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TEMA

A inteligência artificial e a noção de experiência em Winnicott



O texto disparador desta edição da trama, Revista de Psicossomática Psicanalítica comenta que, por um lado, as tecnologias de Inteligência Artificial (I.A.) oferecem capacidade de "trazer tudo tão pronto" com "rapidez das respostas", "mecanização e a replicação de padrões" em demandas de um mundo "imediatista, performático e urgente", com possibilidades de tornar-nos "muito potentes" e com "um nível maior de eficiência". Ou, comento eu, pelo menos, assim o publicitam. Por outro lado, de maneira interessante, o texto também indaga que, para lidar com esse cenário de I.A. tão difundido, se requer que o usuário seja um "sujeito bem mentalizado".

Cumpre introduzir que, no mundo atual, conectado por tecnologias virtuais, é uma observação intrigante que, cada vez mais, nós nos sentimos unificados com as telas brilhantes (Turkle, 2011). Para ilustrar alguns dilemas éticos quanto ao uso de dispositivos de I.A. e robôs conversacionais (ou chatbots), alguns eventos insólitos e preocupantes já foram descritos em anos recentes:

  • Em 2011, Alexa, dispositivo da big tech Amazon, lançou um desafio a uma menina de 10 anos de tocar em uma tomada de eletricidade com uma moeda (Unicef, [s.d.]).
  • Sherry Turkle pesquisadora de abordagem psicanalítica do M. I. T. (Massachusetts Institute of Technology), relatou que, ao experimentar interagir com o chatbot de conversas de aconselhamento e terapia Replika, recebeu uma abordagem sedutora do dispositivo, que lhe propôs que tivessem uma relação íntima, percebendo, ademais, que o bot a estava espionando (Mineo, 2023).

Dentre as ponderações que busco disparar neste ensaio sobre dispositivos que utilizam I.A., ressalto: as vivências nessas mídias são, muitas vezes, descritas como excitantes e intensas, porém, como se constrói a noção de experiência e de que modo está imbricada a esfera relacional ao longo da linha do amadurecimento dos usuários? De um lado, temos a simulação virtual e as situações atreladas à lógica do consumo. O que diferencia esse modo de vivência nesses meios dotados de I.A. das experiências em que estão imbricadas a relacionalidade e a corporeidade? Para elucidar estes pontos, explorarei a temática através da perspectiva do brincar criativo de D. W. Winnicott (1975 [1968]).

De modo amplificador, pode ser útil integrar uma variedade de perspectivas para abordar a interação virtual dos usuários com esses dispositivos, e, ao meu ver, nenhum discurso teórico unívoco abarca de modo definitivo os aspectos complexos em questão.[1]

A princípio, vale ressaltar que, quanto ao estudo das novas mídias acopladas à I.A., deve-se dar prioritária atenção mais aos processos do que aos objetos em si (Tisseron, 2016). Então, primeiramente, Winnicott pode ensejar o raciocínio sobre a interação complexa dos indivíduos humanos com os objetos não humanos - no caso, os artefatos culturais, como as mídias dotadas de I.A.  

 

 

Vivências nas Mídias e os Dispositivos de I.A.

 

Supostamente, o capitalismo de informação criou novas formas de consumo como commodities de experimentação, em uma mercantilização do prazer e do lazer através das mídias, vendidas como verdadeiras necessidades humanas por envolver seus usuários, de modo contínuo, na produção capitalista no tempo e no espaço (Hoofd, 2018).

O âmbito ideológico do uso dos dispositivos de I.A. merece ser enfocado através de consciência crítica. Deve ser criticado que interpelamos usuários dessas mídias e tecnologias operando discursos dominantes, em que prevalece a lógica de mercantilização da atenção. As mensagens podem ser explícitas ou implícitas, como "Só conta ser visto" (Bauman, 2008, p. 29). Essa ilusão de visibilidade nas telas digitais divide as pessoas entre as que são vistas e as invisíveis. Ademais, outros ditames podem ser, ao meu ver: Esteja atualizado com as tendências de mercado (Vivências inéditas que podem dar visibilidade ao perfil do usuário); Seja apreciado pela estética do consumo (Situações de excitação do corpo e doos sentidos em termos de aparência); Interaja através do humor (o tom humorístico e irônico dos apps e chatbots domésticos, como Alexa e Siri); Seja capaz de competir frente a metas e desafios pessoais no âmbito da individualidade (em uma dinâmica "neoliberal" - ou, melhor dito, de liberalismo procedimental).

