MONOGRAFIA

Trabalho do luto no envelhecimento, Nas demências e na morte: a perspectiva de quem permanece


Mourning process in aging, dementia and death: The perspective of those who remain
Cristina Kiyomi Goto Oyadomari

RESUMO
O presente ensaio acadêmico aborda aspectos de envelhecimento, luto e demência, explorando questões psicológicas e psicanalíticas relacionadas a esses temas. Discute-se a concepção de envelhecimento como um processo contínuo de transformação ao longo da vida, influenciado pelo ambiente, o contexto sociocultural e as relações interpessoais. Menciona-se a importância da autoimagem na terceira idade, que continua a depender da percepção dos outros, afetando a integridade narcísica. Compartilha-se uma experiência pessoal sobre o trabalho de luto após a perda de um ente querido, descrevendo a intensa tristeza e a posterior retomada gradual da capacidade de expressão e simbolização das memórias através da escrita, destacando-se o papel dos objetos como relíquias, símbolos das relações significativas, que ajudam a preservar a memória do ente querido. Por fim, o texto explora as semelhanças entre o trabalho do luto e o brincar na infância, enfatizando a importância de reconhecer a alteridade do objeto perdido para evitar a melancolia e destacando a necessidade de simbolização e identificação com objetos simbólicos para o processo de luto.

Palavras-chave: Trabalho do luto, Trabalho do brincar, Envelhecimento, Simbolização, Morte.

ABSTRACT
The present academic essay addresses aspects of aging, mourning, and dementia, exploring psychological and psychoanalytic issues related to these themes. It discusses the concept of aging as a continuous process of transformation throughout life, influenced by the environment, sociocultural context, and interpersonal relationships. It mentions the importance of self-image in old age, which continues to depend on the perception of others, affecting narcissistic integrity. It shares a personal experience of the grief process after the loss of a loved one, describing the intense sadness and subsequent gradual recovery of the capacity for expression and symbolization of memories through writing. It underscores the role of objects as relics, symbols of significant relationships, helping to preserve the memory of the loved one. Finally, the text explores the similarities between the grieving process and childhood play, emphasizing the importance of recognizing the otherness of the lost object to avoid melancholy and highlighting the need for symbolization and identification with symbolic objects in the mourning process.

Keywords: Mourning work, Playing work, Aging, Symbolization, Death.


 

Introdução

Ao longo do curso de especialização em Psicossomática Psicanalítica, eu tinha uma certeza, quase absoluta, de que meu trabalho de encerramento de curso versaria sobre a função do brincar na constituição subjetiva e no desenvolvimento emocional, aproximando os conceitos de criatividade, o brincar e o ato criativo nas perspectivas teórico-clínicas de Freud e Winnicott.

Tal "certeza" vinha da minha prática clínica como psicóloga e analista de crianças e adolescentes e da urgente reflexão sobre a lógica da produtividade (e seus excessos) em nossa contemporaneidade, que invade e viola o tempo da infância. Sobretudo a primeira infância deveria ser o tempo, como diria Winnicott, em que o bebê ou a criança deveria entregar-se às divagações (Winnicott, 1982).

É muito triste assistir meninos e meninas trazendo um sentimento de tédio perante a vida: "Não tenho nada para fazer". Um tédio não criativo, e, para meu assombro, alguns, ainda na primeira infância,[1] sem saber brincar.

Entretanto, no dia 17 de setembro de 2023, perdi meu pai, de 83 anos, e, desde então, a escrita do meu trabalho de encerramento de curso paralisou-se. Senti uma necessidade enorme de expressar a dor dessa perda, que, embora tenha iniciado há aproximadamente oito anos, não foi, por isso, menos intensa.

A senescência é condição inevitável do viver, mas a senilidade é condição adquirida ao longo dos anos, podendo acarretar alterações psicofisiopatológicas que dificultam o viver no outono da existência.

