JUNQUEIRA, Camila.
Metapsicologia dos limites.
São Paulo: Blucher, 2019.
Nos últimos tempos, evidenciou-se que certas manifestações, como as adições, as desorganizações psicossomáticas, os distúrbios alimentares, bem como certas depressões, entre outras, não podem ser compreendidas, nem tampouco tratadas como as estruturas psíquicas clássicas - neurose, psicose e perversão.
Os limites, na psicanálise, referem-se ao que diferencia o Eu do Outro, o interno do externo, o que é simbolizável do que permanece na ordem do indizível. Quando Freud propôs a constituição do aparelho psíquico, ele o fez com base na teoria pulsional e nas defesas egoicas, sendo o desenvolvimento do Eu um processo de constante diferenciação entre o que é próprio do sujeito e o que é estrangeiro a ele.
Nos pacientes-limite, essa diferenciação se dá de forma deficitária, gerando falhas nos limites psíquicos. O Eu que emerge dessa falha é permeável, instável, e as defesas psíquicas, muitas vezes, mostram-se frágeis ou inconsistentes. Essa permeabilidade é um dos elementos centrais que distingue esses sujeitos tanto da neurose quanto da psicose clássica, que possuem defesas mais estruturadas, mesmo que patológicas. O Eu dos pacientes-limite, ao contrário, é frágil o suficiente para permitir invasões da realidade externa, mas não completamente dissolvido a ponto de cair no campo da psicose plena.
Para abordar o tema, Junqueira empreende um retorno a textos fundamentais dos dois principais modelos teóricos, o pulsional e o das relações objetais, optando por trabalhar, essencialmente, com as elaborações teóricas de três autores: Freud, fundador da psicanálise e principal representante da teoria pulsional; Winnicott, um dos autores pós-freudianos que apresentou as principais inovações técnicas atualmente consideradas pelos psicanalistas no tratamento das patologias-limite; e, por fim, Green, que se dedicou a pensar modos de articulação entre as teorias pulsional e das relações de objeto, apresentando contribuições originais tanto para a metapsicologia dos limites como para a clínica das não neuroses.
A autora é cuidadosa ao empreender a ampliação da urdidura no tear do campo psicanalítico, propondo uma metapsicologia dos limites. Identificando pontos de possíveis articulações entre as duas teorias, após minuciosa releitura de teóricos e comentadores de ambos os pensamentos, Junqueira localiza e detém-se em discriminar e selecionar detalhadamente os fios utilizados na tessitura de suas próprias contribuições para a técnica com pacientes-limite.
Por que ler Metapsicologia dos limites?
O alinhavo histórico-conceitual da autora resgata, desde os primeiros fios de Freud - como "A interpretação das afasias" e "Projeto para uma psicologia científica", passando por toda a sua extensa obra -, algumas referências ao objeto, seja como objeto da pulsão, representante da pulsão, representação-objeto, objeto alucinado, objeto externo etc. Concorda com Green que Freud, à época, enfatizou o que trazia de mais novo e original - o determinismo pulsional como constituinte do sujeito.
Da mesma forma, Junqueira também seleciona, principalmente em Winnicott, as principais contribuições originais da teoria das relações objetais, destacadamente, aquelas em que o psicanalista inglês segue além da polaridade kleiniana dos objetos internos e externos, como o objeto transicional, situado nem dentro, nem fora, mas no espaço entre, conceituado como espaço potencial, suscetível, portanto, de ser "preenchido", mas que, inicialmente, é vazio.
Avaliando os possíveis caminhos para a formação de um enlace teórico entre Freud e Winnicott, Junqueira opta por examinar o estatuto do objeto em Freud e o estatuto do instinto em Winnicott, justamente os pontos de aparente divergência entre as duas teorias em seus respectivos (aparentes) opositores.
O exame cuidadoso revelou um promissor campo de diálogo: em Freud, a presença ao lado da pulsão, formando o que Green (2008) chamou de "o par inseparável pulsão e objeto", que propicia uma abertura para uma articulação com a teoria das relações de objeto; em Winnicott, revelou-se que o instinto tem sua importância em uma espécie de segundo tempo do desenvolvimento emocional, ou seja, quando o ego já se encontra constituído.
