Entre o familiar e o estranho, atravessamos nossa existência. Tememos o que nos parece distante e diferente; ao mesmo tempo, buscamos refúgio naquilo que, próximo, nos pode acolher familiarmente, mas que desconhecemos.
O corpo humano, talvez o que nos é mais íntimo, oferece-nos, desde o início, o espaço de nossas primeiras experiências. Nele somos concebidos, nele somos abrigados. A ele devemos nossa existência. Nele são gestados muitos de nossos enigmas, ao mesmo tempo que, frequentemente, a ele recorremos em busca de respostas. Interrogar os mistérios do corpo é tão antigo quanto a investigação do próprio Universo. Desde os tempos mais remotos, o ser humano dedica-se a decifrar tais mistérios, muitas vezes inspirado por imagens que brotam do seu corpo.
Nossas percepções do mundo e dos outros, as representações que criamos e as relações que construímos são mediadas por nossas sensações corporais. O corpo é, antes de mais nada, o vasto palco onde se desenrola a experiência do existir. Desde os tempos imemoriais, as imagens, sensações e representações oriundas dessa cena nos convocam a compreender, traduzir e representar a experiência do mundo, do outro e de nós mesmos.
Inspiradas por crenças e por mitos, marcadas por visões religiosas ou interpretações filosóficas, outras vezes ainda construídas a partir da simples curiosidade, da especulação ou da investigação científica, ao longo da história humana, uma infinidade de teorias e hipóteses sucederam-se e até hoje coexistem e se confrontam, buscando elucidar e descrever os enigmas de tais experiências.
Representações como as dos vapores, dos humores, das simpatias, dos temperamentos, outras até hoje consagradas, como as da histeria, da melancolia, da hipocondria e ainda, desde o Renascimento, as da anatomia, da fisiologia, da biologia molecular, entre muitas, são fruto de tais tentativas de descrever e entender diferentes expressões e contingências de tais experiências (Volich, 2022; Volich, 2024).
Em meio a todas elas, ao longo dos séculos e até os nossos dias, as diferentes compreensões das dinâmicas hipocondríacas sempre se ofereceram como uma fonte preciosa de imagens que tentavam e tentam dar forma e sentido aos enigmas de um corpo oscilante entre o prazer e o sofrimento, entre as forças da vida e as ameaças que podem destruí-la. Desde os antigos gregos, os ruídos, a cor, o calor, a umidade, a tensão do corpo sugeriam respostas para as sensações e vivências do sujeito diante de si mesmo e da realidade, cujo entendimento parecia impenetrável para o saber de sua época.
As descrições médicas e psicopatológicas modernas da hipocondria consideram-na como uma preocupação excessiva com a saúde, manifestada por crenças, rituais e comportamentos aparentemente irracionais relacionados ao corpo - o medo constante de adoecer, de contaminar-se, de desenvolver uma grave enfermidade (American Psychiatric Association, 2023).
Porém, muito mais do que isso, tanto as concepções históricas como aquelas reveladas pela psicanálise permitem perceber como as diferentes manifestações e concepções das dinâmicas hipocondríacas sempre apresentaram e continuam a apresentar intuições e construções importantes para a compreensão da doença orgânica e da prática médica, para a articulação entre elas e a constituição do saber psicopatológico, e também para a própria compreensão de sofrimentos do sujeito, nem sempre acessíveis às palavras e tampouco à própria manifestação corporal.
Uma outra dimensão da experiência corporal
Como sabemos, com um olhar distinto daquele da medicina, Freud dedicou-se à investigação dos fenômenos histéricos, revelando os mecanismos psíquicos que, partindo da realidade anatômica, estruturam, ao longo da existência humana, uma outra vivência do corpo - marcada pelo prazer e pelo desprazer, constituindo a dimensão erógena da experiência corporal (Freud; Breuer, 1980 [1895]). Com isso, ampliou-se a compreensão da natureza do sofrimento daqueles pacientes que, por muito tempo, permaneceram refratários aos tratamentos e à compreensão médica clássica.
Graças à psicanálise, assim como a histeria deixou de ser vista como mero capricho ou simulação, a hipocondria também deixou de ser reduzida a uma doença imaginária, fruto de uma fantasia excessiva ou de uma percepção equivocada do corpo. Em vez de ser interpretada como um erro de julgamento ou uma falha moral, a perspectiva freudiana convidou-nos a enxergar a hipocondria como um verdadeiro "paradigma subjetivo dos novos tempos" (Freud, 1986 [1923b]). Tempos esses que, desde o fim do século XIX, prometiam ao homem a superação de todos os seus males e a revelação dos mais íntimos segredos de seu corpo. Longe de limitar-se a um quadro da psicopatologia, a hipocondria, ao ser compreendida em sua articulação com os mecanismos inconscientes, revelou-se como uma experiência inerente e estruturante do ser humano, de sua existência e de suas relações com os outros.
Desde seus primeiros escritos, nos anos 1890, Freud faz menções recorrentes à hipocondria, sempre de forma breve, considerando-a uma manifestação inespecífica, sem uma associação patognômonica clara com qualquer quadro psicopatológico. Nos artigos dessa época, ele identifica manifestações hipocondríacas em casos que descreve como histéricos, neuróticos obsessivos, fóbicos, neurastênicos e na neurose de angústia, além de observar sua presença nas parafrenias.
Percebemos assim a natureza mimética e migratória da hipocondria. Ela não se constitui como uma entidade nosográfica autônoma, mas infiltra-se livremente em diversos quadros psicopatológicos, fazendo parte, inclusive, de muitas de nossas experiências cotidianas. Revisitando as revelações de Freud sobre essas dinâmicas, bem como seus desdobramentos na obra de alguns de seus sucessores, talvez possamos desvelar o papel crucial da experiência hipocondríaca nas dinâmicas da constituição da subjetividade e na organização da economia psicossomática.