Em 2021, a proximidade da perda do meu pai já se evidenciava, e eu, conscientemente, me punha a escrever sobre o que já doía. Inconscientemente, já iniciava a elaboração do meu luto. Porque, ao contrário das mortes repentinas e trágicas, a demência e a própria velhice anunciam, anos antes, o fatídico: o ser-para-morte da condição humana.

Perdas reais e simbólicas, perdas do amor e do objeto amado, perder-se de si no envelhecimento e no luto. Reencontrar o que foi perdido na evocação das memórias e possibilitar uma nova simbolização para a continuidade do vir-a-ser. Ciclos tanto vitais como mantenedores do conatus,[2] aqui compreendido como unidade psicossomática.

Este trabalho está constituído sobre perdas e ganhos. Porque é ganhando e perdendo, através de sucessivos trabalhos psíquicos, como o brincar e o luto, que o ser humano se constitui, se desconstitui e se reconstitui em sua subjetividade e em seu narcisismo. Eros e Tanatos em diversas e sucessivas combinações.

Como bem nos lembra Winnicott, a integração psicossomática, uma vez alcançada, não é definitiva, podendo estar suscetível às vicissitudes dos bons ou maus encontros[3] com os objetos e o fatídico do viver.

Os lutos ao longo da vida têm função constitutiva do aparelho psíquico: desde o nascimento, passando às falhas ativas da mãe suficientemente boa para a criação do espaço potencial entre ela e o bebê, o desmame, a castração como exigência para a entrada na cultura (complexo de Édipo e assassinato do pai simbólico do mito da horda primeva). A constituição subjetiva do ser humano sempre se depara com a falta e a perda, exigindo o redirecionamento da libido para novos objetos e a ligação com eles. Eros e Tanatos, intrincados, trabalham juntos no desenvolvimento da unidade psicossomática.

 

O trabalho do brincar

"Para quem quer se soltar

Invento o cais

Invento mais que a solidão me dá

Invento Lua nova a clarear

Invento o amor

E sei a dor de me lançar

Eu queria ser feliz

Invento o mar

Invento em mim o sonhador"

(Nascimento e Bastos, "Cais", 1972)

 

A primeira infância é o campo privilegiado para o estudo da constituição subjetiva, em especial para o processo de simbolização, responsável pela estruturação do psiquismo e dos processos de mentalização (pensamento). Um dos fenômenos participantes dessa complexa constituição é, sem dúvida, o brincar.

Na clínica psicanalítica com bebês e crianças, o brincar é a principal ferramenta para o processo terapêutico: como forma de comunicação, acesso às fantasias, aos desejos e também para a vivência e compreensão das frustrações e angústias.

Pelas características do brincar, podemos avaliar os riscos na constituição subjetiva que podem levar à estruturação futura, nos casos extremos, e se não houver tratamento adequado, de autismos ou mesmo de psicoses.

Léon Kreisler adverte para o potencial de reversibilidade dos transtornos de desenvolvimento das crianças, sendo que o correto é referir-se e distinguir os modos de funcionamento mental, e não de estruturas, e, caso se opte por utilizar essa nomenclatura, "nunca perder de vista que há poucas estruturas precoces dotadas de correspondências análogas na idade adulta na continuidade do desenvolvimento" (Kreisler, 1999, p. 117).

Protocolos de observação como o AP3 (Avaliação Psicanalítica da criança de 3 anos), o IRDI (Indicadores de Risco do Desenvolvimento Infantil), o Jogo da espátula e o Jogo do rabisco de Winnicott são exemplos de como é possível realizar avaliações e intervenções objetivas dos processos de desenvolvimento infantil e seus transtornos (Goto-Oyadomari, 2022).

Embora não tenha atendido crianças diretamente, no texto "Além do princípio do prazer" (1920), Freud abordou o brincar e sua semelhança com os sonhos traumáticos dos soldados que voltaram dos fronts da Primeira Guerra Mundial. Os sonhos repetitivos que os faziam reviver os traumas contrariavam a crença da época, de que todo sonho é a realização de um desejo.

