS, I. (1993). As políticas da razão. Lisboa: Edições 70, 2000.

ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.


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