Junqueira chama atenção quanto às "necessidades egoicas" (p. 75) na fase do desenvolvimento emocional e questiona se, de fato, já não há ego nessa primeira etapa. O aparente paradoxo talvez possa ser iluminado por Jan Abram (2000 [1996]):
A exposição definitiva sobre a especificidade do papel e da função do ego no desenvolvimento emocional pode ser encontrada em um texto de Winnicott datado de 1962, Ego Integration in Child Development. Nele a descrição feita do ego é dividida em duas partes. Ele é "uma parte da personalidade que busca as condições adequadas a fim de integrar-se em uma unidade", sugerindo que em suas origens o ego existia apenas como um potencial. [...] Entretanto, a capacidade de organizar a experiência depende também de condições favoráveis, ou seja, de uma maternagem suficientemente boa. (Abram, 2000 [1996], p. 119 - grifos meus)
Junqueira sugere que a articulação das duas teorias, a pulsional e a objetal, parece caminhar em paralelo, um desenvolvimento do self[1] que ocorreria em dois níveis, suplementares entre si. Sua investigação parte, então, na busca por responder à seguinte questão: há uma coincidência entre o objeto que satisfaz a pulsão (Freud) e o objeto que sustenta a ilusão de onipotência (Winnicott)?
A adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a ele a ilusão de que existe uma realidade externa que coincide com sua própria capacidade criativa. Em outras palavras, existe uma sobreposição entre o que a mãe fornece e o que o bebê consegue conceber. (Winnicott, 2019 [1971], p. 31)
A autora depreende de Winnicott que, para que ocorra o desenvolvimento emocional esperado e se caminhe para uma integração egoica, é importante que haja uma coincidência ou sobreposição entre o objeto da realidade e o objeto da necessidade, possibilitando a constituição, em planos distintos e paralelos, do aparelho psíquico em Freud e o amadurecimento emocional em Winnicott.
Em 1966, Green concebe a estrutura enquadrante, resultado da interiorização do holding materno, através dos mecanismos de duplo retorno das pulsões e da alucinação negativa da mãe.
O espaço assim enquadrado, constituindo o receptáculo do Eu, circunscreve, por assim dizer, um campo vazio a ser ocupado pelos investimentos eróticos e agressivos sob a forma de representações de objeto. Este vazio nunca é percebido pelo sujeito, pois a libido investiu o espaço psíquico. Desempenha então o papel de uma matriz primordial dos investimentos futuros. (Green, 1988, p. 265)
Junqueira considera a estrutura enquadrante como uma das maiores contribuições de Green para a psicanálise e, em especial, para uma clínica dos casos-limite. As elaborações teóricas de Green foram essenciais para a conceituação do narcisismo primário como uma estrutura (e não apenas como uma fase ou estado) primordial para a constituição do psiquismo - e, consequentemente, do Eu e sua função simbolizante -, de novos objetos a partir das atividades pulsionais e das ulteriores relações intersubjetivas.
A mãe é perdida, mas em contrapartida há um ganho considerável, um espaço psíquico, lugar das representações simbólicas. Nesse contexto, o Eu resulta da distinção necessária (Eu-objeto) criada pela perda do objeto que ocasionou a satisfação [...] a formação da estrutura enquadrante não depende apenas da existência da mãe como objeto externo, depende, sobretudo, da qualidade dessa relação. (p. 127)
Mas e o que não acontece na constituição psíquica dos pacientes-limite? A autora continua sua compreensão ao lado de Green, com o conceito de trabalho do negativo, "de difícil apreensão, pois ele engloba tanto acontecimentos constitutivos como destrutivos do psiquismo" (p. 133). Green demonstra, segundo Junqueira, que a noção de negativo é encontrada em Freud, Winnicott e Lacan.
No texto "A negação", de 1925, Freud relacionou esse mecanismo com a pulsão de morte, no sentido de recusar o movimento exigido pela pulsão, excluindo-a do psiquismo, e não como função defensiva do ego. Sendo assim, a pulsão de morte também estaria relacionada com os mecanismos de forclusão e recusa ou clivagem (pg.133-134) (Lacan).
O próprio inconsciente freudiano implicaria uma ideia de negativo, no sentido de não figurar na consciência, e ainda de que o recalcado é algo negativado, no sentido de que a neurose é o negativo da perversão, pois na perversão se atua (p. 134)
Em sua conceituação de Conhecimento positivo e Conhecimento negativo (K e -K), Bion introduz uma nova noção do trabalho do negativo na psicanálise contemporânea: em O aprender com a experiência (1962, apud Green, 2010), atribui aos processos intelectuais uma função psíquica, ao lado do amor e do ódio, em que se podem perceber as manifestações de Eros e as pulsões de destruição. Baseando-se na análise de pacientes psicóticos e de estruturas psicóticas, Bion percebe que a identificação projetiva expulsa do psiquismo elementos que não puderam ser elaborados após a experiência de frustração, mas tal evacuação é temporária, não dura muito tempo. Logo, há uma nova tentativa de evacuação, em que todo o conjunto do psiquismo é evacuado junto, e não apenas os elementos indesejáveis ou impensáveis. (GREEN, 2010)
Em Winnicott, o negativo como ausência está diretamente relacionado com a qualidade da relação com o objeto primário, bem como sua presença ou ausência: "Caso a mãe se afaste por um período superior a um limite medido em minutos, horas ou dias, a memória da representação interna se desvanece" (Winnicott, 2019 [1971]).