Observando seu neto Ernest, então com 18 meses de idade, brincar com um carretel preso a um cordão, jogando-o para longe do alcance de sua visão e falando "o-o-o-o" muitas vezes, e, depois de algum semanas, como numa evolução do jogo, puxar o cordão até que o carretel voltasse, dizendo "da!", Freud não teve dúvidas de que Ernest estava dizendo fort = ‘foi embora' e da = ‘está aqui', enquanto brincava-elaborava a alternância da ausência-presença da mãe.

Tanto os sonhos traumáticos como o brincar de Ernest guardavam em si uma característica: a compulsão à repetição. Entretanto, a diferença entre os dois, segundo Freud, reside em que, nas brincadeiras, ainda que motivado por uma vivência desagradável, o empenho na repetição é atribuído ao "impulso de apoderamento", que podemos chamar de pulsão de dominância. Sob a pulsão de dominância, o estímulo desprazeroso deve ser dominado pelo aparelho mental antes de ser submetido ao princípio do prazer.

Já nos sonhos traumáticos, a compulsão à repetição está ligada a um outro princípio, além (ou aquém) do princípio do prazer, sob domínio da pulsão de morte, percorrendo um outro caminho (Freud, 1920). Não iremos, neste trabalho, desenvolver tal temática.

A compulsão à repetição encontrada no brincar, estimulada por uma vivência dolorosa, faz a criança brincar-encenando repetidas vezes, para que não seja mais surpreendida. Dessa forma, a ansiedade pode ser produzida e sentida pelo ego em constituição como uma forma de preparação do aparelho mental para enfrentar uma situação desagradável.

Na prática da clínica psicanalítica com bebês e crianças, uma das formas de manejo do "repentino" é criar um ambiente acolhedor, constante e previsível, tal qual a mãe suficientemente boa, que, nos primeiros tempos de vida, é a mãe-ambiente que circunda o bebê, oferecendo o suprimento de todas as suas necessidades, inclusive dosando a quantidade de estímulos externos, no vocabulário winnicottiano (Winnicott, 1982); apresentação do mundo em pequenas doses ou função de paraexcitação, na abordagem psicossomática psicanalítica.

A angústia é sempre um fator na brincadeira infantil e, frequentemente, um fator dominante. A ameaça de um excesso de angústia conduz à brincadeira compulsiva, ou à brincadeira repetida, ou a uma busca exagerada dos prazeres que pertencem à brincadeira; e se a angústia for muito grande, a brincadeira redunda em pura exploração da gratificação sensual. (Winnicott, 1982, p. 162)         

Winnicott é, provavelmente, o teórico pós-kleiniano que melhor desenvolveu a concepção do brincar, ampliando-o não só como ação ou comportamento, mas como fenômeno transicional constituinte do sujeito pensante, criativo e desejante, bem como sua inserção social e na cultura.

Uma das concepções que considero das mais bonitas da obra de Winnicott é a similaridade entre o brincar e o sonhar que ele apresenta no texto "O brincar: proposição teórica":

Sem alucinar, a criança produz uma amostra de potencial onírico e vive com ela dentro de um ambiente composto de fragmentos da realidade externa. Ao brincar, a criança manipula fenômenos externos e os coloca a serviço do sonho, atribuindo a esses fenômenos significado onírico e sentimento. (Winnicott, 2019 [1971], p. 89)        

Sobre este aspecto, Winnicott afirma que o desenvolvimento do brincar implica confiança no outro-materno, pois constitui-se a partir do estado de dependência quase-absoluta e a função adaptativa da figura materna concebida como certa pelo bebê, ou seja, a mãe real deve corresponder ao objeto subjetivo:

A confiança na mãe representa um playground intermediário, a partir de onde se origina a ideia de mágica, uma vez que o bebê tem determinada experiência de onipotência. [...] O playground representa um espaço potencial entre a mãe e o bebê ou que une mãe e bebê. (Winnicott, 2019 [1971], p. 71)

A íntima relação entre o brincar e o potencial onírico pode ser compreendida na proposição que Green, em uma articulação teórica entre Winnicott e Freud, faz a partir da concepção da estrutura enquadrante como sede da função simbolizante (Green, 1988 [1966-1967]).

