ARTIGOS

Contra a desautorização, o reconhecimento


Against disauthorization, recognition
Maria Elisa Pessoa Labaki

RESUMO
Esta reflexão pretende discorrer sobre expressões da recusa, como o ódio e a intolerância, que se têm manifestado no meio social contra transformações da subjetividade, no que tange às questões sexuais e de gênero, por meio de atos de exclusão, marginalização, agressão, humilhação e assassinato, tendo por alvo preferencial a população LGBTQIAPN+. Lança mão da noção de desautorização forjada por Luis Cláudio Figueiredo e destaca a ação de reconhecimento, no campo do social e da clínica psicanalítica, como forma de reparação do dano subjetivo.

Palavras-chave: Ódio, Sexualidade, Gênero, Desautorização, Reconhecimento.

ABSTRACT
This reflection aims to discuss expressions of denial, such as hatred and intolerance, which have been manifested in the social environment against the transformations of subjectivity, in sexual and gender matters, through acts of exclusion, marginalization, aggression, humiliation and murder, choosing as preferential target the LGBTQIAPN+ population. It uses the notion of disauthorization forged by Luis Cláudio Figueiredo and highlights the action of recognition, in the social field as well as in the psychoanalytic clinic, as a way of repairing subjective damage.

Keywords: Hatred, Sexuality, Gender, Disauthorization, Recognition


Como psicanalista, sinto-me no dever de externalizar algumas das reflexões que tenho elaborado sobre a questão da diversidade sexual e da cidadania, com base na escuta privilegiada de uma multiplicidade de vozes que o ofício da clínica me proporciona. Por isso, a presente reflexão será conduzida por uma inspiração mais clínica - ainda que municiada por leituras e pela observação do cotidiano da cidade, com sua realidade plural de tipos, gêneros, estilos - e terá como cenário ou pano de fundo alguns aspectos sociais emergentes no campo da diversidade sexual na contemporaneidade. Pretendo, para isso, discorrer e refletir sobre expressões da recusa, como o ódio e a intolerância, que se têm manifestado no meio social através da exclusão, marginalização, agressão, humilhação e assassinato em reação às transformações da subjetividade, tendo por alvo preferencial a população LGBTQIAPN+. Escolhi para esta reflexão duas chaves que me têm sido muito úteis no exercício da clínica. Então, vejamos.

Neo-sexualidades, o inédito e a tolerância

A primeira delas foi cunhada por Joyce McDougall como neossexualidades, que, longe de um conceito, designa "um modo de escutar nossos analisandos, quando eles nos descrevem e exploram suas vidas sexuais" (1999, p. 20) carregadas de inovação e intensidade em relação aos investimentos envolvidos. Atentem que o prefixo neo- aqui não põe em destaque apenas a capacidade de inovar presente nas "novas" sexualidades emergentes, mas vai além e aponta para uma figura da ética da psicanálise. Diz respeito a uma forma de acolher, sem julgar, aspectos da sexualidade do analisando que possam parecer diferentes ou estranhos aos nossos olhos, compreendendo-os como parte de uma solução necessária à conservação de sua vida como um todo, assim como de seus investimentos eróticos. Sustenta o exercício de uma escuta aberta e receptiva ao que se mostra surpreendente, inédito, novo e autêntico, não se pautando pelo preconceito, nem se acomodando sobre teorizações genéricas de amplo espectro.

Aproximo tal abertura ao outro, contemplada na ética desta clínica, a uma condição próxima da curiosidade infantil. Nela, é desejável que a criança no analista possa existir e se deixar levar por uma certa ignorância operativa, quase ingênua, que saiba perguntar quando sabe que não sabe e por isso deseja conhecer, acreditando sem condição prévia que o sujeito ali tem sempre razão. Do ponto de vista da clínica, resulta em uma escuta mais criativa e sensível aos aspectos da singularidade, assim como mais generosa e favorável às estratégias e medidas de sobrevivência encontradas pelo analisando. Do ponto de vista macro, essa posição ética poderá se prestar como modelo de tolerância ao que se apresenta como inédito e singular, ampliando o guarda-chuva social, ao abrigo do qual será permitida uma multiplicidade de cores, corpos e sexos. Seria utopia?

