RESENHA

Hiponcondria e suas dinâmicas - história, dilemas e desafios

Helly Angela Caram Aguida


VOLICH, Rubens M.

Impasses da alma, desafios do corpo: Figuras da hipocondria. São Paulo: Blucher, 2024.

 

Título instigante, tema mobilizador. Como articular impasses da vida com expressões hipocondríacas do sofrimento? De que forma tais dinâmicas circulam por almas aflitas, emudecidas, angustiadas e corpos resilientes, feridos, falantes? O título aguça a curiosidade, provoca o desejo de conhecer um tema relevante na arte do cuidar e aprofundar-se nele.

Com maestria e consistência, o psicanalista e professor Rubens M. Volich nos brinda com uma obra que abarca o assunto de forma ampla, profunda, contextualizada ao longo da História e na contemporaneidade, pautada em extensa pesquisa e sólido embasamento teórico-clínico.

Há muitas décadas, reconhecidamente, o escritor dedica-se ao estudo e ao ensino da psicossomática psicanalítica. Doutor pela Universidade de Paris VII (Denis Diderot), Volich publicou, como autor e coorganizador, vários livros e artigos científicos. Seu primeiro livro, Psicossomática, de Hipócrates à psicanálise (2000), atualmente em sua oitava edição, forneceu combustível para maior exploração dos conceitos da hipocondria. Após dois anos, lançou Hipocondria: impasses da alma, desafios do corpo (2002); em 2008 e 2015 saíram mais duas edições.

Ciente dos "mal-entendidos", estigmas e depreciações que recaem sobre pacientes com queixas hipocondríacas, Volich debruçou-se em novas pesquisas, nas reflexões trocadas com colegas, amigos e alunos para rever e atualizar o livro, que chega à sua quarta edição, pela editora Blucher, com novo título: Impasses da alma, desafios do corpo - Figuras da hipocondria. A mudança de título soa como anunciação da amplitude dos significados das manifestações hipocondríacas em corpos desafiados a seguir diante da complexidade do existir.

Robusto, o livro tem corpo e alma. Oferece fortes bases para a compreensão da "função econômica e clínica das dinâmicas hipocondríacas como articuladoras das relações entre o psíquico e o somático" (p. 16).

Vale ressaltar um aspecto que caracteriza a obra: a versatilidade da escrita. Ao longo do texto, a linguagem salta de acadêmica, científica e conceitual para romanceada e poética, com detalhadas descrições subjetivas de sensações, experiências, paisagens e paragens que conduzem o leitor, em seu corpo, à atmosfera sensorial da experiência. Movimento e cadência permeiam a leitura.

Já no primeiro parágrafo do Prólogo, o autor expõe seus movimentos interiores provocados durante o trabalho de revisão - próprios da condição humana: "Folheando as páginas deste livro para reeditá-lo, aos poucos, fui percebendo a estranha sensação de revisitar-me. Reconhecia minhas palavras, minhas ideias [...] porém, ao mesmo tempo, estranhava-me e me redescobria. Mudei... [...] Nem sempre nos é fácil reconhecer mudanças" (p. 15). Entretanto, "são também as mudanças que nos provocam o olhar para o caminho que já percorremos, permitindo assim compreender onde nos encontramos e para onde ainda queremos seguir" (p. 15). Inspirador. Somos o que fomos sendo... seremos o que estamos sendo.

"O viajante segue seu caminho. [...] Ele espera que essa história anime alguns a juntar-se a ele em sua aventura. Ele deseja que muitos possam ir além das paragens que ele mesmo alcançou." (p. 29)

Sigamos viagem! A memória é de 1986, em Paris, em uma Paris em "noite gélida de janeiro", com névoa, vento e frio, muito frio. O autor nos conduz à emoção de adentrar o famoso, misterioso e histórico hospital da Salpêtrière, onde circularam "Pinel, Esquirol, Charcot, Freud e tantos outros. [...] Naquele lugar, Charcot celebrizara suas pacientes histéricas [...], destacando-as dos demais ocupantes anônimos daquele hospício" (p. 25). Uma frase dita por Pierre Fédida no anfiteatro do hospital disparou em Volich o interesse pelo tema: "a consideração da natureza hipocondríaca do sonho é uma condição essencial para uma compreensão psicanalítica do corpo" (p. 26). Realmente, a frase carrega algo de enigmático e ressoa não apenas no autor.

A disponibilidade interna para seguir, usufruir e suportar a longa viagem abre a perspectiva de tornar a leitura uma vivência vívida e rica, que convoca o sentir e instiga o pensar para além da aquisição de muito conhecimento acerca das multiformes expressões hipocondríacas diante do sofrimento humano.