A perda do seio, contemporânea à apreensão da mãe como objeto total que implica que o processo de separação entre a criança e esta tenha se realizado, dá lugar à criação de uma mediação necessária para paliar os efeitos de sua ausência e sua integração ao aparelho psíquico, isto fora da ação do recalcamento, cuja finalidade é diferente. Esta mediação é a constituição, no Eu, do quadro materno como estrutura enquadrante. (Green, 1988 [1966-1967] p.125) (grifos meus)

Para Green, a estrutura enquadrante é o fundamento para o modelo do sonho de Freud, porque se constitui como espaço e condição do trabalho do sonho (1988 [1966-1967]). No brincar, no sonho e no luto, nosso aparelho psíquico simboliza o que está ausente. A ausência é a dimensão intermediária que se apresenta entre a presença e a perda.     

Entrelaçando a teoria pulsional e a das relações de objeto, Green é o teórico contemporâneo que desenvolveu a ideia de uma metapsicologia dos espaços psíquicos, dos limites entre esses espaços, o trânsito ou a estagnação das pulsões nesses espaços.

 

Os lutos no envelhecimento

"Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo"

(Blanc e Bastos, "Resposta ao tempo", 1998)

 

 

Para Winnicott, os processos de maturação são contínuos, possibilitando transformações até o final da vida, porque, como já dissemos, a integração psicossomática, uma vez alcançada, não é permanente. Os ambientes sociocultural e relacional são constitutivos e mantenedores do equilíbrio psicossomático ao longo da vida.

Perceber-se e autonomear-se enquanto jovem, adulto ou velho também passa por transformações ao longo da história existencial de cada sujeito. Vejo em mim mesma como a percepção de velhice vai ganhando certa "flexibilidade" com o decorrer dos anos. Enquanto criança pequena, via um adulto de 40 anos como velho. Hoje, aos 55, vejo "jovens idosos" de 65 anos como pessoas no auge de sua maturidade.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são consideradas idosas, nos países desenvolvidos, pessoas de idade igual ou superior a 65 anos; já nos países subdesenvolvidos, de 60 anos ou mais. No Brasil, são considerados idosas as pessoas de idade igual ou superior a 60 anos. Uma clara relação de dependência entre longevidade e ambiente socioeconômico.

A contínua elaboração da autoimagem, inclusive corporal, na chamada terceira idade permanece dependente do que é visto e falado pelo outro, consequentemente, há impactos na integridade narcísica. O processo de envelhecimento é então vivenciado entre múltiplas contingências: subjetivas, intersubjetivas, socioeconômicas e culturais.

Haverá, entretanto, um momento em que cada sujeito perceberá a nítida demarcação entre ser velho e não ser mais jovem, além de toda polissemia que a palavra velho encerra em si, no ambiente social e cultural que o cerca. Digo demarcação no sentido de limite mesmo - histórico, social, vivencial e representacional.

Para o meu pai, parece ter sido por volta dos 73 anos, quando a família considerou que seria melhor que ele não dirigisse mais, pois começava a se colocar em risco de provocar algum acidente. Apresento tal constatação como possibilidade desse "marco existencial" pelo fato de ele, já apresentando as primeiras fabulações do processo demencial, falar com pesar de lhe terem tirado o carro. "Eu preciso ir trabalhar, mas ninguém deixa [...] agora me tiraram até o carro".

Aposentado há alguns anos, meu pai, ainda que em fabulações, falava com propriedade da perda de um lugar que ocupava, tanto na família quanto na sociedade contemporânea: o lugar que ocupava como sujeito autônomo, potente, provedor e cuidador da família, também das respectivas representações de si mesmo.

Em todo processo de envelhecimento, há uma depressividade,[4] no sentido de um recolhimento libidinal necessário (libido antes investida em objetos que retorna ao Eu), porque, em intenso trabalho de luto, o sujeito precisa aceitar a perda dos objetos anteriormente investidos - a perda de um amigo ou familiar, a aposentadoria, a perda da vitalidade e algumas vezes da saúde -, desligar-se deles e então, só assim, empreender uma nova busca de objetos e interesses em que possa reinvestir sua libido.

