Apresentação
Na "clínica psicossomática psicanalítica corpo e voz"[1] os sintomas corporais e vocais são vistos como fenômenos multidimensionais que exigem compreensão abrangente e análise aprofundada das experiências corporais (dor, anestesiamento, disfunção, bloqueios etc.), emocionais e psicológicas do paciente. Os traumas, os conflitos internos e as dinâmicas relacionais podem manifestar-se corporalmente como descarga e/ou conversão, de tal modo que exponham as dificuldades da complexa interação entre os fatores psicológicos e as manifestações corporais nos processos de adoecimento. Nessa perspectiva, corpo e voz representam a expressão biológica e, ao mesmo tempo, a linguagem simbólica que evidencia os conteúdos conscientes e inconscientes, em que a voz é compreendida como um recurso da comunicação não verbal, e a qualidade, o tom, o ritmo e o gesto vocal expõem um corpo subjetivado e identitário (Mello, 2022).
Com base nesse pressuposto, o trabalho terapêutico volta-se para a exploração e interpretação de sintomas, em que o terapeuta ajuda o paciente a acessar e compreender os significados subjacentes aos sintomas psicossomáticos com vistas a resolução de conflitos, viabilização de processos de autoconhecimento e cura.
As abordagens incluem intervenções facilitadoras para análise dos discursos verbal e não verbal, exploração de memórias e experiências passadas, atualização das sensações e percepções corporais, associações livres, acolhimento e cuidados de processos dolorosos, apoiadas na condição de transferência e contratransferência. Para isso, as intervenções são norteadas pelos conhecimentos de Psicossomática psicanalítica e Fonoaudiologia (voz, comunicação e motricidade orofacial), pelos princípios psicocomportamentais do método de reestruturação das cadeias musculares e articulares de Godelieve Denys-Struyf - GDS (1997). Segundo essa autora, os conhecimentos integrados de fisioterapia, psicologia, psicanálise e neurociência permitiram a construção de um método psicoeducativo da saúde que viabiliza o enfrentamento de processos de adoecimento, bem como a autogestão da dor, por meio do encadeamento equilibrado das tensões, atualização da sensorialidade e aprimoramento perceptual.
O objetivo deste artigo é discutir o caso de um adolescente com desorganização psicomotora à luz do conceito de metábola, na perspectiva da "clínica psicossomática psicanalítica corpo e voz".
Introdução
A adolescência é uma fase de transição marcada por conflitos relacionados a sexualidade, identidade e relações interpessoais. Freud (1989 [1901-1905]) aponta a sexualidade como parte intrínseca da natureza humana desde a infância, desempenhando um papel central na formação da personalidade e nas experiências emocionais dos indivíduos ao longo da vida. Na puberdade, os jovens podem experimentar sentimentos ambivalentes em relação aos pais, à medida que tentam encontrar equilíbrio entre a necessidade de independência e o desejo de conexão emocional. Diante disso, os desejos sexuais e as pulsões instintivas tornam-se especialmente intensos à medida que o indivíduo busca firmar sua independência e identidade sexual. O texto não se concentra exclusivamente na puberdade, mas oferece reflexões significativas sobre o desenvolvimento sexual, incluindo os estágios que ocorrem durante esse período de transição crucial da vida. Depreende-se a partir do conteúdo que, embora a fase oral seja comumente associada ao desenvolvimento infantil, ela pode evidenciar manifestações relevantes na adolescência, tais como: dificuldades articulatórias na mastigação e na fala, transtornos alimentares, lábios evertidos, língua hipotônica, respiração oral, entre outras, em que a boca se configura como principal fonte de prazer e exploração sensorial.
Nessa perspectiva, o alimento, além do seu estatuto de objeto da necessidade orgânica, também se inscreve como uma compensação simbólica que remete, dentre outros aspectos, às relações primordiais, em que a gênese da sexualidade se instaura na fase oral durante a amamentação (HENRIQUES et al., 2015).
Segundo Freud (1989 [1901-1905]), a amamentação constitui uma condição de unidade em que a mãe oferece ao seu bebê os valores (significantes) que dizem respeito a si mesma. O investimento libidinal materno propicia ao bebê a instauração de um processo de organização psíquica que resulta na constituição do sujeito.