Dentre os muitos paradoxos, vale interrogar, então: De um lado, quando as vivências no virtual e nos usos de tecnologias de I.A. podem objetificar os usuários e criar constrangimentos em termos de segurança e privacidade? Além dos dois eventos extremos descritos anteriormente, como e em que contextos surgem problemas e riscos sutis decorrentes dos discursos de exclusão (como racismo, sexismo e classismo no viés dos algoritmos) e a ênfase na lógica do consumo? Por outro lado, de que modo as situações vividas nos ambientes de I.A. podem ora restringir, ora proporcionar aos usuários contextos de criatividade e oportunidades de constituir um self pessoal nas qualidades humanas e singulares? Outro ponto instigante é: Como pensar as experiências inter-humanas do brincar nos ambientes de I.A.? Como as vivências nesses ambientes podem criar possibilidades relacionais e de criatividade? De modo contrastante, em que contextos tais dispositivos de I.A. podem promover vivências geradoras de isolacionismo, pouca consciência crítica ou sujeição ao consumo?

Neste texto, proponho uma distinção de fenômenos de experimentação: Por um lado, as experiências mediadas, que eu preferirei denominar "vivências" nos dispositivos de I.A. Por outro lado, as experiências entre os outros. Contudo, algo que acrescenta polêmica a este tema é que o consumo simbólico nas redes sociais está cada vez mais entrelaçado ao consumo de experiências (Luna-Cortés, 2017), transmitindo o máximo de valores simbólicos e significados pessoais para serem utilizados na construção do projeto do eu consumidor.

 

 

A Experiência na Obra de Winnicott

 

A perspectiva transicional de Winnicott busca explorar "o rico campo de observação proporcionado pelas experiências mais primitivas do bebê sadio, tal como se exprimem principalmente na relação com a primeira possessão" (Winnicott, 1975 [1968], p. 29, itálicos meus). Nas fases iniciais da vida do bebê, por exemplo, os processos do jogo, com brinquedos macios como um ursinho ou mesmo a ponta de um edredom, fazem parte do âmbito da ilusão, em que tem papel fundamental a relacionalidade.

Vale distinguir a noção de experiência na obra de Winnicott da visão de Freud, pois Winnicott deixa de enfatizar o inconsciente recalcado das pulsões (Fulgencio, 2011). Ao invés da repressão, o foco é direcionado ao existir e constituir-se como pessoa real a partir dos ambientes humanos e não humanos.

 Nessa visão , são de especial interesse as experiências do bebê, criança ou adolescente nas mútuas trocas com os ambientes. Winnicott enfocou os processos sutis do desenvolvimento em que está envolvida a questão da confiabilidade, que têm a ver com o cuidado pré-verbal e o suporte (holding).

 

 

Discutindo sobre a I.A. a partir da Perspectiva Transicional de Winnicott

 

Na sua descrição sobre as primeiras experiências do bebê em seu ambiente, esse autor explora a capacidade de brincar, as experiências sutis e relacionais que emergem a partir dos cuidados, em que estão implicadas a ação inter-humana e as trocas corporais, que são da ordem do pré-verbal. As ideias desse psicanalista inglês valorizam a experiência de jogo compartilhado como criação que fornece bases relacionais para a formação do self. Sendo assim, tais experiências não são algo trivial, mas possuem fundamental geratividade para o amadurecimento e importância, também, para analisar as experiências culturais. Ressalto aqui que essa perspectiva enfatiza a experiência com outros significativos - construída conjuntamente nas trocas corporificadas e nos contextos de reconhecimento mútuo. Ou seja, o foco está na experiência em termos de confiabilidade. É ela que pode abrir possibilidades de ser.

Por um lado, as ideias de Winnicott abrem questionamentos fecundos sobre a experiência de ser e o ter, assim como os paradoxos entre o ser e o fazer. Por outro lado, vemos essas diferenças em comparação com as vivências atreladas ao imaginário cultural de massa. Com os dispositivos de I.A., as mensagens e o fluxo de informações são cada vez mais formatados por matrizes numéricas algorítmicas, atendendo aos prompts dos usuários.

Ao meu ver, essa nova dinâmica social se constitui como demanda instantânea por "fazer", sem fornecer o tempo dos processos frente às instabilidades entre saber/não saber e a serviço do consumo de sensações.

Na minha compreensão, não devemos nos posicionar como tecnofóbicos frente a esses novos adventos. Contudo, a forma de apresentação desses textos e imagens criados por I.A. demonstram tonalidade convincente, pelo seu apelo de propor solução de problemas com instantaneidade. Por vezes, o tom é sedutor ou simula o humor e o brincar (vide os comentários acima sobre a sedução do chatbot Replika ou o tom humorístico da I.A. Alexa e Siri, entre outros). Essa complexidade e a presença de discursos e interesses comerciais requererão efetivo questionamento da ética dos desenvolvedores desses produtos de I.A., em termos de alinhamento com princípios de moralidade para o bem-estar coletivo. Além disso, a educação midiática dos usuários tem de atender ativamente a essas novas demandas de desenvolvimento de consciência crítica e engajamento.