Volich nos lembra que a desvitalização do idoso, que se manifesta por meio de limitações progressivas dos campos de interesse e de investimento libidinal, além de ser consequência de restrições, inclusive físicas, do processo de envelhecimento, é também, enquanto dinâmica pulsional, uma tentativa de se contrapor aos movimentos de desorganização progressiva, que buscam preservar, com menores quantidades de pulsão de vida, organizações e recursos conquistados ao longo da vida para manutenção do equilíbrio psicossomático (Volich, 2022).

Os lutos impostos pelo envelhecimento são, em última instância, lutos por si mesmo. Entretanto, em nossa sociedade contemporânea, o idoso e todas as representações em torno da velhice não são valorizados, ao contrário, são tão desvalorizados que chegam a ser rejeitados, quando não, negados.

E o que se rejeita e o que se nega são justamente aberturas de caminhos para que o idoso encontre novos interesses e objetos com os quais possa se vincular e dar continuidade à sua história subjetiva.

Reclama-se que o idoso vive de reminiscências, mas, ao mesmo tempo, não se dá oportunidade para que ele saia delas. O trabalho de luto demanda tempo e, muitas vezes, a própria família nega esse tempo de elaboração ao idoso, que, vivendo de reminiscências, pode se retrair e se isolar do convívio social.

O idoso, na qualidade de sujeito submetido à trama social, não está livre dos ideais da cultura enquanto determinantes e produtores de subjetividade. Rojas e Sternbach apontam que:

 

ideais ligados à juventude, os quais, como produtos dos anteriores, preconizam os padrões de estética e comportamento ligados a essa fase da vida; negam o caminho natural em direção à velhice e à morte, que aparecem como tempo de concentração de tudo que é decadente e deficitário, provocando a necessidade de parar o tempo. Seguindo esta lógica, a juventude seria um estágio ideal a ser alcançado precocemente e indefinidamente prolongado. (Rojas; Sternbach apud Goldfarb, 2004)

 

Demência: luto e melancolia na (des)constituição subjetiva

O assombro

E, acidentalmente,

Ao deparar-me frente ao espelho,

Por um breve momento,

O olhar não me encontra.

Assombro e angústia.

O que aconteceu?

Quem é este que me olha

com faces enrugadas e olhar vazio?

Isso é pesadelo? Isso é loucura?

Onde estive este tempo todo?

Não me lembro.[5]

(Goto-Oyadomari, 2021)

 

Demência vem do latim de-mentis - ‘perder a mente', mas, em italiano, deriva também de dimenticare - ‘esquecer'. Na psicanálise, a constituição do sujeito e sua história são também marcadas pelo lembrar-esquecer, Mnemosyne e Lethe, em alternâncias sucessivas. No mito de Mnemosyne e Lethe, as fontes da memória e do esquecimento, respectivamente, é precisamente da fonte de Lethe, segundo o mito grego, que os mortos bebem para esquecer a vida terrena; já quando as almas renascem no mundo dos vivos, é também a Lethe que recorrem para esquecer do Hades (Goldfarb, 2004). Nascemos sem memória, ou talvez não disponhamos de linguagem apropriada para comunicar a experiência do Nada.

O filhote humano atravessa diversos caminhos até se constituir como indivíduo autônomo. Dois marcos importantes para essa constituição são o narcisismo e a castração inerente ao complexo de Édipo. Caminhos formados por traços mnêmicos, alucinação, ilusão, fantasia, amnésia e recalque. O lembrar-esquecer que constitui a própria vida psíquica não é linear, mas antes um ir e vir na atemporalidade do Id e na constituição incessante das tramas do aparelho psíquico.

O mal de Alzheimer diferencia-se das demais causas de demência justamente pela perda das memórias. Curiosamente, as primeiras memórias da infância são as últimas a se apagarem. Lembro-me de visitar minha avó, mãe do meu pai, já em avançado estágio da doença, cantando músicas da sua longínqua infância e, algumas vezes, interrompendo o próprio canto-prazer com a frase "Não devia ter vindo ao Brasil", chorando o desprazer em seguida. Memória ou delírio? (Goto-Oyadomari, 2021).