Em concordância, Jerusalinsky explica que a função materna implica em instaurar um funcionamento corporal subjetivado aos cuidados que realiza na relação com o bebê:
A mãe se ocupa da economia de gozo do bebê, do olhar, da voz, da alimentação, da retenção e expulsão de fezes, do ritmo de sono e vigília, estabelecendo um circuito pulsional no bebê, que não terá mais como prescindir do Outro para obter satisfação (Jerusalinsky, 2014, p.15).
Entretanto, a unidade mãe-bebê estará condicionada a vários fatores que podem influenciar positiva ou negativamente a relação, dentre os quais podemos destacar a disponibilidade da mãe em oferecer o seio; as características do bebê na busca pelo seio materno; a possibilidade de acolhimento e a presença do pai, em que pesem a condição de representação psíquica e os traços inconscientes de cada um nessa dinâmica familiar.
No que diz respeito à relação entre mãe e bebê, Lacerda (2020) argumenta sobre a importância da linguagem corporal do bebê como uma via de acesso às características constitutivas e aos traumatismos da fase mais arcaica. A autora refere que a comunicação não verbal do bebê (visão-audição-gustação-olfação-tônus-gestualidade-ritmo) necessita de relação de acolhimento, por meio da escuta, da gestualidade, do olhar, do toque, da vocalização direcionada ao bebê por seus pais e/ou cuidadores. Outrossim, expõe que, quando os cuidados parentais não forem suficientemente bons para garantir uma condição de constituição de sujeito, um terapeuta atento ao quantum da angústia do bebê poderá cumprir esse papel, por meio de sua contratransferência.
Devido a dificuldades na relação parental com o bebê, a amamentação pode tornar-se não satisfatória ou interditada precocemente. Segundo Aulagnier (1979), o desmame precoce pode acarretar ao bebê um sentimento de que algo lhe foi negado, e isso pode gerar sensação de perda, de vazio. A autora argumenta que, na fase oral, a sucção do peito e o alimento são imprescindíveis para o bebê se sentir seguro e saciado: uma interrupção abrupta nesse processo pode acarretar ao bebê uma necessidade constante de saciedade alimentar. Esse sentimento de perda pode ser revivido por toda a vida, seja por ocasião do nascimento de um irmão, separação dos pais, morte de alguém querido etc., mas também nas experiências de perdas decorrentes do processo de crescimento, como a adolescência.
Na adolescência, o jovem deverá renunciar ao seu lugar na família para conquistar um espaço na sociedade, porém não há facilidades nesse processo, e as dificuldades podem tornar-se paralisantes, confundir as percepções e constituir um vazio, fazendo com que o adolescente experimente uma angústia impermeável (Mayer, 2001).
Segundo Ranña (2017), adolescer é um processo cheio de emboscadas, em que a sensação de desamparo e a necessidade de criar os próprios rituais de passagem para a vida adulta são inerentes. O autor argumenta que, na adolescência, as transformações físicas e psicológicas diante de traumas podem fragmentar o ego. Disso decorrem problemas de saúde mental, tais como: depressão, pânico, anorexia, esquizofrenia, entre outros.
Em uma família em que o filho se torna depositário dos sonhos e anseios dos pais, há uma estrutura de funcionamento fundamentalmente narcisista. Em "Sobre o narcisismo: Uma introdução", Freud (1986 [1914]) inaugura a expressão "ideal de ego" para designar uma instância da personalidade que é resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais e seus substitutos com os ideais coletivos. Trata-se de uma representação de si mesmo que procura aderir às representações idealizadas por outrem, portanto, um modelo a que o sujeito procura conformar-se.
Como explicam Ranña, Rejani e Rua (2019), o adolescente pode viver uma crise diante dos desafios da transformação simbólica de criança para a vida adulta que, por vezes, expõe condições limítrofes, entre vida e morte, nos suicídios; entre corpo e psique, na psicossomática; entre real e imaginário, nas psicoses; entre acting-out e passagens ao ato, nas atuações auto e heterodestrutivas. Para os autores, cisões, dissociações, alienações e economia de gozo compõem esse cenário clínico complexo.
Diante de circunstâncias adversas, o adolescente, quando em condições favoráveis, pode fazer uma metabolização de sua constituição psíquica primária, denominado metábola, termo cunhado por Jean Laplanche (apud BLEICHMAR, 1987) para explicar um movimento de decomposição e recomposição dos significantes enigmáticos, sexuais, traumatizantes aos quais o indivíduo está exposto originalmente, a partir do cuidado sedutor materno.