 

"Nesse oceano turbulento, em meio a gritos e silêncios, entre palavras e gestos [...] perfilava-se a sombra incompreendida e desafiadora da hipocondria"; "Os gritos dos sintomas na carne calavam os sofrimentos estrondosos de almas silenciadas." (p. 27)

 

O leitor vai transitando ao lado do viajante em diferentes campos e terrenos, mais ou menos acidentados, alguns densos e áridos, outros floridos e povoados. Uma aventura que demanda presença. É inegável que, em muitos momentos, o volume e a profundidade dos conteúdos demandam "respiros" para análise e, literalmente, incorporação.

O encadeamento das ideias e do pensamento, de tópico a tópico, capítulo a capítulo, atua como um fio condutor que direciona o leitor a diversos espaços abertos, sinuosos e labirínticos, sem, porém, deixá-lo solitário ou perdido. Interessante que cada parada ajuda na localização e compreensão do roteiro da viagem. O lugar de onde se olha é importante para a compreensão do que se vê.

Olhar para trás através do capítulo "Imagens de uma história" é envolvente e enriquecedor. "Interrogar os mistérios do corpo é tão antigo quanto investigar o mundo que nos cerca" (p. 32). Fica a ideia do saber que se constrói a partir da percepção atenta e conexão com o que se passa e se revela a cada encontro humano. Um saber que é a base do trabalho de carpintaria do cuidar, explicitado com primazia e delicadeza nesta obra.

Dentre muitos, cabe ressaltar alguns apontamentos que encorpam a discussão. "Muitas vezes, a dor, a cor, o calor, a umidade, os ruídos e as tensões do corpo se apresentam como tentativas de descrever sensações e experiências do sujeito diante de si mesmo e da realidade" (p. 33). Já na Antiguidade, Hipócrates frequentemente associava a hipocondria com a melancolia: "Tensão de espírito, doença difícil: o doente parece ter em suas vísceras um espinho encravado; a náusea o atormenta; sente dores quando tocado; ele tem medo..." (p. 39). Sim... ele tem medo. Ele dói.

Naqueles tempos, reconta Volich, "a hipocondria colocava-se como um enigma desafiador das teorias que interrogavam as relações entre corpo e alma" (p. 46). E assim se mantém, com o afeto ocupando lugar central para a compreensão de tais dinâmicas e suas expressões clínicas.

Chama a atenção o quanto intuições e suposições prenunciadas pelos atentos clínicos e pesquisadores de tempos remotos são hoje reconhecidas e cientificamente validadas. A noção de que existem profundas relações entre as vísceras e a alma era fortemente implicada na compreensão de muitos sintomas. Na Idade Média, acreditava-se que

 

"vapores se elevam das partes inferiores do abdômen dirigindo-se para o cérebro para perturbá-lo. [...] A hipocondria resultava da influência dos órgãos abdominais e de tais dinâmicas sobre diferentes partes do corpo. [...] A irritação das fibras nervosas das vísceras afeta por simpatia o cérebro." (p. 48 e 49)

 

Parecia evidente que órgãos, nervos e o corpo como um todo estavam integrados com estados de alma e funcionamento psíquico. Mas não se sabia, naquela época, o que hoje está cientificamente comprovado acerca das profusas e importantes relações entre intestino e cérebro, por exemplo. Ignoravam esta realidade hoje demonstrável: o intestino, órgão tão central para a digestão, apresenta cerca de 500 mil neurônios, células imunológicas e endócrinas, produtoras de hormônios e neurotransmissores que se comunicam com o corpo todo - e com a alma.

No contexto de percepção dos sinais que chegam do corpo surge a ideia de cenestesia, atualmente definida como "sentimentos vagos, mas perceptíveis, do funcionamento vegetativo do organismo, resultante de sensações internas difusas, indefiníveis, mas profundamente marcadas por uma tonalidade afetiva" (p. 209). Pode-se fazer um paralelo com a interocepção - a capacidade de discernir informações referentes ao estado interno do corpo. Há cerca de cinco anos, dentre todos os sentidos, a interocepção é considerada o mais importante.

A ciência pode - e deveria - contribuir para desinvestir a "impostura da descrença", da desacreditação. Interessante pensar que "atormentando o espírito, a doença acaba implicando o corpo... seja pela imaginação, seja pela realidade, o corpo acaba realmente afetado" (p. 49). Queixas sem causa, desconfortos sem nome, dores sem fim permeiam a clínica das entranhas, uma clínica visceral, de almas e corpos extenuados no clamor. Das entranhas do corpo às entranhas da alma. Ou vice-versa.

Como ressalta o autor, "o corpo, por meio da sensorialidade, da percepção e das marcas por elas inscritas, constitui-se por excelência como o lugar da experiência do mundo e do semelhante" (p. 152), palco e memorial de toda vivência. Acontece na vida, acontece no corpo, no mundo sensível dos nervos, dos órgãos, da consciência, da inconsciência, da hipocondria, da loucura...