Desde aquele período, compreendi as falas desconexas dos idosos com demência como desconexas no tempo-espaço, mas com profundos vínculos e significados. Memórias-alucinação de um tempo perdido alternando-se em um aparecer-desaparecer. Meu pai, ao queixar-se comigo de que não o deixam "fazer", está perdido em Chronos, reclama aquele que já foi.

No texto "A transitoriedade", de 1916, Freud escreveu:

 

[...] sabemos que o luto, por doloroso que seja, expira de forma espontânea. Quando acaba de renunciar a todo o perdido, devorou-se também a si mesmo e então nossa libido se vê livre novamente para, se ainda formos jovens, e capazes de vida, substituir os objetos perdidos por outros novos que sejam, se possível, ainda mais apreciáveis. (Freud, 2010 [1916])

 

 

Como observa Goldfarb (2004), a limitação temporal para o idoso apresenta-se como um dificultador para o trabalho de elaboração do luto. O idoso não tem esse tempo, portanto, viverá, durante o envelhecimento, um luto sempre antecipado de um objeto ainda não perdido, sua própria vida.

A forma como cada um viverá seu próprio luto antecipado dependerá diretamente das características de subjetivação de cada sujeito, bem como da forma que experienciou as vivências de perdas e mortes ao longo de sua vida. Para Goldfarb (2004), a demência pode ser produzida, então, por uma ausência de trabalho de luto. Na demência, deparamo-nos com a desconstituição do Eu.

Na economia libidinal do envelhecimento, o intervalo entre as perdas e a necessidade de seus lutos encurta demasiadamente, provocando um excesso de excitação impossível de ser metabolizável, portanto, equivalente a uma neurose traumática.

Relembrando Freud (1926), Goldfarb afirma:

 

Devemos considerar o fato de que por causa das vivências que levam às neuroses traumáticas é quebrada a proteção contra estímulos exteriores, assim, ingressam no aparelho psíquico volumes hipertróficos de excitação. (Goldfarb, 2014, p. 270)

 

E não podemos desconsiderar as vivências de violências, portanto, também traumáticas, sofridas pelos idosos nesse período tão sensível para a manutenção da integridade egoica que é o envelhecimento. Violências de toda ordem, desde as psicológicas e físicas até as financeiras. Sem um trabalho de elaboração adequado, o eu acaba sendo invadido pela angústia de morte.

Como Freud postula em "Inibição, sintoma e angústia" (2014 [1926]), o Eu produz uma angústia como resposta ao maior perigo que o ameaça, o de aniquilação. A demência acaba se constituindo em uma fuga, uma fuga da ordem simbólica, do presente de sofrimentos e do porvir. Refugia-se nas lembranças do passado até o total esquecimento ou até que alguma desorganização somática associada à senilidade conclua o trabalho de Tanatos.

 

O trabalho psíquico de quem fica: o luto

"Morrer

Que a ausência é a presença do inexistente

Do silêncio com seu volume gigante

Limite pra além do azar e da sorte

Que prova existir vida antes da morte

Que une e separa o todo da parte"

(Bernardes, "Nascer, viver, morrer", 2022)

 

 

A constatação da realidade da morte é que inicia, de fato, o trabalho de luto como referido por Freud em "Luto e Melancolia" (1917 [1915]). Meu trabalho de luto iniciou-se durante as mais de cinco horas de angústia e espera no serviço de verificação de óbito do Instituto Médico Legal.

Um superinvestimento em memórias e lembranças passaram a invadir meus pensamentos naquelas longas horas. Uma temporalidade confusa, sem ordem aparente, uma cronologia talvez própria do pré-consciente, fazia-me viajar do presente para o passado, para os meus primeiros anos de infância, e dali novamente para a lembrança da última palavra do meu pai para mim.