Para Laplanche (1992), a sedução original é uma situação fundamental em que o adulto propõe à criança significantes não verbais e verbais, incluindo comportamentos impregnados de significados sexuais inconscientes, chamados de significantes enigmáticos. O autor explica que o próprio seio, órgão aparentemente natural da lactação, não poderia ser negligenciado em relação ao seu maior investimento sexual e inconsciente por parte da mulher. Logo, a sedução tem implicações diretas na constituição e no desenvolvimento do psiquismo; por um lado, temos o trauma e a simbolização, por outro, a metábola e seu caráter fundador do inconsciente. Isso configura um modo de funcionamento do psiquismo em que a sexualidade expressa a possibilidade de recuperação tanto de seus traços simbólicos (significativos) quanto de seus aspectos traumáticos (energéticos).
Ranña (2008) interpreta esse movimento como um processo de metabolização dos elementos heterogêneos, que advêm do campo do Outro, em que se coloca em curso a ressignificação de representações psíquicas que atualizam a constituição subjetiva do adolescente.
A viagem de José
José, um adolescente de 14 anos, em 45 dias faria uma viagem para a Europa sozinho, porém, segundo seu pai, ele estava apresentando alguns problemas de comunicação. Por uma questão de logística, nossos encontros ocorreram em domicílio.
Na avaliação, chamou-me a atenção que José era do tipo respirador oral crônico, isto é, ele permanecia o tempo todo com a boca entreaberta, tinha a face alongada, narinas pequenas, lábio superior estreito e o inferior volumoso e evertido (machucado, ressecado), dentição pequena e irregular e a profundidade do palato duro aumentada. Segundo Maria et al. (2012), essa característica de palato é preponderante em pessoas com tipo facial longo, que, frequentemente, têm comprometimento na respiração, na mastigação, na deglutição e na fala, uma vez que a dimensão vertical do palato aumentada dificulta a acomodação da língua, tanto em repouso quanto na execução das funções.
José falava pouco e baixo, de modo lento e com muita hesitação. Teve dificuldade para soletrar o próprio nome. Relatou-me que, recentemente, e de modo constante, esquecia nomes e palavras e estava com dificuldades de se comunicar na escola, nos estabelecimentos religiosos que frequentava e com os amigos mais próximos. Essas características pareciam ser a expressão de algo reprimido, recalcado, uma psicossomatização diante de um sofrimento.
Em "Sobre a psicopatologia da vida cotidiana", Freud (1989 [1901]) explica que os esquecimentos, lapsos, equívocos etc. são reflexos de conteúdos reprimidos, recalcados que permanecem no inconsciente. Os rearranjos da memória processam-se em função da disposição constitutiva no aparelho psíquico, operada pelo recalque, que impede o reconhecimento de desejos inconscientes de natureza sexual, adversos ao Eu moral e consciente. Em outro texto, Freud (1989 [1901]) discorre que os esquecimentos são marcados por um desprazer contínuo, que só pode ser liberado quando a psique encontra uma resolução para as questões recalcadas.
Quanto à alimentação, José tinha preferência por massas e doces. Uma empregada da casa informou-me que, desde pequeno, José ingeria uma grande quantidade de comida, sempre pastosa ou cremosa, nada sólido, porque ele não mastigava, a comida era empurrada para dentro de uma só vez. A participação da empregada convocou-me ao conceito de holding postulado por Winnicott (1983), como uma condição de amparo e sustentação que, no início da vida, é simbolizada pela relação entre mãe e lactante (ou seu substituto) vivendo juntos. Porém, para além dos cuidados físicos, holding também tem o significado de uma provisão ambiental total, que pode ser importante durante toda a vida, uma vez que a sustentação e o reconhecimento são elementos imprescindíveis do permanente processo de subjetivação.
Ainda durante a avaliação, perguntei à mãe de José se ele fora amamentado no peito. A mãe hesitou em dizer que talvez não tivesse amamentado; depois corrigindo-se, disse não lembrar quantas vezes; em seguida, disse ter certeza de que foram poucas vezes. Diante da resposta hesitante da mãe, José encolheu-se na cadeira e abaixou a cabeça, sem conseguir olhar para ela; seu corpo parecia o de uma criança assustada, surpresa diante daquela informação. No comportamento da mãe, notei exasperação e rispidez, ela parecia muito ocupada.