Da nosografia à compreensão econômica da hipocondria
Na década de 1890, Freud dedicou-se ao esboço de um modelo etiológico e funcional da psicopatologia que integrasse suas descobertas sobre a histeria, incluindo nesse modelo também as neuroses obsessivas, as fobias e até mesmo a paranoia. Essa tarefa ocupou um lugar central em sua correspondência com Wilhelm Fliess (Masson, 1986).
Freud delineou então dois grandes grupos psicopatológicos. De um lado, as psiconeuroses, resultantes dos conflitos sexuais infantis, cujos sintomas surgem como formações de compromisso simbólicas, frutos da tensão entre o infantil, a pulsão e o recalque. Faziam parte desse grupo a histeria, as neuroses obsessivas, as fobias e, inclusive, as psicoses - que ele denominava "confusão alucinatória" (Freud, 1986 [1894]). Ao mesmo tempo, identificou também as neuroses atuais, caracterizadas por angústias difusas e por uma sintomatologia predominantemente funcional (como vertigens, taquicardia, cefaleias, entre outros). Esses sintomas não possuíam função simbólica e tampouco tinham relação com experiências infantis, sendo antes o resultado direto da estase libidinal, um acúmulo de excitações presentes que não encontram vias de descarga devido ao bloqueio das satisfações libidinais (Freud, 1986 [1894]).
No grupo das neuroses atuais, Freud incluía a neurastenia, a neurose de angústia e a hipocondria. Ele considerava que apenas as psiconeuroses eram suscetíveis ao tratamento psicanalítico, em função da possibilidade de, por meio da associação livre, tornar conscientes as representações e conflitos recalcados. Por outro lado, em sua visão, os sintomas das neuroses atuais, cuja função econômica primordial era a descarga de excitações e da angústia por vias corporais, seriam refratários à cura analítica.
Desde cedo, Freud demonstrou sua inclinação a classificar a hipocondria entre as neuroses atuais, em razão de sua estreita ligação com a neurose de angústia. Em sua carta a Fliess de 8 de fevereiro de 1893, ele destacava a hipocondria como uma das principais características dessa neurose. Em duas outras cartas, de 6/10/1893 e de 29/8/1894, ele relata um caso que evidenciava não apenas a presença de manifestações hipocondríacas no quadro de neuroses de angústia, mas também a comprovação de sua hipótese quanto ao papel da sexualidade, da masturbação e do coito interrompido na etiologia dessas neuroses (Masson, 1986). Chama a atenção, no caso relatado em 6/10/1893, que o temor hipocondríaco se manifestava em um contexto em que também estavam presentes questões da perda, do luto e do desinvestimento do objeto vividos pelo paciente.
No Rascunho B (8/2/1893) enviado a Fliess, Freud já esboça sua visão sobre a etiologia e as inter-relações entre a neurose de angústia e a neurastenia, apresentada em seu artigo de 1895. Ali ele já defende a especificidade nosográfica da neurose de angústia, diferenciando-a do quadro da neurastenia, que considerava amplo demais, e sublinhando a importância de distinguir suas manifestações das da histeria. Ao descrever o quadro clínico da neurose de angústia, Freud apresenta um impressionante repertório de manifestações corporais, entre as quais as queixas hipocondríacas ocupam um lugar de destaque (Freud, 1986 [1895]).
Em seu artigo, Freud aponta que a neurose de angústia podia se revelar por meio de uma irritabilidade generalizada, frequentemente expressa por hiperestesia auditiva associada à insônia; por uma expectativa angustiada; por parestesias e distúrbios em diversas funções corporais - como a respiração, a atividade cardíaca, a inervação vasomotora e a atividade glandular. Manifestava-se também por ataques de angústia acompanhados de perturbações na atividade cardíaca, como palpitações, seja por arritmia transitória ou taquicardia prolongada, que podia culminar em grave enfraquecimento do coração e, muitas vezes, não ser facilmente distinguível de uma afecção cardíaca orgânica; além da pseudoangina do peito. Ele descrevia também outros sintomas, como acessos noturnos de sudorese, tremores e calafrios, bulimia, diarreia, vertigens, congestões, parestesias, alternância entre diarreia e constipação, ataques noturnos de pânico, desmaios, sensação crônica de vertigem, uma permanente fraqueza e lassidão, entre vários outros.
Em meio a esse extenso leque de manifestações corporais, a hipocondria se revelava especialmente ligada à expectativa ansiosa, buscando uma representação que pudesse acolhê-la e, assim, paradoxalmente, aliviar a angústia que ela mesma fomentava:
[...] o sentimento de angústia pode estar ligado ao distúrbio de uma ou mais funções corporais - tais como a respiração, a atividade cardíaca, a inervação vasomotora, ou a atividade glandular. [...] o paciente seleciona ora um fator particular, ora outro. Queixa-se de "espasmos do coração", "dificuldade de respirar", "inundações de suor", "fome devoradora", e coisas semelhantes; e, em sua descrição, o sentimento de angústia frequentemente recua para o segundo plano ou é mencionado de modo bastante irreconhecível, como um "sentir-se mal", "não estar à vontade", e assim por diante. (Freud, 1986 [1895], sublinhado por mim).