Uma semana antes do seu falecimento, tivemos a última vivência significativa de nossas vidas. Cortei suas unhas, as das mãos e as dos pés, depois massageei um pouco suas mãos, já muito rígidas. Quando terminei, meu pai, já quase afásico, disse-me em um grande esforço: "obrigado".

Compreendo esse "obrigado" pronunciado pelo meu pai em nosso último encontro como o que M'Uzan descreve como o trabalho de passagem. Na iminência da morte, a pessoa sente uma necessidade de hiperinvestir os objetos de amor; uma busca de recuperar e assimilar uma massa pulsional ainda imperfeitamente integrada, convocando o outro a um último trabalho psíquico, a necessidade de integrar a experiência da morte (M'Uzan apud Volich, 2022).

Aos poucos, as lembranças foram ganhando palavras em minha mente, em um texto que exigia ser escrito. No dia seguinte, após os rituais fúnebres finais, a elaboração da primeira fase do luto ganhou a forma de uma carta endereçada a meu pai.

Escrever deu uma destinação simbólica às memórias, como se não pudessem mais se perder nas fontes do esquecimento de Lethe. E, mais do que isso, é como se as memórias evocadas ganhassem um novo estatuto, o de inscrição psíquica, que já existia, só não havia se tornado consciente. 

Infelizmente não tenho mais o conjunto Parker, não sei onde se perdeu nesses anos. Sei apenas o que não se perderá, porque escrito por você e inscrito em meu ser: o amor pelas letras, pela escrita, pelos livros e claro, por canetas e grafites. (Trecho de post na página do Instagram da autora, 18 de setembro de 2023)

Seguiram-se dias de imensa tristeza; não conseguia me interessar por nada. Até escrever não queria mais. A escrita do meu trabalho de conclusão de curso se paralisou, fiquei três semanas sem conseguir escrever uma palavra. Nessas três semanas de paralisia, uma exaustão pesava em meu corpo, e uma infinita tristeza permanecia em meu semblante.

Não percebia, mas o trabalho de luto agia silenciosamente em mim. No dia 27 de setembro, minhas amarílis, herdadas do meu avô, pai do meu pai, floresceram como todos os anos florescem. Mas, desta vez, despertaram-me para uma nova fase de simbolização, que podemos chamar de terciária, visto que ocorre no espaço intermediário entre a saudade da ausência e a realidade da perda definitiva, possibilitando uma espécie de reintrojeção do objeto.

Lembrando que a simbolização primária é aquela constitutiva do ego corporal, resultante da experiência estética do encontro entre o outro dos cuidados maternos e o bebê, em que a sensorialidade desse potente encontro estimula o pensamento criativo a simbolizar a experiência emocional e psíquica na imagem de um seio bom (Roussillon, 2015).

Já a simbolização secundária, processo constitutivo da linguagem e do pensamento pré-consciente e consciente, possibilita a construção e criação de uma narrativa coesa, passível de ser comunicada ao outro e de ser compreendida (Roussillon, 2015).

O que estou chamando de simbolização terciária é o processo de transformação de um objeto que se tornou relevante porque símbolo de uma vivência significativa entre o sujeito e o ente querido perdido, evocado e hiperinvestido durante o processo de luto.

Se, na primeira fase do trabalho de luto, são as memórias que ganham uma destinação simbólica, elegendo objetos representativos para manter vivo o ente querido, na fase da simbolização terciária, o objeto representativo da vivência significativa ganha o estatuto de relíquia - parte simbólica de quem partiu. Já o sobrevivente torna-se um relicário vivo, tornando-se depositário da herança psíquica.

Minhas mais preciosas relíquias são as canetas e lapiseiras, minha máquina de escrever, a câmera Canon EOS Kiss e as amarílis. Ainda que "herdadas" em fases diferentes da minha vida, são responsáveis pelo que considero como a melhor expressão de quem sou: a palavra, a escrita, a fotografia e o amor pelas flores.

 

Considerações finais

 

"Ao passo que amar eu posso

até a hora de morrer.

Amar não acaba."