Candi (2012) corrobora a ideia da autora de que o desenvolvimento teórico de Green incide e acrescenta a noção de tempo-espaço nas tópicas freudianas e nos trânsitos das pulsões nesses espaços.
[...] coloca lado a lado as noções de trabalho de elaboração e de resistência, e concomitantemente dá ênfase não à deflagração e à aniquilação das resistências, mas ao hiato (tempo e espaço) que vai se instalar entre a elaboração e a resistência. O movimento psíquico necessário para a apreensão e a simbolização da experiência emocional (que provocou a manifestação da resistência) vai acontecer no espaço de respiração do conflito, nas bordas do self. (Candi, 2012)
Mas, para Junqueira, uma metapsicologia dos limites não se reduz à inclusão de uma terceira tópica - anterior às de Freud, portanto, uma "tópica mais primitiva", ao modo que defende Brusset (2006). A autora entende que, para Green, a ênfase seria na consideração de um "duplo limite":
Isso marca a diferença entre o Eu e o Outro, que por sua vez marca a diferença entre interno e externo, sobre a qual se apoia todo o restante da organização psíquica. Uma indiferenciação entre esses dois campos não impede o estabelecimento de tal organização, mas certamente influencia intimamente as vicissitudes dessa organização, especialmente no que tange ao trânsito entre os espaços que irão se formar - aspectos que serão justamente o foco de atenção de Green. [...] A inclusão da terceira tópica, então, se articula à proposta de transformação do Id numa zona de fronteira e o aparelho psíquico como a parte organizada do self, que inclui o não psíquico. (p. 148)
A autora esclarece que "os processos de clivagem e o não psíquico não são exclusividades de certas patologias, mas, sim, "predominantes e determinantes" de certas dinâmicas nas patologias dos casos-limite (p. 150, grifos meus).
Citando Dejours (2001, apud Tarelho, 2016), Junqueira explicita que a clivagem nos casos-limite pode se dar por um acidente da sedução, por um excesso a que o adulto submete a criança, produzindo um transbordamento ou mesmo um desmantelamento do Eu (trauma).
De acordo com Laplanche (2003), a autora destaca que a clivagem pode se fazer a partir de uma "'ausência ou escassez da presença do objeto que satisfaça o investimento pulsional do bebê" (p. 151), e não de uma defesa egoica, ocasionando a ausência de associações de objeto e de representação-coisa, elementos de entrada da pulsão no psiquismo.
A conclusão de Junqueira sobre a etiologia das patologias-limite é que há uma fixação precoce no narcisismo primário, sendo assim, boa parte da pulsão nunca se tornou objetal e não se libidinizou nos encontros com os objetos, constituindo um represamento da pulsão sem objeto ou pulsão de morte.
Fora do psiquismo, a pulsão não ligada exerce pressão de desligamento sobre o aparelho psíquico. "Psiquismo compreendido aqui como a parte organizada do self (si mesmo) com vistas a dar lugar à tensão pulsional pela via do objeto, como nos ensina Green." (p. 157)
Seja por ausência ou funcionamento errático do objeto primário, que impede a formação de uma representação de objeto, seja pelo trauma de uma perda irrevogável e precoce, que expulsa do psiquismo, via clivagem, a representação de objeto, o que resta é a cota de afeto vivida como angústia e comumente evacuada pela via somática ou do ato.
Para Junqueira, a clínica com pacientes-limite deve seguir, primeiramente, pelo estabelecimento ou restabelecimento, conforme cada caso, dos limites do psiquismo, sobretudo o primeiro deles, a diferenciação entre o Eu e o não Eu. Antes disso, qualquer trabalho pela clássica "via di levare" se mostrará insuficiente, pois não há um Eu a ser revelado; melhor a "via de porre", com o analista exercendo o papel de suplente do objeto primário, criando com o paciente um par analítico, sustentado por um enquadre facilitador, potencial construtor de ligações onde antes havia a experiência do vazio (branco) ou de buracos negros.
As experiências com um novo objeto confiável (analista) restauram a função objetalizante da pulsão, contribuindo para um ganho na diferenciação entre o Eu e o não Eu, alteração tópica essencial que trará mudanças tanto na economia como na dinâmica psíquicas, restaurando, aos poucos, a trama simbolizante e a possibilidade de pensar. "Via di vivere" com o paciente no enquadre seguro de um espaço potencial.
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ano - Nº 6 - 2024publicação: 12-12-2024 |
ABRAM, J. (1996). A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
CANDI, T. S. O trabalho do negativo em André Green: do que se trata? Revista Brasileira de Psicanálise, v. 46, n. 1, 2012.
GREEN, A. A mãe morta. In: Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Editora Escuta,1988
_______ O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artmed, 2010.
WINNICOTT, D. W. (1971). O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu, 2019.