Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto da Covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, como pandemia. Os casos decorrentes dessa doença começaram na cidade de Wuhan, na China, em dezembro do ano anterior e logo se espalharam pelo mundo. Diante desse cenário avassalador, observou-se um grande impacto psicológico nos sujeitos, tanto pela ação direta do vírus como por experiências traumáticas associadas à pandemia e às consequências impostas às vidas de todas as pessoas, sem exceções, ou seja, as sequelas deixadas na pandemia transbordam a questão numérica de mortes, passando para o campo de saúde mental (Faro et al., 2020).
Segundo Freud, é possível afirmar que o termo "traumático" possui uma conotação essencialmente econômica, ou seja, utiliza-se esse termo para descrever uma experiência vivida que sobrecarrega a vida psíquica com um influxo de estímulos muito intenso em um curto tempo, no qual sua assimilação ou processamento pelos meios habituais e normais falha, resultando em perturbações prolongadas no funcionamento energético. (Fulgêncio, 2004).
Seguindo esse raciocínio, podem-se constatar limites na capacidade de assimilação mental dos indivíduos, que podem ocorrer em menor ou maior grau, de acordo com o momento de vida do sujeito (Marty apud Vieira, 2004). Logo, a mentalização[1] eficaz é aquela que oferece proteção adequada contra somatizações, ou seja, quando conteúdos compostos de carga afetiva, tais como lembranças, conflitos, projetos, entre outros, são passíveis de reflexão e assimilados interiormente. Através das conexões mentais que permitem associações e representações, os traumatismos dissolvem-se, diminuindo seu impacto no corpo. Porém, quando a mentalização é precária, o indivíduo opera no concreto, sem ter condições psíquicas de elaborar situações emocionais mais complexas, tornando o pensamento superficial e evidenciando comportamentos impulsivos e emotivos difíceis de serem controlados, visto que as representações mentais são inadequadas para assimilar, elaborar e distribuir cargas afetivas; dessa forma, afloram as possibilidades de somatizações (Vieira, 2004).
Com relação à precariedade simbólica que, potencialmente, coloca o sujeito em risco de desorganização psicossomática, McDougall (2015) define a "alexitimia" como uma estrutura defensiva contra a vitalidade interna, quando os afetos se destituíram de sua função de ligamento, provocando uma busca constante e malograda de comunicação interna. Diante disto, a capacidade de nomear a dor por meio das palavras é prejudicada, dando início ao pensamento operatório[2] ou alexitímico. A palavra "enlaça" representação e afeto, tornando-se um caminho de proteção para o aparelho psíquico contra desorganizações progressivas do corpo.
Pode-se compreender, então, que a origem da sintomatologia somática se dá pela impossibilidade de elaboração e pela falta de defesas eficazes contra a descarga pulsional. Esse déficit representativo é o responsável pelo empobrecimento de respostas emocionais observado em pacientes considerados psicossomáticos. Nesse sentido, as excitações e o trauma podem entrar nesse raciocínio, sendo passíveis de desencadear regressão e desorganização progressiva (Volich, 2016).
Entende-se por regressão o retorno às coisas mesmas ou a volta do sujeito ao seu passado, fenômeno este que pode ser observado em variadas circunstâncias, como nos sonhos, nas relações transferenciais, nos comportamentos, entre outros. Esse tipo de funcionamento da economia psicossomática é constituído por pontos de fixação,[3] visando a reorganização e recuperação do equilíbrio. Toda regressão está ancorada em uma fixação, que pode se apoiar em regressões e fixações anteriores (Volich, 2016).
Dessa forma, o duo regressão-fixação determina o destino da economia individual, assim, quando existem bons recursos psíquicos, as excitações excessivas provocam uma desorganização mental leve, desencadeando uma sintomatologia que se mantém na esfera mental, como perturbações psíquicas e angústia. De outro modo, a precariedade de elaboração psíquica e, consequentemente, a insuficiência de fixações e de recursos regressivos levam o sujeito à desorganização progressiva da economia psicossomática, observando-se o movimento contraevolutivo continuado, marcado pela pulsão de morte, o desaparecimento da hierarquia funcional e a desorganização mental, que se inicia no aparelho psíquico e, gradualmente, provoca descargas no comportamento e, por fim, no funcionamento orgânico (Volich, 2016).