Seguindo o percurso, o viajante adentra o campo freudiano, visita e aborda diferentes concepções e reformulações da hipocondria. A discussão é enriquecida com pensamentos e conceituações de autores da psicanálise e da psicossomática influenciados por Freud, como Ferenczi, M. Klein, A. Green, P. Aulagnier, P. Marty, M. Aisenstein, dentre outros. Volich vai sinalizando que as dinâmicas hipocondríacas, apesar de seu caráter narcísico, envolvem também o outro - e o corpo do outro. 

 O autor explora, com grande vastidão, diferentes aspectos e condições do funcionamento psíquico associados à hipocondria, como melancolia, histeria, mecanismos defensivos, despersonalização, auto-observação compulsiva. Sob diferentes óticas, eles colocam o corpo como foco de atenção.

Um aspecto essencial dos processos de personalização é destacado: "a possibilidade de abrigar ‘um outro em si' [...] momento de instalação da psique no soma, momento em que, segundo Winnicott, o corpo se torna lugar de residência do self" (p. 232). Ter um corpo é diferente de habitá-lo. Corpo-coisa não é o mesmo que corpo-casa. São questões que pesam na capacidade de

 

"entregar-se à ameaçadora experiência do encontro com um estranho, abrindo-lhe as portas de nossa morada, de nosso corpo, de nossa subjetividade. [...] Estranhar e reconhecer o outro é correlato à experiência de sentir-se estrangeiro e familiar a seu próprio corpo." (p. 232 e 233)

 

Conhecer, reconhecer, estranhar a si e ao outro são condições primordiais que influenciam e modulam a relação terapêutica.

O autor reúne elementos para pensar o quanto a medicina contemporânea tem se empobrecido por não conceber a hipocondria como um fenômeno psicossomático e por depreciar, de alguma forma, o valor e a legitimidade de suas expressões sintomáticas. Como saber o que fazer quando não se sabe o que é? Soma-se a isso o entendimento fragmentado e dicotômico do ser humano, o que dificulta a comunicação, distorce a compreensão da dimensão hipocondríaca e de sua abordagem clínica. Incompreendido, angustiado, desorganizado, o paciente peregrina sob a sensação: "sinto tudo e não tenho nada?"

Última parada: "Desafios". Um capítulo clínico que vem coroar o longo percurso da viagem. O caso Jean, narrado com detalhes e sensibilidade, envolve o leitor na pulsação viva do autor com seu paciente. Rever Jean dispara o diálogo e a discussão com autores importantes no campo da psicossomática psicanalítica. As reflexões cooperam para clarear e ligar os conteúdos apresentados ao longo da obra. Depara-se com uma clínica à escuta do corpo, na dimensão corpo a corpo.

Citações de Volich ajudam a entrar em contato com a essência das trocas com Jean:

"Durante dois anos brincamos de esconde-esconde." (p. 344)

"Então... era de pega-dor que brincávamos..." (p. 354)

"Aos poucos, fui percebendo meu cansaço, meus calafrios, meus espirros, a tensão em meu pescoço, o aperto em meu estômago..." (p. 354)

"As dores de Jean, as dores do analista que, assim como a mãe de um bebê, é convocado, muitas vezes corporalmente, a responder às manifestações impossíveis de serem verbalizadas." (p. 346)

"A hipocondria nos oferece o tédio, a monotonia, o queixume e o corpo. E os órgãos. E as dores. Suas dores. Também nossas dores. Era-me solicitado não mais ouvir, mas sentir." (p. 357)

Importa poder ouvir, sustentar e suportar os desorganizados e potentes movimentos transferenciais, carregados de afeto, que tocam a relação terapêutica de forma contundente ou nebulosa...

Como ouvir? Volich responde: "Ouvir com o corpo. Tal é o desafio que nos lançam a hipocondria e as manifestações somáticas do sofrimento" (p. 356). O corpo pede passagem. De corpo-tudo ou corpo-nada a corpo-eu, corpo-morada.

É acalentador pensar na potência do processo terapêutico de ressignificação "da relação com o próprio corpo, consigo, com o outro". Afinal, no desencontro humano perde-se, fere-se, adoece-se. No encontro humano acha-se, cuida-se, sara-se.

Pare, olhe, escute: "O hipocondríaco tem razão. Por mais que ele irrite, frustre e engane aqueles que buscam compreendê-lo, ele sofre" (p. 361).

Impasses da alma, desafios do corpo: Figuras da hipocondria impacta por sua grandeza, emociona por sua sensibilidade, instiga por suas interrogações, mobiliza por suas reflexões, inspira enquanto ensina.

Após a experiência de uma longa viagem, o livro termina. Mas o desejo de seguir permanece.

Sigamos.



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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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Autor(es)
• Helly Angela Caram Aguida
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

 Médica e cirurgiã. Mestre pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Atua nas áreas de gastroenterologia e coloproctologia. Membro e professora colaboradora do Curso de Especialização em Psicossomática Psicanalítica do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: helly.aguida@gmail.com


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