ARTIGOS

Entre tempos


Between times
Flávia Zarif

RESUMO
Entre os diferentes papéis de filha, esposa e mãe, há um encontro possível e quase inevitável entre os tempos de estar e elaborar essas construções, que envolvem relações íntimas e, muitas vezes, angustiantes consigo mesma e com o outro. A obra The feeding, de Louise Bourgeois, juntamente com os relatos sobre ela aparecem como referência principal para pensar a experiência da maternidade em um sentido geral e singular, passando por várias camadas de identificação e de estranheza. A articulação entre o Eu e o Outro no decorrer do texto evoca rememorações e reflexões de vivências pessoais no corpo e no psiquismo da autora.

Palavras-chave: Maternidade, Sujeito, Outro, Angústia, Louise Bourgeois.

ABSTRACT
Between the different roles of daughter, wife and mother, there is a possible and almost inevitable encounter between the times of being and developing these constructions that involve intimate and often distressing relationships with oneself and with others. The work The feeding, by Louise Bourgeois, together with the reports about it appear as the main reference for thinking about the experience of motherhood in a general and singular sense, going through several layers of identification and strangeness. The articulation of Self and the Other throughout the text evokes recollections and reflections of personal experiences in the author's body and psyche.

Keywords: Maternity, Subject, Other, Anguish, Louise Bourgeois.


 

 The feeding [A alimentação], de Louise Bourgeois, 2008.

 

 

Sobre Louise e sua arte

 

Louise Bourgeois nasceu em Paris, em dezembro de 1911. Estudou Matemática e Filosofia na Sorbonne antes de começar a estudar Arte, em diversas escolas e ateliês, depois da morte de sua mãe, em 1932. Mudou-se para Nova York após casar-se com o historiador de arte Robert Goldwater, que conheceu em 1938 e com quem teve três filhos em quatro anos. Chegando a Nova York, entrou para a Art Students League e concentrou-se na produção de gravura e pintura. Bourgeois construiu uma carreira de quase 75 anos e morreu em 2010, aos 98 anos.

Imersa em sua história de vida, nas diversas funções que ocupava entre os papéis de filha, esposa e mãe, Louise buscava, em suas repetições temáticas no gesto artístico, uma urgente expressão de si mesma na tentativa de elaboração de suas relações mais íntimas, que eram propulsoras de suas angústias. Sua arte circulava entre as pessoas que habitavam o seu universo, a sua vida e o que de fato pertencia a ela como uma parte do que genuinamente era ou podia ser. A seguir, reunimos alguns relatos, respectivamente sobre o trabalho da artista e sobre a temática "maternidade e família", que envolve a obra escolhida, além de uma fala de Bourgeois em relação à temática da obra:

 

Embora o trabalho de Louise Bourgeois assuma muitas formas, passando do representacional ao abstrato, a sua motivação permaneceu notavelmente consistente ao longo da sua longa vida. Para ela, a arte servia como meio, ferramenta e, finalmente, disse ela, "garantia de sanidade". Os motivos surgiram no processo de controlar suas fortes emoções e, por fim, tornaram-se metáforas visuais para preocupações e lutas específicas. (MOMA, 2008a)

 

Entre os títulos mais simbólicos de Louise Bourgeois está One and Others, referindo-se a uma preocupação com as relações pessoais, que motivou grande parte da sua arte. Ela lutava constantemente com a necessidade de apegos, mas sentia dificuldade e ambivalência ao lidar com as pessoas ao seu redor, principalmente seus pais, irmãos, marido e filhos.

 

"Tenho três quadros de referência... minha mãe e meu pai... minha própria experiência... e o quadro de referência de meus filhos. Os três estão presos juntos." (MOMA, 2008b)

 

 

A escolha do tema

A escolha da obra The feeding para o desenvolvimento deste trabalho tem a ver com o tema da experiência da maternidade que a obra me faz revisitar, passando por várias camadas de identificação e de estranheza. Pensar sobre ser filha e tornar-se mãe, duas funções aprendidas e não naturais que se entrelaçam e se distanciam pelos anos que se passam entre a inauguração de cada uma, faz com que uma certa angústia que cada posição ocupa na minha constituição emerja e grite, como se precisasse ser apaziguada através do uso de palavras para tentar conter, ou melhor, nomear esse grito abafado, bem guardado, quase secreto que é vivenciado solitariamente por cada mãe e filho ou filha imersos nessa relação inquietante, a princípio a dois, mas, ao olhar mais de perto, permeada por um número muito maior de figuras de referências.