Essa dinâmica psíquica abre espaço para "desorganizações somáticas notáveis, muitas vezes com manifestação efetiva de diversas doenças (inclusive doenças de crise), com rapidez de evolução variável e, no extremo, de doenças graves" (Volich, 2016, p. 212).[4]
Há também duas condições importantes de serem refletidas na psicossomática psicanalítica, conceituadas por Pierre Marty (apud Volich, 2016): o pensamento operatório e a depressão essencial. Ambas são manifestações das deficiências de funcionamento das dinâmicas psíquicas, podendo evoluir para um quadro de sintomatologia somática não conversiva. Quanto ao pensamento operatório, trata-se de um conjunto de manifestações que remetem a uma aderência extrema à realidade material, em que o sujeito apresenta comportamentos automáticos e adaptativos, alienação da própria história, ruptura com o inconsciente e com a sexualidade, negligência do passado e incapacidade de projeção para o futuro. Notam-se, no lugar de manifestações psíquicas ou emocionais, expressões corporais, mímicas faciais, manifestações sensomotoras e dores físicas; há também uma ausência de sonhos, de sintomas e mecanismos de defesa, bem como uma utilização empobrecida da linguagem e observa-se que as relações interpessoais são marcadas pela indiferenciação e o rebaixamento dos investimentos objetais. Já a depressão essencial caracteriza-se por angústias difusas, arcaicas e automáticas, rebaixamento do tônus libidinal e por um desamparo profundo e desconhecido pelo sujeito, que pode apresentar profunda fadiga e perda de interesse por tudo (Volich, 2016).
Vale ressaltar que as dinâmicas que determinam o grau de mentalização variam, de sujeito para sujeito, dentro de um espectro que se inicia no mais desorganizado,[5] passa por organizações instáveis[6] e termina no mais organizado[7] (Volich, 2016). A partir disso, observam-se algumas dimensões que auxiliam na investigação psicossomática, como as "[...] características do discurso, organização das representações, manifestações comportamentais, [...] ou depressão essencial, características da transferência [...]" (Volich, 2016, p. 242).
Partindo dessa visão, Volich (2016) esclarece que a progressão do adoecimento pode ser agrupada em duas modalidades: as doenças de crises e as doenças evolutivas. As primeiras manifestam-se a partir de algum episódio de vida ou um momento depressivo, podendo desempenhar uma função organizadora; são "funcionalmente localizadas, de natureza reversível e normalmente não colocam em risco a vida do sujeito" (Volich, 2016, p. 251). Exemplos: asma, eczema, úlceras, cefaleias, entre outros. As evolutivas são mais graves, acompanhadas normalmente de um processo de desorganização progressiva, "podem ter como primeiro sinal a repetição ou o agravamento das doenças de crises, que adquirem um caráter evolutivo e se cronificam" (Volich, 2016, p. 252); dificilmente são reversíveis e podem colocar em risco a vida do sujeito. Exemplos: doenças cardiovasculares, autoimunes, vários tipos de câncer, entre outras.[8]
Entendemos que o contexto pandêmico da Covid-19 impôs a todos os sujeitos experiências excessivas, cujos efeitos possuem um caráter traumático e, portanto, como hipótese, podem desequilibrar a economia psicossomática. Neste ponto, é pertinente retomarmos o conceito de neurose atual de Freud (1977 [1912]), em que o termo "atual" se refere a uma temporalidade que presentifica o conflito e não faz referência a qualquer representação da vida infantil primitiva, que, portanto, não convoca o psiquismo ao recalque, mas antes sofre a angústia no concreto do próprio corpo. Nesses casos, a excitação somática transforma-se, de maneira direta, em angústia (Freud, 1977 [1894]). Experiências excessivas para o aparelho psíquico, como os sofrimentos advindos da pandemia, atacam a capacidade de fluição da dinâmica do recalque e lançam o sujeito no limbo da dor sem representação. Com relação ao corpo, depositário de uma descarga sem representação, Fernandes (2011) esclarece:
Se a conversão nos convida a evocar o modelo de um corpo da representação, a somatização nos sugere, por sua vez, se assim podemos dizer, o modelo de um corpo do transbordamento, em que o sintoma corporal pode ser compreendido como uma descarga. (Fernandes, 2011, p. 52)