(Lispector, 2020)

 

 

Os trabalhos psíquicos do brincar e do luto se dão a partir da perda do objeto. A similaridade do trabalho do brincar e do trabalho do luto se dá em seu aspecto da materialidade do objeto transicional - o brinquedo e a relíquia, respectivamente - dentro do espaço potencial, terceira área de experiência.

Esse aspecto comum entre o trabalho do brincar e o trabalho do luto foi, em minha própria experiência, o fator preponderante para que a melancolia não adviesse. Porque há um momento no luto, mesmo após a simbolização das lembranças das vivências com o amado que partiu, em que a ambivalência surge, confundindo as histórias de quem partiu e de quem permanece. O que parece proteger de uma possível melancolia é a possibilidade de viver, inclusive durante o luto, uma relação de claro reconhecimento de alteridade do objeto-sujeito perdido.

Creio que o conceito de "uso de objeto" da teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott é o que melhor nos ajuda a compreender a alteridade do objeto na constituição subjetiva.

Na relação com o objeto primário, o bebê passa gradativamente do estágio de ilusão de criação do objeto (dito subjetivo) para a desilusão, e então para o uso de objeto. A frustração decorrente da desilusão leva ao ódio e à tentativa de destruição do objeto. O objeto deve sobreviver ao ataque, revelando-se em sua alteridade. Só assim, com a sobrevivência do objeto, é que se pode dar a experiência do destruído-encontrado, tornando-se objeto-sujeito para a pulsão (Roussillon, 2015).

Conforme a preocupação materna primária vai cedendo à "apresentação do mundo em pequenas doses", o bebê adentra um novo processo de desenvolvimento (Winnicott, 1982). Com a apresentação de novos objetos, o objeto-sujeito incentiva o bebê a transferir a falta sentida para a apropriação desses novos objetos, tornando-os símbolos primários.

Os objetos simbólicos devem, dessa maneira, preencher o vazio deixado pelo objeto que não mais atende às necessidades do sujeito, ou, pelo menos, ajudar a diminuir a crescente distância entre o "encontrado" e o "criado". Assim se estabelece uma dinâmica entre o que ainda se pode extrair diretamente da relação com o objeto e o que ele precisará adquirir por meio do processo de simbolização.

É a identificação com um outro-sujeito que pode proteger o enlutado de desenvolver uma melancolia, porque as identificações por apoio e o investimento narcisista de objeto causam confusões entre o eu e não eu. Em outras palavras, a capacidade de "destacabilidade" do objeto, segundo Rosenberg (2003), é que possibilita a elaboração do trabalho da melancolia: o desinvestimento em uma representação congelada do objeto.

 

 

 


"Para controlar o que está fora,                é preciso fazer coisas, 
não apenas pensar ou desejar, e
      fazer coisas demanda tempo. Brincar é fazer." 

                                 
(Winnicott, 2019 [1971])

 


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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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Autor(es)
• Cristina Kiyomi Goto Oyadomari
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Psicóloga e psicanalista. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em Comunicação e Marketing pela FGV-EAESP. Jornalista pela Fundação Cásper Líbero. E-mail: goto.cristina@gmail.com

Notas

[1] Segundo o Ministério da Saúde, a primeira infância é o período que abrange desde a concepção até os 6 anos.

[2] Segundo Espinosa, o conatus "é a expressão de um corpo e de uma mente conectados, que se expressam ao mesmo tempo como atributos diferentes. No corpo é essa capacidade de ser afetado juntamente com essa mobilidade de suas partes que o constituem sem levá-lo a se desfazer" (Trindade, 2013).

[3] Deleuze, sobre a teoria dos afetos de Espinosa (Deleuze, 2002).

[4] A depressividade é aqui compreendida como uma atualização da posição depressiva conceituada por Klein, segundo a qual o sujeito enlutado sente-se como tendo perdido seus "objetos internos bons".

[5] Criação espontânea, nascida na elaboração do trabalho de final de semestre da disciplina Fenômeno psicossomático: a saúde e o adoecer, em 2021. Revisada em outubro de 2023.

Referências bibliográficas

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