 

A inauguração de uma função estranha

 

Ao deparar com a obra de Bourgeois, ora me penso mãe, ora me penso filha, ora me vejo alimentando, ora me vejo sendo alimentada. Vejo-me nos dois lugares ao mesmo tempo, e isso me causa uma sensação estranha de constituir e ser constituída sob diferentes condições em momentos diferentes, que me levam a retornar emocionalmente para as mesmas condições vivenciadas, como um retorno do mesmo, de modo diferente, do outro lado. Segundo Freud, o constante retorno do mesmo pode ter a ver com a "identificação com uma outra pessoa, de modo a equivocar-se quanto ao próprio Eu no lugar dele" (2010 [1919], p. 351 e 354), e esse fator de repetição do mesmo aparece "como fonte do sentimento inquietante" (Freud, 2010 [1919], p. 354).

Talvez essa estranheza de sentir-se em dois lugares ao mesmo tempo nos convoque a rememorar inconscientemente algo vivido outrora, experienciado no corpo, em um projeto de eu distante ainda a se constituir. Algo que se apresenta como familiar e infamiliar, que é conhecido e estranho, próximo e distante. Esse algo que retorna cindido de representação teria a ver com um "afeto de um impulso emocional [...] transformado em angústia pela repressão [...] algo há muito familiar à psique que apenas mediante o processo da repressão alheou-se dela" (Freud, 2010 [1919], p. 360)?

Se seguirmos nesse caminho da angústia materna sem representação simbólica, podemos pensar no termo "Unheimliche Mutter", que significa "o mesmo repetido em dois olhares que formam apenas um, em duas direções equivalentes" (Zygouris, 1995, p. 48). A união de dois momentos em um olhar (ser filha e tornar-se mãe) talvez cause esse estranhamento do encontro do novo e do velho, da vivência no corpo e da vivência na dimensão simbólica. Seria essa fusão um segundo tempo, um a posteriori da inauguração de um sujeito a partir de duas funções que se relacionam? 

Ter sido filha e ser mãe marcam a constituição de um outro a partir da própria constituição, que também foi proporcionada por um outro olhar refletido no meu. Essa parece uma tarefa/função no mínimo desafiadora, que parte de uma simbiose para uma diferenciação. Parece que há uma tendência necessária de repetir esse processo de se sujeitar a uma função para ser/fazer um sujeito. Partir de um desamparo para amparar um outro que "sai" de dentro de mim, que se separa de mim, faz com que eu me perceba cindida e castrada em um momento em que é necessária a fusão. O que é possível dentro dessa condição de "duplo como um outro que reenvia àquele que olha a visão de si próprio não como uma imagem já vista, mas como um olhar que seria invertido. Ele é visto de onde ele próprio se vê" (Zygouris, 1995, p. 48)?

Será a maternidade um evento traumático para o indivíduo maternado e para o indivíduo a maternar? Que função é essa que desconheço desde o princípio e que me inquieta diante desse olhar para o meu próprio olhar em relação a um outro que rememora algo já vivido? Segundo Freud, "O inquietante [Unheimlich] é [...] o que foi outrora familiar [Heimlich], velho conhecido [...] é a marca da repressão" (2010 [1919], p. 365).

 

 

A constituição de um sujeito por um sujeito sujeitado

 

Um sujeito que foi sujeitado a um investimento libidinal de um outro para se constituir leva essa marca da fantasia de um dia ter sido um eu ideal para alguém. Se sujeitou ao desejo de um outro para depois poder se tornar sujeito. Segundo Freud, "O amor dos pais, comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido, que na sua transformação em amor objetal revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora" (2010 [1914], p. 37). Uma tentativa de retorno a esse ideal.

Pensar nesse lugar da fantasia de ter sido "tudo" para um outro e, como sujeito e mãe, fazer um investimento libidinal para que eu possa instaurar o "ser tudo" para alguém na fantasia do outro, para que ele possa se constituir, faz-me refletir sobre essas duas posições, de constituído e a se constituir, que se encontram no sujeito a sujeitar, mãe, e na interação mãe-bebê, em que há dois corpos que se relacionam, um já desejante e outro a ser um depositário de desejo do outro para, em algum momento, poder se desprender e desejar por si. Uma relação a princípio simbiótica, tão essencial a esse processo constituinte. É partindo dessa relação que acontece:

 

[...] a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe corpo outro que não ele mesmo - dimensão essencial do humano, que estrutura toda a sua vida e fantasia. (Lacan, 1986 [1953-1954], p. 109)

 

Então, como não repetir em ato e abrir espaço para o pensar sobre os outros que habitam em mim e poder me diferenciar? Segundo Lacan, "O inconsciente é o discurso do outro" (1986 [1953-1954], p. 117). Sendo assim, a revisitação desse lugar em que me constituí outrora, sem a dimensão simbólica que tenho hoje, traz a pergunta de como posso constituir um outro, fundir-me e depois me separar sem apagar as diferenças essenciais para que o outro possa ser outro e eu possa me sustentar nesse lugar do saber/não saber de mim sem me apoiar somente no reconhecimento de mim no outro? Zygouris fala sobre esta questão relacionando "o apagamento das diferenças, a catástrofe, a possibilidade de emergência do duplo" (1995, p. 49).