No caso específico de crianças e bebês, que dependem de um adulto para se desenvolver física e psiquicamente, as experiências traumáticas da pandemia tiveram uma consequência indireta em suas vidas, uma vez que os adultos cuidadores estavam imersos nesse contexto desestabilizador. Winnicott (2000) deixa evidente a importância do ambiente para o desenvolvimento psíquico saudável, entendendo que os cuidadores devem estar suficientemente bem para poder proporcionar esse ambiente. É certo que há inúmeros fatores que podem prejudicar a história de vida do bebê com seus cuidadores, de modo que não se desenvolva de forma saudável. No entanto, a pandemia de Covid-19, com suas imposições, restrições e vivências traumáticas, certamente contribuiu para o desequilíbrio dessas relações. McDougall (1996) salienta que determinados modos de funcionamento psíquico, adquiridos na relação primitiva com os cuidadores, ou seja, em seus primeiros meses de vida, podem predispor o sujeito a "eclosões psicossomáticas". Deste modo, podemos supor que cuidadores, também atacados pela violência da realidade pandêmica, tiveram sua capacidade de paraexcitação prejudicada, sendo incapazes de mediar o sofrimento de seus filhos, fossem eles bebês, crianças ou adolescentes. Portanto, a pergunta de pesquisa deste artigo é: A pandemia da Covid-19 pode desencadear quadros de doenças psicossomáticas em crianças e adolescentes?
A partir desse questionamento, buscou-se identificar a influência ou não do ambiente e das relações familiares no enquadre pandêmico, como elementos de vulnerabilidade para o desencadeamento da desorganização mental em crianças e adolescentes; compreender se o estresse psicológico ocasionado pela pandemia pode ser considerado um fator desencadeante para o surgimento de doenças somáticas em crianças e adolescentes; conhecer possíveis sinais de alerta e formas de enfrentamento de uma doença somática em crianças e adolescentes e contribuir como suporte aos profissionais da área da saúde e familiares e/ou cuidadores de crianças e adolescentes que estão imersos em um processo de adoecimento decorrente da pandemia.
Desta forma, o presente trabalho teve como objetivo investigar, por meio da pesquisa exploratória, quais os fatores que interferiram na economia psicossomática observados em crianças e adolescentes na pandemia da Covid-19, contribuindo como suporte para profissionais da área da saúde e familiares e/ou cuidadores de crianças e adolescentes que estavam imersos em um processo de adoecimento decorrente da pandemia. Conhecer os fatores de desorganização psíquica gerados na pandemia, em crianças e adolescentes, é o primeiro passo para perceber o processo de adoecimento e buscar a prevenção da sintomatologia somática. Além disso, esse conhecimento possibilita a conscientização e consequente busca de formas de enfrentamento no caso de doenças de crises ou evolutivas.
Para essa pesquisa exploratória, foi feito um levantamento para selecionar artigos científicos sobre o tema pertinente em plataformas de pesquisa, a saber, BVS e CAPES, e foram considerados os artigos datados a partir de março de 2020, data em que a OMS declarou o surto da Covid-19 como pandemia, até o ano de 2022. Os artigos encontrados na base de dados da BVS também foram encontrados na base de dados CAPES, ou seja, estavam duplicados, portanto, foram eliminadas as duplicidades, mantendo a extração dos dados somente da base BVS.
Após a seleção dos artigos válidos, os mesmos foram fichados e analisados à luz da psicossomática psicanalítica, considerando as informações congruentes aos objetivos propostos para este projeto. Assim, tomando como base os artigos encontrados, pudemos observar que o isolamento social foi um fator preponderante para o desencadeamento de sintomas psíquicos e físicos no público infantojuvenil. No entanto, o contexto pandêmico trouxe consigo muitas mudanças complexas no cotidiano de crianças e adolescentes, tais como o afastamento da escola; o excesso de convivência familiar, que atravessou o espaço escolar, já que as aulas foram ministradas online durante um longo período de tempo; para o público de baixa renda, a falta de nutrição, visto que as refeições eram feitas na escola; o afastamento de amigos; o adoecimento de familiares e pessoas próximas, que precisaram de internação hospitalar, sem direito a visitas, provocando angústia e medo; a perda de familiares; o enfrentamento de crises financeiras e estresses decorrentes pelos pais e responsáveis; o ambiente familiar caótico e tóxico e o aumento da violência doméstica; o excesso do uso das tecnologias digitais, como redes sociais e jogos online, que provocaram alterações de comportamento com potencial risco para a saúde mental dos adolescentes. Esse cenário perturbador contribuiu significativamente para o desenvolvimento de quadros de ansiedade, pânico e depressão, além de maior propensão à automutilação e à ideação e tentativa de suicídio, precipitando o surgimento de quadros psiquiátricos.