Sobre a sua viagem, José explicou-me que não se tratava de uma viagem, mas sim de uma mudança de país; ele iria estudar numa escola religiosa para adolescentes masculinos na Europa. Não soube dizer onde exatamente e teve dificuldades em explicar sobre o curso, o que me pareceu mais desinteresse pelo assunto do que esquecimento. Solicitei o preenchimento de uma ficha com seus dados pessoais. Ele pegou o lápis lentamente, ajeitou o papel à sua frente e pôs-se a escrever, porém não sabia o seu endereço nem a data do seu nascimento (só considerava o calendário judaico); não soube escrever o nome dos pais em português, só em hebraico. Perguntei se sua primeira língua era o português, ele disse que sim, mas acrescentou que desde pequeno falava hebraico em casa e na escola; além disso, estudava inglês com professor particular há muito tempo.
Durante o preenchimento da ficha, José apresentou alguns problemas de motricidade: limitações de movimentos e rigidez nas mãos, agitação das pernas e sincinesia dos membros superiores (movimentação da mão esquerda quando estava escrevendo com a direita); concomitantemente, ele mordiscava os lábios. Esses gestos incoordenados assemelhavam-se aos distúrbios psicomotores, que segundo Piret e Bézièrs (1992) são decorrentes de problemas psicocomportamentais em sua totalidade, resultantes de bloqueios que causam alterações físicas e psíquicas, tais como alteração do ritmo, da atenção, do comportamento, distúrbio da imagem e do esquema corporal, dificuldade de orientação espacial e temporal, lateralidade e maturação dos gestos.
Diante dessas observações, iniciei uma intervenção corporal: pedi a José que fechasse os olhos e percutisse o próprio corpo com as pontas dos dedos, tocando suavemente a pele do seu rosto. Fizemos exercícios de equilíbrio postural, de respiração profunda com soltura controlada, vibração de lábios e de língua e emissão de sons vocais em várias tonalidades. Essa abordagem teve como propósito induzir o reconhecimento das sensações, da percepção e a sensibilização dos próprios gestos, um trabalho de propriocepção.
Apesar da imprecisão e das dificuldades motoras José esforçou-se para realizar o trabalho proposto. Seu corpo enorme relaxou e tomou proporções menores, como se pudesse tornar-se pequeno. Ao final da sessão, estava emocionado e, com a voz embargada, disse que tudo era muito estranho, nunca tinha sentido essas coisas, mas não soube dizer que coisas eram essas. Tive a impressão de estar lidando com um corpo que nunca fora tocado por outra pessoa, talvez nem por ele mesmo, pois a dificuldade de descrição explicitava a falta de representação das experiências.
José não praticava nenhuma atividade física, nem jogos ou brincadeiras; sempre fora educado para ser responsável e levar seus estudos a sério. Seus pais determinaram que ele fosse o responsável pelas irmãs, tanto as mais velhas quanto as mais novas, por ser o único filho homem. José não manifestava vontade própria; parecia conformar-se com as ordens e as obrigações, era um cumpridor do seu dever, que nunca reclamava. Inibição, inércia e indiferença eram as características marcantes do seu comportamento.
Segundo Pierre Marty (apud KREISLER, 1999), essas são características da depressão essencial, em que a angústia, o desespero e a tristeza estão ausentes, marcando uma monotonia no comportamento do sujeito que acompanha o vazio depressivo e pode levar ao mecanismo da desorganização psicossomática. Talvez a desorganização psicomotora e o ato de comer compulsivamente apresentados por José estivessem relacionados a esse vazio depressivo, como uma atitude compensatória de regulação da sua angústia impermeável.
José precisava assinar documentos para sua viagem, porém não tinha uma assinatura. Para isso trabalhamos a coordenação motora na aquisição de gestos de ajustes finos. Ele apresentou dificuldade em segurar a caneta, não porque era pesada, mas por ter sido um presente do seu pai. Aquela caneta talvez representasse um conflito encoberto, um peso que estava além das suas possibilidades, o mesmo que o fez assumir, talvez precocemente, o compromisso de se mudar de país, sem se sentir preparado para tal realização.
A alteridade, nesse caso, possivelmente vinculada à busca da satisfação parental, fez aflorar uma experiência de vazio. José, com o pensamento longe, inerte, parecia ausente de si mesmo, sem contorno, um "corpo desabitado".