A descrição minuciosa que Freud oferece dos sintomas da neurose de angústia deixa clara a distinção entre manifestações corporais reais - como palpitações, falta de ar, vertigens - e a categoria na qual ele situa a hipocondria: a expectativa angustiada. Nesta última, o sujeito não experimenta de fato uma manifestação orgânica, mas vive um pavor antecipatório de que ela possa ocorrer. Essa diferença entre o sintoma corporal real e o temor imaginário, hipocondríaco, revela também distinções na economia psíquica dessas duas formas de expressão. Freud apenas insinua essa diferenciação neste artigo, sugerindo, contudo, que tanto a hipocondria quanto o distúrbio corporal real desempenham a função de ligar ou descarregar a angústia e a excitação que afligem o sujeito.
Freud ressalta, por exemplo, que o ataque de angústia se define pelo sentimento angustiante sem nenhuma representação psíquica associada. Nessas condições, o indivíduo tende a recorrer à "interpretação mais à mão" - como o medo de morrer, de enlouquecer, ou a crença em algum distúrbio de uma função corporal, como a respiração ou o ritmo cardíaco - em uma tentativa de dar sentido à excitação interna, o que, em última instância, reduz a angústia. Esse verdadeiro imperativo de causalidade, ou seja, a busca de um motivo para a sensação vaga e desprazerosa que invade o sujeito desempenha um papel essencial na experiência hipocondríaca (Freud, 1986 [1895]).
As manifestações hipocondríacas guardam, assim, uma relação particularmente íntima com a angústia, conectadas aos níveis de excitação no organismo e aos recursos psíquicos disponíveis para escoá-la ou ligá-la a representações. As sensações e ideias hipocondríacas, nesse contexto, prestam-se a um outro tipo de atividade representativa, pré-psíquica, cuja função é justamente preencher uma lacuna econômica de representação no aparelho mental.
O corpo, a culpa e a neurose obsessiva
Enquanto estabelecia seu modelo nosológico, Freud também expandia sua prática clínica e aprofundava suas observações. Após a publicação de Neuropsicoses de defesa e do artigo sobre as neuroses de angústia, as referências a manifestações hipocondríacas nas neuroses obsessivas tornam-se mais frequentes em seus relatos. Ele passa a compreender essas manifestações como uma derivação do sentimento de culpa, tão característico dessas neuroses. Em 1º de janeiro de 1896, Freud escreve a Fliess relatando essa conclusão e, no mesmo ano, publica um caso que evidenciava essa dinâmica, o de uma mulher que sofria de preocupações obsessivas, que só cessavam quando ela adoecia, cedendo então lugar a temores hipocondríacos (Freud, 1/1/1896 apud Masson, 1986).
Nessa dinâmica, a forma hipocondríaca da especulação obsessiva não está diretamente vinculada à etiologia dos sintomas obsessivos, que Freud continua atribuindo, como em toda psiconeurose, às dimensões do sexual, do infantil e do recalque. A preocupação hipocondríaca estaria ali a serviço do mecanismo do deslocamento, típico da neurose obsessiva. As ideias hipocondríacas emergiriam como suporte da autorrecriminação e da culpa, deslocadas das representações recalcadas. Para Freud, a angústia hipocondríaca se revelava como uma das formas privilegiadas de disfarçar a autoacusação no campo consciente. A frequente utilização dessa formação de compromisso fez com que Freud insistisse na importância de distinguir as manifestações da hipocondria na neurastenia e na neurose de angústia daquelas observadas na neurose obsessiva.
Essas concepções consolidam-se em 1896, quando Freud completa seu primeiro modelo etiológico e nosográfico das neuropsicoses de defesa.
Muitos casos que, superficialmente examinados, parecem ser de hipocondria (neurastênica) comum pertencem a esse grupo de afetos obsessivos; o que se conhece como "neurastenia periódica" ou "melancolia periódica" parece, em particular, decompor-se com inesperada frequência em afetos obsessivos e ideias obsessivas - uma descoberta que não é insignificante do ponto de vista terapêutico. (Freud, 1986 [1896b])
Levando em conta a função econômica de ligação do afeto, Freud sugere que, ao contrário do que ocorre na neurose obsessiva, na neurose de angústia a angústia hipocondríaca não derivaria do recalque, mas do acúmulo de excitações causado pela impossibilidade presente de descarga da energia libidinal. Contudo, essa formulação está longe de ser inequívoca. Freud admite que a hipocondria pode surgir como um substituto secundário (ou subsequente) aos temores da neurose de angústia, que não se originam do recalque. Ele, no entanto, não esclarece completamente a natureza dessa substituição, tampouco como ela se diferenciaria do deslocamento observado na neurose obsessiva e nas fobias. Apesar disso, essas dinâmicas revelam o valor econômico da especulação e da dúvida na regulação desses conflitos (Freud, 1986 [1895]).
Assim, as formulações de Freud indicam que a neurose obsessiva e a hipocondria compartilham uma dinâmica comum significativa, centrada na dúvida e na incerteza. Ao observar que as manifestações hipocondríacas servem como mediação para conflitos relacionados à culpa e à autoacusação, cabe perguntar em que condições o corpo se torna mediador desses conflitos ou, ainda, suporte para a função da dúvida. Tais questões nos remetem a dimensões identificatórias envolvidas nesses processos, ligadas à formação do ego e sua relação com o mundo externo, além de evocar as instâncias superegoicas - o ego ideal e o ideal do ego - que Freud revelaria posteriormente.