Novas complexidades, entrelaçamentos e fragmentações 

Desde a fundação da psicanálise com Freud, que concebeu a sexualidade infantil com seu polimorfismo e polissemia, o campo de pesquisas e os esforços de teorização sobre a diversidade sexual têm se desenvolvido rapidamente, na mesma velocidade com que estão se dando as transformações de comportamento nesse campo. Assim, na interface entre sociologia e psicanálise, as teorizações sobre gênero avançaram muito. Inicialmente com Stoller, que fez uma distinção radical entre sexo biológico e gênero, definindo o primeiro enquanto "diferença sexual inscrita no corpo (macho-fêmea)" e gênero como o correspondente das "significações atribuídas pela sociedade (masculino-feminino)" (Alonso, 2016, p. 17), até as mais recentes concepções de Judith Butler, para quem as identidades de gênero não existem enquanto substâncias ontológicas, nem tampouco existem as categorias binárias de homem-mulher, sendo o gênero uma criação discursiva que depende de enunciação e/ou repetição em um continuum de ações comportamentais públicas, que por sua vez irão, pouco a pouco, materializar e sedimentar determinadas verdades. "O gênero é uma reiteração de atos" (Porchat, 2014, p. 41) que cria uma unidade ficcional. "É nesse sentido que Buttler define como performativo qualquer discurso que possua efeitos ontológicos" (Silva Jr., 2016, p. 160).

De fato, temos assistido a uma efervescência de manifestações e experimentações variadas no campo da sexualidade e do gênero, que têm produzido, inclusive, efeitos em outros campos, como o da medicina e do direito. Todos sabem que hoje é possível mudar o nome e o gênero na carteira de identidade sem que para isso seja necessário proceder a cirurgia de alteração dos genitais, nem tampouco depender de um aval médico, ainda que se mantenha a indicação de se submeter a acompanhamento médico e psicológico.  Essa novidade significa não só que o sujeito não está mais obrigado perante a lei a se identificar com o mesmo gênero que lhe foi atribuído ao nascer, mas também que pode sentir-se e autodenominar-se homem, portando uma vagina, ou sentir-se e autodenominar-se mulher, portando um pênis. A autodenominação de gênero significa, de fato, uma grande conquista para as pessoas trans e para a sociedade como um todo, do ponto de vista comportamental. É um passo gigantesco e sem precedentes, que desmonta e subverte a ficção da unidade composta por corpo anatômico, funções biológicas, comportamento e prazer. Trata-se de uma transformação que marca uma ruptura no discurso ocidental vigente sobre a sexualidade. 

Em certa ocasião, recebi para análise um adolescente que se autodenominava "gênero fluido". Quando estava com as amigas, pedia que seu nome fosse precedido do artigo definido "a" e, quando em companhia dos meninos, do "o". Relatava sentir atração sexual por garotas, mas muita ternura pelos rapazes. Era um moço bonito e delicado, com uma inteligência afiada, que apresentava orientação homossexual em relação ao objeto, já que desejava mulheres quando se identificava com elas e sentia amor pelos rapazes quando identificado a eles. Aqui, a experiência de identificação de gênero mostrou-se binária, com trânsito tanto pelo masculino quanto pelo feminino, e a orientação de objeto homossexual, circular entre dois polos.