Almeida et al. reportam que "crianças socialmente isoladas apresentaram risco significativo de problemas de saúde típicos dos adultos" (2022, p. 6). Além disso, outros sintomas foram notados, como a piora do desenvolvimento cognitivo, o aumento dos níveis de cortisol e alterações comportamentais decorrentes do confinamento. Linhares e Enumo (2020) também constataram que, diante do distanciamento social, crianças expostas a contextos estressores, especialmente no ambiente familiar, apresentaram elevado nível de cortisol, podendo provocar hiperatividade em seus circuitos neurais, intensificando emoções relacionadas ao medo e provocando reações agressivas, ameaçando a capacidade de enfrentamento adaptativo diante dessas situações.
"O caráter traumático de uma vivência resulta tanto dos recursos que a pessoa conseguiu desenvolver ao longo da vida para lidar com ela como da intensidade do estímulo e/ou evento ao qual ele está submetido" (Volich, 2016, p. 213). Para a psicossomática psicanalítica, o desenvolvimento e o equilíbrio da economia psicossomática originam-se através da função materna, que influencia o processo de maturação do bebê e sua constituição psíquica. "A perturbação nas relações com seus semelhantes, sobretudo nos primórdios da vida, é um elemento potencial de instabilidade do funcionamento psicossomático" (Volich, 2016, p. 160).
Os estudos de Pereira e Avelar (2021) retratam, à luz da teoria de Donald Winnicott, os efeitos da pandemia na relação mãe-bebê dentro das instituições hospitalares, diante dos protocolos exigidos em relação à Covid-19, como distanciamento, uso de máscaras, restrição de visitas dos familiares. Esses procedimentos fizeram com que mães e bebês se sentissem mais vulneráveis emocionalmente, favorecendo a depressão pós-parto e prejudicando o estabelecimento do vínculo mãe-bebê, bem como a apropriação do papel materno, impactando profundamente o processo de construção da maternidade.
Segundo Winnicott (2000), a mãe suficientemente boa cria um laço de identificação com o bebê nos primeiros meses de vida. Ela propicia um ambiente acolhedor, protetor e afetivo, que possibilitará sua adaptação e fornecerá o que for necessário para atender às suas necessidades físicas, psíquicas e emocionais. Nesse ambiente adaptativo e suficientemente bom, é possível que haja o desenvolvimento psíquico do bebê sem prejuízos, permitindo que as tendências inatas, tanto psíquicas como físicas, se desenvolvam de forma saudável e, assim, permitam que o bebê tenha as condições necessárias para o surgimento de um self verdadeiro. Essa mãe é também a mediadora entre o bebê e o mundo externo, portanto, a maneira como ela intermedeia essa relação do bebê com o ambiente possibilita que o mesmo desenvolva convicções de que o mundo externo oferecerá o que é necessário para o atendimento de suas necessidades, e, assim, esse bebê desenvolverá de forma saudável a noção de realidade interna. Para Winnicott (1983), a mãe, se suficientemente bem para entregar-se à maternidade, torna-se cada vez mais identificada com o bebê e, consequentemente, uma mãe suficientemente boa, pois consegue sustentá-lo psiquicamente, dando conta de seus instintos e favorecendo, assim, sua integração. Além disso, ele ressalta a necessidade de a mãe ter apoio para conseguir alcançar este objetivo. "Para se desempenhar bem, a mãe necessita de apoio externo; habitualmente, o marido a protege da realidade exterior e, assim, a capacita a proteger seu filho [...]." (Winnicott, 1983, p. 68).