A dúvida e a ambivalência
No caso do "Homem dos Ratos", Freud evidencia a dúvida - um dos mecanismos centrais da neurose obsessiva - como fruto da ambivalência, do conflito e da mescla entre amor e ódio que fundam e caracterizam essa forma de neurose (Freud, 1986 [1909]). Ele destaca que o ódio, suprimido no inconsciente pela força do amor, desempenha um papel crucial na etiologia tanto da histeria quanto da paranoia, embora reconheça a fragilidade das relações entre esses dois afetos. A intensidade desse conflito entre amor e ódio, afirma Freud, leva à paralisia da vontade e à incapacidade de tomar decisões. Essa paralisia, então, se espalha por toda a vida do paciente, afetando-o por meio do deslocamento.
A dúvida corresponde à percepção interna que tem o paciente de sua própria indecisão [...] É essa mesma dúvida que leva o paciente à incerteza com respeito a suas medidas protetoras. (Freud, 1986 [1909])
Sabemos que são intensos os esforços do neurótico obsessivo para evitar a certeza e manter a dúvida. Esse mecanismo favorece seu afastamento da realidade e seu isolamento do mundo, tornando-o incapaz de decidir, particularmente em questões de amor, o que o leva a procrastinar qualquer resolução. Freud observa que tais pacientes costumam preencher seus pensamentos com temas sobre os quais a humanidade inteira permanece incerta, questões que nossos conhecimentos e julgamentos não conseguem esclarecer por completo. Entre os principais tópicos estão a paternidade, a duração da vida, a vida após a morte e a memória - em que todos acreditamos sem termos garantias plenas de sua veracidade.
Esses elementos suscitam questões instigantes. Poderíamos considerar que a ruminação hipocondríaca, centrada no funcionamento dos órgãos e na integridade corporal, revela, na verdade, uma alienação profunda do sujeito em relação à sua própria representação corporal? E, mais ainda, estaria a insistente oferta de seu corpo ao outro, tão presente nas queixas hipocondríacas, a serviço de uma espécie de empreendimento oculto de autodestruição?
Dinâmicas hipocondríacas na paranoia
Freud considera que a dúvida, a culpa e a autorrecriminação também formam um eixo essencial para a compreensão da paranoia. No Rascunho H - Paranoia de 24/1/1895, enviado a Fliess, ele observa que a diferença dessas manifestações em cada um dos quadros clínicos reside no fato de que, enquanto na neurose obsessiva a autorrecriminação é experimentada como algo oriundo de dentro do sujeito, na paranoia, graças ao mecanismo da projeção, a origem dessa culpa é supostamente situada fora do próprio sujeito.
Antes, tratara-se de uma autocensura interna; agora, era uma recriminação vinda de fora. [...] o propósito da paranoia é rechaçar uma ideia que é incompatível com o ego, projetando seu conteúdo no mundo externo.
[...] (1) A transposição se efetua de maneira muito simples. Trata-se do abuso de um mecanismo psíquico muito comumente utilizado na vida normal: a transposição ou projeção. (Freud, 24/1/1895 apud Masson, 1986)
No funcionamento paranoico, as dinâmicas hipocondríacas também desempenham um papel. Sob o prisma da projeção, o pensamento hipocondríaco revela-se como uma incapacidade extrema do paranoico de reconhecer em si mesmo, e em particular em sua vida sexual, a fonte de seus problemas. Assim, ele atribui a origem de seus males sempre a uma causa exterior.
O hipocondríaco vai se debater, durante muito tempo, até encontrar a chave de suas sensações de estar gravemente enfermo. Não admitirá perante si mesmo que seus sintomas têm origem na sua vida sexual; mas causa-lhe a maior satisfação pensar que seu mal, como diz Moebius, não é endógeno, mas exógeno. Logo, ele está sendo envenenado. (Freud, 24/1/1895 apud Masson, 1986)
Nesse Rascunho, Freud tem uma intuição crucial sobre o elemento que desencadeia e articula as diversas manifestações defensivas: toda defesa surge da necessidade imperiosa de proteger o ego contra qualquer ideia que o ameace. Essa formulação já permite entrever, de forma embrionária, o conceito de defesa narcísica.
Em todos os casos a ideia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra ideia, intoleravelmente penosa, é rechaçada do ego. Assim, [os paranoicos] amam seus delírios como amam a si mesmos. É esse o segredo. (Freud, 24/1/1895 apud Masson, 1986)
Diante da ameaça narcísica representada por certas representações, a intensidade da defesa promove uma ruptura maior ou menor entre o ego e a realidade. Na histeria e na neurose obsessiva, essa relação com a realidade é preservada, enquanto na confusão alucinatória e na paranoia ocorre um desligamento parcial ou total do sujeito em relação ao mundo externo.
A vinculação entre projeção, intensidade da defesa narcísica e a proximidade entre paranoia e projeção, estabelecida por Freud nesse Rascunho, torna-se essencial para sua compreensão da hipocondria. A partir desse momento, a hipocondria é cada vez mais frequente e sistematicamente associada por Freud à paranoia.
Cerca de dez anos depois de suas primeiras formulações sobre a teoria da libido, Freud revisita essas posições, acrescentando a perspectiva da regressão. Em reuniões do primeiro círculo de psicanalistas de Viena (1976), realizadas em 21 de novembro de 1906 e 6 de fevereiro de 1907, ele destaca o papel da regressão da libido na hipocondria e na paranoia, sugerindo ainda que a hipocondria seria o equivalente somático da paranoia, com o retorno da libido ao ego desprezado. Em uma carta a Jung, datada de 14 de abril de 1907, Freud reafirma que paranoia e a hipocondria possuem uma dimensão indissociável (Freud; Jung, 1975, p. 88).