Com o passar das sessões, José conseguiu expressar dúvidas sobre a mudança de país, porém isso gerou um grande conflito com seus pais. Uma imposição dos pais calou-lhe a boca. José não conseguiu me dizer uma palavra; sua voz estava fraca e sua energia escoada. Ficamos em silêncio por um bom tempo. Sua respiração parecia suspensa; a minha também. Suas bochechas, que sempre eram rosadas, estavam empalidecidas. Coloquei uma folha de papel sulfite e um lápis à sua frente, e, sem olhar para mim, ele pegou o lápis e começou a rabiscar. Os traços no papel eram riscos fracos e soltos, não exprimiam qualquer imagem. Notei que ele não tinha disposição nem para mordiscar os lábios, tampouco para manter o lápis na vertical. Naquele momento, senti no meu próprio corpo a sensação de paralisia, de inércia que eu observava no comportamento dele. A violência da imposição não abriu caminho para o diálogo, mas criou espaço para a contratransferência.
Na sequência dos atendimentos, José apresentou alguns traços de desorganização, tais como sapatos trocados (embora fossem pretos, eram modelos diferentes), camisa com alguns botões que pareciam ter sido arrancados à força, a gola da camisa virada para cima. Tais características pareciam uma desorganização psicomotora, decorrente de um comportamento agitado e ansioso.
José apresentou-me a assinatura que tinha conseguido fazer para os documentos: um risco leve na horizontal, de dois centímetros, aproximadamente, e vários cortes na vertical. Perguntei se sua assinatura tinha algum significado, e a resposta foi uma exclamação com os ombros. Expliquei-lhe a importância da assinatura em um documento e perguntei se era capaz de reproduzi-la. Ele se dispôs a tentar, mas todas as tentativas saíram diferentes. Eis que ele falou: "minha assinatura é como eu sou, não consigo me repetir" (sic). Essa fala soou contraditória, uma vez que sua obediência era de tal ordem que ele era capaz de se apresentar igual todos os dias, fosse no modo de se vestir, nas relações e na rotina de casa, da escola etc., cumpridor das obrigações e dos sonhos parentais. Porém, havia nessa afirmação a matriz dos seus conflitos psíquicos; as angústias, que antes pareciam não existir, fizeram-se presentes desde o momento que ele pôde colocar em dúvida a vontade de mudar de país. Tive a impressão de que ele havia acessado algo com que nunca pôde lidar, talvez uma mudança interna, ainda não elaborada, mas que representava uma possibilidade de metabolizar o seu psiquismo primário.
José ligou-me para cancelar a última sessão e para me agradecer. Ele disse que minha ajuda fora muito importante, porém, não soube dizer em que eu pude ajudá-lo. Sua voz tinha um tom de determinação; algo tinha mudado, pareceu-me que estava tomando controle de suas designações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da limitação de tempo para o acompanhamento de José, a sensação de inércia foi preponderante, tanto para ele quanto para mim. As impossibilidades abriram espaço para reflexões e conjecturas sobre a condição de sua economia psíquica. Na minha avaliação, o adolescente estava vivendo conflitos sem possibilidade de expressá-los. Por trás dos seus sintomas de inibição e indiferença, havia uma angústia de separação, experimentada desde as suas relações mais arcaicas, que se fazia presente ainda com mais força na eminência da mudança de país e consequente afastamento da convivência familiar.
Ao construir esse relato, ocorreu-me que José estava vivendo uma metabolização da sua constituição psíquica primária, ou seja, um processo de elaboração dos significantes enigmáticos estava em curso, em que os elementos presentes no seu aparelho psíquico infante, encobertos pelo sofrimento, entraram em conflito com as demandas que se apresentavam naquele momento, de tal modo que comprometeram a sua comunicação e sua motricidade, provavelmente por configurar um difícil processo de ressignificação de suas representações psíquicas.
A despeito de qualquer possibilidade de continuidade do acompanhamento, o caso clínico apresentou várias mudanças psíquicas expressas no comportamento do adolescente. O vínculo estabelecido, bem como o manejo foram elementos de conexão com o conceito de metábola, e isso enriqueceu o eixo central de discussão e compreensão desse relato.
Em última análise, ao observar as dificuldades de comunicação apresentadas por José, faço a seguinte reflexão: se o inconsciente é um fenômeno de sentido, põe-se em questão sua relação com a linguagem, dado que o sentido nasce da linguagem verbal e não verbal, em princípio articulada pela mãe. Como a linguagem é carregada de significantes, a eminência de ressignificação pode provocar conflitos disruptivos.
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ano - Nº 6 - 2024publicação: 12-12-2024 |
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