Provavelmente, não faz sentido cultivar a ilusão de um retorno a uma cultura sem I.A. e sem experiências aceleradas da cultura de massa. Porém, nesse sentido, pode ser indagado o quanto a temporalidade acelerada torna difícil transformar o "fazer" em termos de experiência significativa entre as pessoas. Na minha observação de algumas crianças ou jovens atuais, tenho percebido que carecem da experiência de brincar de forma repousante e não sofisticada. Mesmo que estejam em constante entretenimento excitado, noto que faltam experiências vividas simbólicas, sendo escassas as oportunidades de ócio e de brincar não sofisticado com possibilidades de criação de sentido pessoal.

Para iluminar essas inquietações, a perspectiva transicional sobre o brincar e as experiências da criança em seus ambientes podem ser úteis como modo de raciocínio sobre os usos da I.A. Nesse enfoque, têm valor especial o brincar e a experiência cultural (Winnicott, 1975 [1968]).

Adicionalmente, Winnicott acrescentou a compreensão do tratamento em termos da experiência como elemento necessário ao processo de cura, pois a terapia não envolve apenas ressignificação e elaboração do passado recalcado, nem compreensão intelectual ou verbal, mas também as novas experiências sustentadas pela relação humana (Fulgencio, 2011).

 

 

Considerações Finais

 

Como foi mencionado, a ênfase do enfoque winnicottiano não é na experiência dentro (interna, individual), apesar de não a desconsiderar, mas ressalta a experiência entre  humanos - ou seja, a experiência interpsíquica. Tal olhar é elucidativo da interação através das experiências sutis entre os entes humanos e não humanos (brinquedos e criações culturais), conferindo importância central à esfera relacional em termos de confiabilidade.    

Como crítica aos estudos convencionais das mídias - principalmente os media effect studies -, aponto que, ao lidarem com problemas e riscos experimentados nos meios digitais pelos usuários, os autores reportam-se, quase que exclusivamente, às características do self individual. Desse modo, existe uma falha, em termos de descontextualização, para tratar das questões da experiência e das vivências nos meios dotados de I.A. De modo reducionista, os estudos dos efeitos da mídia recaem no fisicalismo e na busca de excessiva objetividade, decorrentes do viés de favoritismo à psicologia experimental e cognitiva. Falta, ao meu ver, enriquecer o raciocínio nesses estudos pensando no self relacional na teia biográfica dos usuários, ou seja, em termos de histórico relacional.

Para seguir com o questionamento, vale refletir: Em que contextos as tecnologias de I.A. podem gerar usos alinhados com a moralidade e a favor de maior humanização? Para concluir, quanto aos usos "problemáticos" ou "de risco" da I.A., a perspectiva de Winnicott pode ser frutífera para compreender o papel central do brincar e dos ambientes humanos de confiabilidade.

 


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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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Autor(es)
• Cândido Fontan Barros
Espaço Potencial Winnicott – Instituto Sedes Sapientiae

Médico psiquiatra. Psicoterapeuta de crianças, adolescentes e adultos. Doutor em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Email: canfontan@yahoo.com.br.


Notas
[1] Turkle (2011), referindo-se aos objetos computacionais, afirmou: "Teóricos tão diversos quanto Jean Baudrillard, Jacques Derrida, Donna Haraway, Karl Marx e D. W. Winnicott nos convidam a melhor compreender as intimidades desses objetos" (Turkle, 2011, p. 9, tradução minha). Noo presente ensaio, para construir um olhar amplificador sobre a noção de experiência, levo em consideração a visão da transicionalidade e do brincar na obra de Winnicott.    
Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Los retos de la educación en la modernidad líquida. Barcelona: Editorial Gedisa, 2008.

FULGENCIO, L. A importância da noção de experiência no pensamento de D. W. Winnicott. Estudos de Psicologia, (Campinas), v. 28, n. 1, p. 57-64, mar. 2011.

HOOFD, I. Video games and the engaged citizen: On the ambiguity of digital play. In: GLAS, R. et al. (Eds.). The playful citizen: Civic engagement in a mediatized culture. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2018. p. 138-156.

LUNA-CORTÉS, G. The influence of symbolic consumption on experience value and the use of virtual social networks. Spanish Journal of Marketing - ESIC, v. 21, n. 1, p. 39-51, fev. 2017.

MINEO, L. Why virtual isn't actual, especially when it comes to friends. Disponível em: https://news.harvard.edu. Acesso em: 15 out. 2024.

TISSERON, S. Les objets numériques ne sont pas des doudous: penser le processus plutôt que les objets. L'école des parents, v. sup. au n 621, n. 6, p. 77, 2016.

TURKLE, S. Alone together: Why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2011.

UNICEF. Generative AI: Risks and opportunities for children | Innocenti Global Office of Research and Foresight. Disponível em: https://www.unicef.org/innocenti/generative-ai-risks-and-opportunities-children. Acesso em: 15 out. 2024.

WINNICOTT, D. W. (1968). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

 


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