Observa-se, então, que, da mesma forma que o deslocamento é o elemento articulador entre neurose obsessiva e hipocondria, a projeção é o que articula hipocondria e paranoia. Contudo, ambas as dinâmicas se organizam em torno de uma mesma questão tópica: em ambos os casos, há elementos fora de lugar, por não encontrarem espaço próprio para permanecer. Em ambas as situações, são as representações corporais que se prestam a esses movimentos topográficos, movimentos que só se tornam possíveis pela superação da realidade corporal, constituída pela anatomia.
Deslocamento e projeção não são dinâmicas inatas. Elas se constroem a partir dos cuidados e da mediação proporcionados pelos primeiros objetos na relação com a realidade do outro e do mundo. O outro humano, que favorece a estruturação do corpo erógeno e permite a metaforização das partes corporais, tornando-as plásticas, móveis e intercambiáveis na fantasia, é também investido de um saber que, no extremo, pode vir a se constituir como verdadeiro aglutinador da alienação paranoica-hipocondríaca do corpo. Assim, ao apontar a indissociabilidade entre essas duas experiências, Freud sugere essa possibilidade de o sujeito se alienar no saber do outro.
O hipocondríaco vive, então, uma experiência paradoxal e paroxística: deposita no outro seu corpo e o saber sobre ele, enquanto, simultaneamente, trava uma verdadeira batalha para desautorizá-lo. São tentativas extremas de garantir sua sobrevivência. O relato de Schreber (1975 [1903]) é um exemplo dessas dinâmicas.
O corpo e os delírios de Schreber
A análise das memórias de Schreber forneceu a Freud uma confirmação decisiva de suas hipóteses. Já durante a primeira internação, entre 1884 e 1885, o Dr. Flechsig diagnosticou os distúrbios de Schreber como uma "crise de grave hipocondria". Oito anos depois, no final de outubro de 1893, ele apresenta um segundo episódio da doença. No relatório de internação de 1899, surge, pela primeira vez, a associação entre suas preocupações hipocondríacas e as ideias persecutórias.
[...] ideias de perseguição já surgiam no quadro clínico, baseadas em ilusões sensórias que, contudo, só pareciam aparecer esporadicamente, no início, enquanto, ao mesmo tempo, um alto grau de hiperestesia era observável [...] Acreditava estar morto e em decomposição, que sofria de peste; asseverava que seu corpo estava sendo manejado da maneira mais revoltante, e, como ele próprio declara até hoje, passou pelos piores horrores que alguém possa imaginar, e tudo em nome de um intuito sagrado. O paciente estava tão preocupado com estas experiências patológicas, que era inacessível a qualquer outra impressão e sentava-se perfeitamente rígido e imóvel durante horas (estupor alucinatório). [...] Suas ideias delirantes assumiram gradativamente caráter místico e religioso [...] no final, chegou mesmo a acreditar que estava vivendo em outro mundo. (Freud, 1986 [1911])
Na análise do caso, Freud evidencia como a complexa relação de "submissão reverente e insubordinação amotinada" que Schreber estabelece com Deus deriva diretamente da atitude infantil em relação ao pai. Com isso, Freud aponta que o núcleo da dinâmica psicótica de Schreber pode ser encontrado no complexo paterno. A ambivalência, um elemento essencial da neurose obsessiva, reaparece nessas circunstâncias com intensidade ainda maior, especialmente devido à figura paterna, que, em Schreber, adquire uma dimensão quase divina, exacerbada ainda pelo rigor e a autoridade que o pai personificava em sua vida profissional como médico (Freud, 1986 [1911]).
Ao longo de seu relato, Schreber trava um embate feroz, envolvendo Deus, o Dr. Flechsig, seu pai e as "vozes" que escuta, compondo um universo de personagens que parecem disputar o controle de sua existência. Nesse cenário, o corpo de Schreber se torna um campo de batalha: penetrado por raios, deformado, transformado em mulher, destinado a gerar uma nova espécie de seres. Simultaneamente, seu delírio se estrutura como um verdadeiro processo judicial, em que acusação e defesa se confrontam pela posse e integridade de seu corpo, como se este fosse o objeto central de um litígio cósmico.
Freud sugere que, no núcleo dessas dinâmicas, encontram-se a culpa e a ameaça de castração. As ruminações hipocondríacas de Schreber e seus delírios não seriam mais que as manifestações extremas desses conflitos profundos, em que o corpo se torna o símbolo vivo de sua batalha psíquica. É o corpo, afinal, que carrega o peso de sua culpa e que se submete, de maneira concreta, às transformações que ilustram seus fantasmas mais obscuros.
Ao longo da análise do caso, evidencia-se gradualmente para Freud a função das dinâmicas hipocondríacas como uma condição essencial do funcionamento da paranoia:
[...] eu só considerarei uma teoria da paranoia como digna de confiança quando ela conseguir inserir em seu conjunto os sintomas hipocondríacos quase que regularmente concomitantes. Parece-me que, com relação à paranoia, a hipocondria situa-se na mesma posição que a neurose de angústia com relação à histeria. (Freud, 1986 [1911])
Dinâmicas hipocondríacas e o narcisismo
Intuído nos textos dos anos 1890 e permeando os "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1986 [1905]), o conceito de narcisismo assume, na década de 1910, um papel central na obra de Freud. Ele emerge com força no artigo sobre Leonardo da Vinci (Freud, 1986 [1910]) e ganha uma articulação mais profunda com a psicopatologia no estudo de Schreber (Freud, 1986 [1911]). Nesse trabalho, o narcisismo aparece como a dinâmica mediadora entre a homossexualidade e a paranoia, além de se constituir como a condição econômica fundamental das esquizofrenias.
[a psicanálise] já nos permite compreender o papel desempenhado por um desejo homossexual no desenvolvimento da paranoia.