Costa et al. (2021) também se apoiam em Winnicott para mostrar a importância do processo de socialização para o público adolescente, cujos prejuízos, diante da pandemia, ainda não são mensuráveis a longo prazo, já que o confinamento levou ao excesso de convivência familiar e consequente falta de privacidade. Os autores refletem sobre comportamentos de autolesão e ideação suicida diante do uso intensificado da internet e exposições ao cyberbullying, além da fragilização das redes de apoio e dos conflitos e violências intrafamiliares, que comprometeram as possibilidades de sustentação e holding, essenciais no processo de amadurecimento.
Oliveira et al. (2020) percebem uma propensão maior à adoção de comportamentos que podiam colocar a vida em risco, como automutilação e ideação ou tentativa de suicídio, decorrentes de quadros de ansiedade e depressão, por conta das mudanças estressantes no cotidiano desse público, provocadas pelas condições impostas pela pandemia.
O sintoma e a doença representam ameaças à integridade do sujeito, portanto, são perturbadores do equilíbrio da economia psicossomática. "Qualquer sintoma, mental, comportamental ou somático é, antes de tudo, uma manifestação do sofrimento do sujeito" (Volich, 2016, p. 256). Vale considerar que pessoas bem estruturadas em seus funcionamentos psíquicos reagem com perturbações de menor intensidade, já que possuem recursos suficientes para elaboração e escoamento das excitações acumuladas e, com isso, podem suportar altos níveis de tensão e acontecimentos intensos, já que "a principal função do aparelho psíquico é exatamente transformar as excitações em representações" (Ranña, 2007, p. 144).
Dentro do contexto pandêmico, Aydogdu (2020) considera que houve um aumento de alterações de comportamento e humor no público infantojuvenil, dentre eles medo, ansiedade, estresse, desânimo, tristeza, preocupação, raiva, inquietude, insônia, sentimentos de desamparo e sofrimento, além de comportamentos agressivos e desrespeitosos. Reis et al. (2021) retratam que a exaustão parental criou ambientes perturbadores, despertando emoções negativas como ansiedade e depressão em crianças e adolescentes. Wünsch et al. (2021) também constataram que os jovens sofreram impactos na saúde mental por conta do isolamento social, que fez com que muitos deles convivessem com pessoas sob estresse psicológico em casa, passando por situações de violência ou emocionalmente difíceis diante de familiares infectados e falecimento de entes próximos, reverberando em quadros sintomatológicos complexos, como transtorno de ansiedade generalizada, sintomas depressivos, distúrbios do sono, ataques de pânico, sintomas somáticos, transtorno de estresse pós-traumático, psicose e até comportamento suicida.
Athanasio et al. (2020) observam que crianças de classes sociais menos favorecidas sofreram maior impacto na saúde mental e adolescentes de famílias que passaram por dificuldades financeiras tiveram maior propensão a apresentar sintomas depressivos e menor sentimento de pertencimento. Souza (2021) aborda as consequências das alterações nas dinâmicas escolares impostas pela pandemia e percebe que algumas crianças sintomatizaram, atuaram, recusaram o saber e/ou se inibiram diante da demanda parental e da alta expectativa de sucesso.
Por fim, Santos et al. (2022) pousam seu olhar sobre o silenciamento infantojuvenil diante das decisões parentais e governamentais decorrentes da pandemia, já que não eram incluídas nos diálogos e nas tomadas de decisões que as afetavam diretamente, e observam as implicações éticas decorrentes, com base nos direitos das crianças, envolvendo saúde e educação, atravessadas pela desigualdade social.
A saúde mental depende de fatores diferentes da saúde física, como presença de cuidadores com capacidade de oferecer cuidados, capacidade da criança de receber esses cuidados, uma tendência inata dos bebês ao desenvolvimento (desde que o ambiente proporcione os cuidados necessários) e a provisão das necessidades físicas e emocionais. "Prover para a criança é por isso uma questão de prover o ambiente que facilite a saúde mental individual e o desenvolvimento emocional" (Winnicott, 1983, p. 63).