Para que eu vá em direção ao estranho, preciso ter me constituído, para poder viver isso com outras figuras, com um filho. Esse sentimento de angústia ao pensar em constituir um outro rememorando a própria constituição talvez se deva ao fato de "que o efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido quando a fronteira entre a fantasia e a realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico" (Freud, 2010 [1919], p. 364).

Diante desse rememorar da fronteira em ato, diferenciando-me novamente de um outro fusionado a mim, sou direcionada a essa ferida narcísica que foi instaurada em mim antes mesmo que eu pudesse saber de mim, inaugurando-a em um outro, que também não sabe de si. Para que este possa procurar no processo de reconhecimento de si um Eu diferente de um Outro.

Cabe à mãe o investimento de fundir, constituir, criar fronteira, cindir.

 

Conclusão

 

Seria quase um atropelo tentar concluir um desenvolvimento, uma articulação que se apresenta como embrionária; seria o mesmo que castrar antes de constituir. No princípio, é preciso investir para que haja algo possível ali. Deixar surgir como se pode, aceitar o que se apresenta e observar, dando um contorno ao que emerge no decorrer do seu caminho, talvez seja um jeito interessante de lidar com o que nos desperta algo estranho familiar. Segundo Lacan, "O que conta, quando se tenta elaborar uma experiência, não é tanto o que se compreende quanto o que não se compreende" (1986 [1953-1954], p. 101).

Será que na clínica psicanalítica, assim como na maternidade, para pensar a posição do sujeito, no caso, na transferência, é necessário ter estado nos dois lugares em tempos deferentes, para poder acessar esse lugar angustiante de um tempo só e então depois se diferenciar? Será que não se pode perceber simbolicamente o que está fora do registro de representações? Sendo assim, como seria possível avançar diante de si e diante do outro? Aproximar-se, sentir no corpo, distanciar-se, nomear seria uma forma? Entre os diferentes tempos, qual é o encontro possível?

Muitas perguntas, poucas respostas. Penso que assim podemos seguir, possibilitando que o novo se instaure no já constituído, que o vazio apareça no que aparentemente se apresenta como preenchido.

Finalizo meu pensamento com o recorte de um texto escrito no diário pessoal de Bourgeois, que representa algumas de suas inquietações:

 

[...] onde estou [?] procuro freneticamente um espelho, tenho as pinças mas não consigo me enxergar, estou perdida finalmente, coloco a mão por trás da lâmpada vermelha e vejo uma minúscula figura refletida nela e me sinto melhor, ainda existo, temia que estivesse perdida, Desaparecida, invisível, ufa! que medo. [...] Não quero esquecer Louise de novo. Ela é tudo o que tenho. (Bourgeois, 2011, p. 9) 


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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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Autor(es)
• Flávia Zarif
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

 Psicóloga. Psicanalista em formação pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: flafz@hotmail.com.

Referências bibliográficas

BOURGEOIS, L. Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido. Tradução de Izabel Murat Burbridge. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2011. 2 vols.

FREUD, S. (1914). Introdução ao narcisismo. In: FREUD, S. (1914-1916). Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. Obras completas, volume 12. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, S. (1919). O inquietante. In: FREUD, S. (1917-1920). História de uma neurose infantil ["O homem dos lobos"], Além do princípio do prazer e outros textos. Obras completas, volume 14. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FUNDAÇÃO IBERÊ. Louise Bourgeois: uma vida que entrou para história da arte. 17 maio 2019. Disponível em: https://iberecamargo.org.br/. Acesso em: 4 dez. 2024.

LACAN, J. (1953-1954). O Seminário Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1986.

MOMA. The feeding. 2008. Disponível em: https://www.moma.org. Acesso em: set. 2023.

MOMA. 2008a. Disponível em: https://www.moma.org.Acesso em: set. 2023.

MOMA. 2008b. Disponível em: https://www.moma.org. Acesso em: set. 2023.

STORR, R. Intimate geometries: The art and life of Louise Bougeois. New York: The Monacelli Press, 2016.

ZYGOURIS, R. Ah! As belas lições! Tradução de Caterina Koltai. São Paulo: Escuta, 1995.

 

 


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