[...] na paranoia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimento deste. Faz-se assim um retorno ao estádio do narcisismo, no qual o único objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego. Com base nesta evidência clínica, podemos supor que os paranoicos trouxeram consigo uma fixação no estádio do narcisismo, e podemos asseverar que a extensão do retrocesso do homossexualismo sublimado para o narcisismo constitui medida da quantidade de regressão característica da paranoia. (Freud, 1986 [1911])
Em um artigo específico, Freud sistematiza suas concepções sobre o narcisismo, retomando, inclusive, suas hipóteses sobre a dimensão narcísica da hipocondria, já apresentadas a Fliess no Rascunho H. Nesse novo trabalho, a hipocondria se destaca, ao lado da parafrenia, da doença orgânica e da vida erótica dos sexos, como um dos modelos por meio dos quais Freud explora o fenômeno do narcisismo (Freud, 1986 [1914]).
Na doença orgânica, o homem doente retira seus investimentos libidinais dos objetos e os reinveste no próprio ego. De maneira análoga, no sono ocorre um movimento semelhante, em que há uma retirada narcísica dos investimentos de libido no mundo externo, com o objetivo de promover e preservar a necessidade de dormir.
Embora na hipocondria não existam lesões corporais reais, ela também promove, assim como a doença orgânica, um retraimento narcísico. Freud, no entanto, adverte sobre a dificuldade de discriminar entre essas duas condições apenas com base em sinais orgânicos observáveis. Ele sublinha nesse artigo que, efetivamente, o hipocondríaco pode ter razão em suas queixas. Apesar da ausência de lesões físicas concretas, a hipocondria revela uma alteração corporal de outra ordem, oferecendo um saber distinto sobre o corpo, que transcende as evidências médicas objetivas.
A hipocondria, da mesma forma que a doença orgânica, manifesta-se em sensações corpóreas aflitivas e penosas, tendo sobre a distribuição da libido o mesmo efeito que a doença orgânica. O hipocondríaco retira tanto o interesse quanto a libido - a segunda de forma especialmente acentuada - dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção. Torna-se agora evidente uma diferença entre a hipocondria e a doença orgânica: na segunda, as sensações aflitivas baseiam-se em mudanças demonstráveis [orgânicas]; na primeira, isso não ocorre. Mas estaria inteiramente de acordo com nossa concepção geral dos processos de neurose, se resolvêssemos dizer que a hipocondria deve estar certa: deve-se supor que as modificações orgânicas também estão presentes nela. (Freud, 1986 [1914], sublinhado por mim)
Essa passagem evidencia uma vez mais a noção de corpo erógeno, enfatizada por Freud, desde 1893, como uma experiência do corpo que não se limita à representação anatômica. Naquela época, ele afirmava que as "lesões" às quais se tentava vincular a etiologia da histeria deveriam ser entendidas como "independentes da anatomia do sistema nervoso" (Freud, 1986 [1893]). As dinâmicas da histeria, assim, revelariam a possibilidade de um sintoma corporal que "ignora" as leis da anatomia.
Constatamos, assim, a hipocondria identificada como um verdadeiro operador da teoria psicanalítica. Por meio da observação de Freud, mais do que mera categoria psicopatológica, as dinâmicas hipocondríacas são reconhecidas como possuindo um estatuto semelhante ao dos sonhos, do recalque e da perversão, deixando de serem vistas simplesmente como um desvio ou uma perturbação para se situar plenamente ao longo da continuidade entre o normal e o patológico. A hipocondria transcende a condição de uma doença isolada; torna-se uma parte integral dos processos de expressão e representação do indivíduo. Embora em 1914 Freud ainda a considerasse uma manifestação da neurose atual, ele indica que suas manifestações podem emergir em todas as formas de neurose.
Mas o que seriam essas mudanças? [...] as sensações corpóreas de natureza desagradável, comparáveis às da hipocondria, ocorrem também nas outras neuroses. [...] me inclino a classificar a hipocondria, juntamente com a neurastenia e a neurose de angústia, como uma terceira neurose "real" [atual]. Provavelmente não seria ir muito longe supor que, no caso das outras neuroses, uma pequena dose de hipocondria também se forma regularmente ao mesmo tempo. Temos o melhor exemplo disso, creio eu, na neurose de angústia com sua superestrutura de histeria. (Freud, 1986 [1914])
O hipocondríaco tem razão ao se queixar das alterações em seus órgãos. Se a medicina não identifica anomalias, isso se deve à falta de consideração pelas dimensões que envolvem a estranheza e a inquietação do sujeito em relação ao funcionamento de seu corpo, que vão além do orgânico, abrangendo as dimensões erógena e relacional. Nesse contexto, Freud traz à tona o exemplo dos órgãos genitais, cujos estados de excitação alteram a sensibilidade e, consequentemente, a percepção que o indivíduo tem deles. Ele observa que processos análogos podem ocorrer com qualquer parte do corpo, revelando a complexidade da relação entre o sujeito e sua corporeidade (Freud, 1986 [1914]).
Freud reconhece tanto os limites quanto as possibilidades da "indagação puramente psicológica" em sua busca por penetrar as fronteiras da pesquisa fisiológica. Contudo, as novas formulações que emergem a partir de sua reflexão oferecem uma nova perspectiva, permitindo que ele situe as condições do investimento libidinal como um parâmetro inovador para a compreensão da psicopatologia. Assim, introduz na nosografia psicanalítica a distinção entre neuroses narcísicas e neuroses de transferência, em que a hipocondria se destaca como um operador crucial dessas novas conceituações (Freud, 1986 [1914]).