Vimos anteriormente que, segundo Pierre Marty, a origem da sintomatologia somática ocorre quando há impossibilidade de elaboração e falta de defesas eficazes contra a descarga pulsional, ou seja, quando há déficit representativo, há o empobrecimento de respostas emocionais. Nesse contexto, a experiência traumática desorganiza o aparelho funcional (Volich, 2016). A pandemia tornou-se uma possibilidade de experiência traumática, provocando quadros sintomatológicos dos mais variados níveis de gravidade. Crianças e adolescentes foram acometidos por crises de ansiedade e depressão, muitas vezes levando-os a comportamentos que colocavam a vida em risco, evidenciando uma precariedade de elaboração psíquica (Oliveira et al., 2020; Costa et al., 2021). Logo, fez-se urgente observar, escutar, criar espaços para diálogos, oferecendo lugar para expressão e elaboração das questões trazidas pela pandemia, e, especialmente, ampliar o olhar de modo a perceber que as excitações excessivas observadas nesse público podem ter causado um desequilíbrio na economia psicossomática do sujeito e, como consequência, uma desorganização somática, descarga pelo comportamento e, até mesmo, atuações que poderiam colocar o sujeito em risco de morte.
Os artigos apontam para o desenvolvimento de quadros de ansiedade, pânico e depressão, além de comportamentos que poderiam colocar a vida em risco, como automutilação e ideação suicida (Oliveira et al., 2020; Costa et al., 2021). Foi observado, inclusive, que o estresse tóxico causado pelo contexto pandêmico provocou o aumento dos níveis de cortisol no organismo do público-alvo, intensificando sentimentos de medo e comportamentos agressivos (Almeida et al., 2022), porém, apesar de, nessa pesquisa, não terem sido encontrados estudos que atrelassem diretamente esses sintomas às doenças psicossomáticas de crise, tais como asma, úlceras, cefaleias, entre outras, e/ou doenças psicossomáticas evolutivas, tais como doenças cardiovasculares, autoimunes, câncer, entre outras, sabe-se que o estresse tóxico pode ter provocado um aumento da inflamação no corpo pela elevação dos níveis de cortisol, comprometendo, com isso, o funcionamento do sistema imunológico e colocando o organismo em predisposição para o desenvolvimento de doenças psicossomáticas evolutivas.
Por fim, constatou-se, através dos estudos supramencionados, que o ambiente e as relações familiares, dentro do contexto pandêmico, provocaram alterações de humor e comportamento no público infantojuvenil (Aydogdu, 2020; Reis et al., 2021; Wünsch et al., 2021; Santos et al., 2022), tornando-se possível reconhecê-las como sinais de alerta importantes, que devem ser percebidos e entendidos como possíveis desencadeadores de doenças psicossomáticas. Sendo assim, esperamos que essa pesquisa se torne uma ferramenta relevante para profissionais da área de saúde, bem como familiares e/ou cuidadores de crianças e adolescentes que estejam imersos em um processo de adoecimento, decorrentes da pandemia, de modo a fomentar redes de apoio mais implicadas e conscientes.
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ano - Nº 6 - 2024publicação: 12-12-2024 |
[1] Termo conceituado por Pierre Marty.
[2] Conceito elaborado por Pierre Marty, que será abordado com mais detalhes no decorrer deste artigo.
[3] Em Psicossomática de Hipócrates à psicanálise (2016), Volich esclarece que, no decorrer do processo do desenvolvimento individual, que é atravessado por experiências de prazer e desprazer, são constituídos pontos de fixação libidinal, que podem ocasionar um desvio no movimento evolutivo da organização. Com isso, movimentos de regressão, no sentido contrário do desenvolvimento, podem ser ocasionados quando o sujeito depara com situações de desprazer ou de aumento tensional.
[4] É importante considerar que toda doença - mental, somática ou comportamental -, apesar de seu caráter desviante, regressivo e muitas vezes extremo, é ainda uma tentativa de estabelecimento de um equilíbrio do organismo, que não consegue enfrentar as tensões internas ou externas às quais está submetido por intermédio de recursos mais evoluídos (Volich, 2016, p. 212).
[5] Más mentalizações - recursos psicossomáticos precários.
[6] Mentalizações incertas.
[7] Boas mentalizações - bons recursos psíquicos.
[8] Com o intuito de evitar leituras simplistas na investigação psicossomática, Pierre Marty ressalta que:
"[...] não é raro encontrar doenças somáticas em sujeitos que normalmente apresentam características neuróticas mentais, superestruturas ricas, uma inteligência viva e brilhante, constata-se assim que, finalmente, sob o peso de circunstâncias interiores e exteriores, cada um de nós pode encontrar-se doente no plano somático" (Marty, 1990, p. 619 apud Volich, 2016, p. 253).
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