Nesse artigo sobre o narcisismo, Freud reitera um elemento fundamental de sua teoria, enunciado desde os anos 1890 (Freud, 1986 [1895]), ao afirmar que a função primordial do aparelho psíquico é conectar e dominar as excitações, que, de outra forma, seriam sentidas como desprazerosas ou teriam efeitos patogênicos. Portanto, o retraimento narcísico serve a essa função econômica de ligação.
[a elaboração das excitações] na mente auxilia de forma marcante um escoamento das excitações que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga é, no momento, indesejável. [...] é indiferente que esse processo interno de elaboração seja efetuado em objetos reais ou imaginários. (Freud, 1986 [1914])
Assim, compreendemos que as sensações e fantasias hipocondríacas podem, de certa forma, preencher essa necessidade imperativa de ligação da excitação. As formas narcísicas ou transferenciais da hipocondria, assim como suas manifestações em diversos quadros psicopatológicos, podem ser entendidas como tentativas de ligação da excitação e da angústia, operando, em um nível mais primitivo de funcionamento, a partir de uma experiência corporal que pode ou não estar associada a representações psíquicas.
Hipocondria e funcionamento onírico
Assim, paulatinamente, Freud foi evidenciando a função dos fenômenos hipocondríacos em sua relação com a sexualidade, com o deslocamento, com a projeção, com a regressão e com o narcisismo. Por esse caminho, incorpora todas essas dimensões em sua análise e, em 1917, elabora uma leitura metapsicológica do fenômeno onírico, destacando a dinâmica hipocondríaca como parte do trabalho representativo do sonho que permite compreender "a capacidade diagnóstica dos sonhos".
Um sonho é [...], entre outras coisas, uma projeção: uma externalização de um processo interno. Podemos recordar que já encontramos a projeção em outra parte, entre os meios adotados para defesa.
[...] nos sonhos, a doença física incipiente é com frequência detectada mais cedo e mais claramente do que na vida de vigília, e todas as sensações costumeiras do corpo assumem proporções gigantescas. Essa amplificação é por natureza hipocondríaca; depende da retirada de todas as catexias psíquicas do mundo externo para o ego, tornando possível o reconhecimento precoce das modificações corporais que, na vida de vigília, permaneceriam inobservadas ainda por algum tempo. (Freud, 1986 [1917], sublinhado por mim)
Essas posições são reiteradas por Freud em sua XXVI Conferência, na qual aborda a teoria da libido e o narcisismo (Freud, 1986 [1916-1917]). Por meio delas, constatamos que as dinâmicas da hipocondria se apresentam como um modelo eficaz para a observação e ressignificação dos fenômenos psicopatológicos. De uma entidade nosográfica indefinida, difusa e onipresente, a hipocondria, lentamente, foi se revelando como uma experiência articuladora da apreensão e representação do corpo.
É curioso notar, nesse sentido, que, por meio dos sucessivos deslocamentos que efetua na análise da hipocondria, ao desvendar o paradigma hipocondríaco do sonho, Freud resgata uma intuição milenar a respeito desses fenômenos, já percebida no século V antes de nossa era por Hipócrates (Volich, 2022).
Ampliando as revelações freudianas
Em um artigo de 1972, Pierre Fédida retoma as relações entre a hipocondria e o sonho esboçadas por Freud, propondo a hipótese de que a hipocondria seria uma modalidade de reação à perda narcísica, análoga ao luto, manifestando-se por meio da representação corporal (Fédida, 1972). Em minha opinião, essa construção, que se insere em plena continuidade do percurso freudiano sobre a hipocondria, oferece vastas possibilidades para compreendermos o cumprimento da "profecia" freudiana, anteriormente anunciada, de que a hipocondria se configuraria como um verdadeiro "paradigma moderno para a expressão do sofrimento humano" (Freud, 1986 [1923b]).
Inspiradas pelas concepções de Pierre Fédida, Maria Helena Fernandes (1999) e Ivanise Fontes (1999) ressaltam a importância de considerar, a partir da própria teoria freudiana, a constante referência à experiência corporal, à percepção e à sensorialidade como substrato do desenvolvimento psíquico. Elas enfatizam as repercussões transferenciais e contratransferenciais que se impõem ao processo psicanalítico pelos "eventos somáticos", como bem observa Fernandes (Fontes, 1999; Fernandes, 1999).
Segundo Ivanise Fontes, não há despertar do sujeito enquanto não tiver lugar uma significância das percepções e das sensações. Sintonizada com a profecia freudiana, ela afirma que "doentes deste fim de século, apresentando as 'novas doenças da alma' (Kristeva), mostram uma dificuldade crescente de ligar o corpo à palavra. Esses pacientes, que nos impõem impasses técnicos, exigem do analista uma intervenção em que as palavras encontrem maior capacidade sensorial" (Fontes, 1999, p. 69). Por sua vez, Maria Helena Fernandes aponta que "o contato com os pacientes somáticos rapidamente ensina que a expressão verbal e metafórica frequentemente utiliza o corpo como imagem, solicitando do analista um olhar e uma escuta capazes de figurar essa imagem e descrevê-la em palavras" (Fernandes, 1999, p. 51).
Fontes destaca a importância de resgatar a dimensão corporal da transferência para a compreensão e elaboração de tais manifestações. "Quando a linguagem ignora de quem ela é herdeira, sua origem sensorial, surgem discursos vazios. Esse elo que falta é que adoece o sujeito. É então necessário o trabalho de restituir a vitalidade da linguagem. Dessa forma, a via analítica tem mão dupla: nomear as sensações e, por outro lado, dar corpo à linguagem" (Fontes, 1999, p. 69). O paradoxo revelado por essas autoras é, à primeira vista, curioso. De um lado, o corpo se presta de forma cada vez mais impressionante à manifestação do sofrimento; de outro, há uma alienação significativa da experiência sensorial e do conhecimento do próprio corpo, que, muitas vezes, chega a ser completamente ignorado no processo psicanalítico.
Sabemos que os consultórios médicos e os hospitais estão abarrotados de pacientes cujas queixas não apresentam diagnóstico ou substrato orgânico identificável. Esses pacientes, que representam cerca de 40% dos atendimentos em alguns serviços de clínica médica, muitas vezes se tornam fonte de profunda irritação para os médicos. Por sua vez, os pacientes relatam uma imensa frustração, além de angústia e sentimentos depressivos, após serem atendidos por aqueles médicos. Geralmente, muitos deles reiniciam seu périplo em outros serviços e com outros profissionais, na busca por uma solução para "seu caso".
Como afirma Fernandes (1999), "pode-se dizer que a hipocondria interessa na medida em que pode ser compreendida como o 'exagero' patológico de uma escuta do corpo", sugerindo também que a hipocondria se constitui como um verdadeiro operador para a compreensão dos mecanismos em jogo na percepção dos sinais somáticos. Considerar o fenômeno hipocondríaco sob a ótica da representação pode permitir um olhar renovado sobre a demanda dos pacientes, mesmo aqueles que apresentam uma doença "bem configurada", como dizem alguns profissionais. Reconhecer que a dimensão hipocondríaca de toda queixa é, sobretudo, uma tentativa - ainda que primitiva - de comunicação e representação é uma possibilidade de resgate, pela medicina, da essência do sofrimento humano.
É importante lembrar que a hipocondria se configura como uma experiência que implica e convoca o outro. Piera Aulagnier ressalta a função essencial do corpo como mediador do jogo relacional entre duas psiques e entre a psique e o mundo (Aulagnier, 1985). É sob o paradigma da relação entre dois corpos, o da mãe e o do bebê, que se estrutura o desenvolvimento da criança e seu funcionamento psíquico. O hipocondríaco tem razão ao tentar utilizar o recurso que garantiu sua sobrevivência e seu desenvolvimento quando todos os outros recursos se mostram ineficazes para protegê-lo de sua existência ameaçada ou da dor que não encontra outro meio de expressão.
Considerando todas as dimensões que apresentamos em nossa elaboração, compreendemos que as sensações hipocondríacas são uma tentativa de lidar com a desorganização da economia psicossomática, que oscila entre a busca de ligação através do corpo e tentativas frágeis de organização por meio de representações desse corpo. Nesse sentido, podemos considerar que a hipocondria pode se constituir como um recurso de ligação antitraumático não conversivo.
Mais especificamente, podemos também reconhecer seu papel como uma defesa contra o desinvestimento objetal. O retraimento narcísico que nela observamos corresponderia, então, a uma reação diante da ameaça ou do abandono real do outro. Essa experiência assemelha-se à vivência do bebê frente à ameaça de abandono pela mãe, quando lhe restaria apenas seu próprio corpo, que deve ser "vigiado" e investido de modo a impedir que também ele o abandone. Nesse sentido, podemos considerar que o órgão hipocondríaco corresponde, de certa forma, a uma falha ou a uma perversão de um recurso transicional, no sentido de Winnicott (1982 [1951]).
Reconhecer a profundidade da experiência hipocondríaca amplia os recursos da clínica contemporânea. Considerá-la sob o prisma da representação nos permite sintonizar de outra forma com a demanda dos pacientes. Como revela a análise do caso de Jean, que apresento em outra publicação (Volich, 2024), nas manifestações hipocondríacas e nas doenças orgânicas, o paciente vive solitário seu drama, com dificuldade de incluir o outro em suas cenas internas empobrecidas. Seu corpo torna-se o único personagem em monólogos que buscam revelar suas entranhas.
Ao perceber que toda queixa hipocondríaca é, sobretudo, uma tentativa de comunicação e representação, mesmo que primitiva, o terapeuta, psicanalista, médico ou outro profissional da saúde resgata a possibilidade de compreender a essência do sofrimento humano e a pluralidade de formas de manifestá-lo, de demandar seu cuidado. Muitas vezes, é pelas sensações corporais vividas na transferência e na contratransferência que o paciente e o terapeuta conseguem sintonizar com o que as palavras não logram representar.
Curiosa, estranha e, ao mesmo tempo, familiar maneira de dialogar. Demandar com o corpo, que apenas reconhece a resposta de outro corpo - seja o próprio, seja o do outro. A clínica nos desafia a aceitar e sustentar esse diálogo silencioso, em que o corpo busca se transformar em linguagem sem conseguir, e o sofrimento se expressa apenas por sensações.
Cabe a nós, analistas, terapeutas e profissionais da saúde, acolher essa comunicação que, justamente por ainda ser fragmentada e muitas vezes sem possibilidade de articulação por palavras, precisa ser escutada, nomeada e, a partir daí, elaborada. Ao dar corpo à palavra e palavra ao corpo, podemos sustentar a esperança de resgatar o sujeito de sua solidão e, por meio da relação, oferecer a ele a oportunidade de desenvolver recursos autônomos para se reorganizar e se desenvolver.
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ano - Nº 6 - 2024publicação: 12-12-2024 |
[1] Apresento neste artigo as principais revelações freudianas sobre as dinâmicas hipocondríacas e alguns de seus desdobramentos clínicos. Aprofundo essa perspectiva com mais detalhes e amplio a análise de tais desdobramentos em meu livro Impasses da alma, desafios do corpo: Figuras da hipocondria (São Paulo: Blucher, 2024).
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