Do ponto de vista da imagem de gênero, cada vez mais percebo estar ficando difícil querer identificar recorrendo às aparências. Outro dia, na entrada de uma peça de teatro, vi duas pessoas cujo gênero não consegui identificar. Tinham uma imagem andrógina: uma delas de corpo mais feminino, com rosto e indumentárias mais masculina. A outra, o contrário: apresentava um corpo masculino, com rosto e indumentárias femininas. Mas tudo dentro de um espectro de sutileza muito interessante, nada de mais, nada de menos. Imaginei que estivesse diante de pessoas para quem a dimensão de gênero não propaga expressões da estética tradicionalmente definidas nos últimos séculos, com seus nítidos contornos, através de comportamentos, feições, roupas, acessórios. Mas, afinal, que signos da cultura estão a emergir com esta inovação sexual e comportamental?

Licenças poéticas são bem-vindas. Lembro-me de uma resposta célebre de Caetano Veloso à pergunta de um repórter, que em sua argumentação afirmava, entre outras coisas, ser Caetano um homem branco, ao que Caetano respondeu, suspeitando: "Quem disse que eu sou homem? Quem disse que eu sou branco?" Mais do que uma simples provocação, a resposta do artista parece visionária, apontando para uma radicalização da linguagem do corpo em sua função de significante.

Alguns podem estar boquiabertos, sentir-se desentendidos ou até mesmo perturbados, mas é fato estar em xeque o padrão da heteronormatividade, bem como o modelo binário de identificação de gênero homem-mulher - tal como o conhecemos desde a queda da primazia do masculino com a Revolução Francesa. Hoje, combinados os atributos do sexo biológico, ou tipo de genitália, com as designações de gênero, orientação sexual e expressão performática, temos como resultado 50 ou mais variações de possíveis identidades. 

Para concluir esta parte: somos seres sociais, e nossa experiência é radicalmente intersubjetiva e dependente do outro, o que faz do preconceito e dos discursos de ódio uma arma que produz trauma à sociedade e cria falhas psíquicas nos que se sentem desqualificados pelos sistemas que conservam as tradições. Por isso, a condição de cidadania, para ser exercida como direito, depende de uma sociedade que escute e aceite o caráter inaugural, e muitas vezes disruptivo, daquilo que se apresenta como diferença. Não apenas referidas ao campo do sexual, mas também das diversidades entre religiões, raças, etnias, comportamentos, e por aí vai. Naturalmente, a única exceção à regra no que tange à sexualidade incide sobre predileções sexuais consideradas perversas, por não levarem em conta os direitos e desejos do outro, a saber: abuso sexual infantil, estupro, exibicionismo, voyeurismo e necrofilia, todas consideradas crimes no Ocidente.

Reconhecimento, ação reparatória

A segunda chave que escolhi para esta reflexão eu chamaria de ato de reconhecimento. Embora não se configure enquanto conceito da psicanálise, o reconhecimento tem se mostrado uma ferramenta bem útil para a clínica em geral. Especialmente com pessoas que apresentam um funcionamento psíquico regredido, em função de fragilidades e cisões do eu, tem se mostrado eficaz como cuidado e tratamento de marcas traumáticas que se enquistam na personalidade, não deixando o sujeito aderir ou acreditar em suas percepções, pensamentos e afetos. Nessas situações, sejam psicoses, casos-limite, neuroses graves ou desorganizações psicossomáticas, o analista se vê convocado a realizar atos de confirmação e validação a uma dada percepção que perdeu a "eficácia transitiva de um de seus elos" (Figueiredo, 2008, p. 59), tornando-se inapta a produzir sentidos e, por consequência, incapaz de substituir as tormentas do trauma por processos simbólicos. 

Nomeado por Freud (1927) como recusa do "destino da idéia" (p.305) da imagem da castração causadora de horror, no quadro do fetichismo, e chamado por Ferenczi (1992 [1933]) de desmentido, vou me deter nessa última versão, sugestiva para os argumentos que apresentarei a seguir.

No sentido etimológico do termo, desmentir é o mesmo que contradizer ou negar e caracteriza um ato que pode desmascarar aquilo que foi considerado uma fabulação. Trata-se de uma ação de caráter violento por parte do outro, que desqualifica e retira o valor de uma narrativa ou testemunho, desapropriando o sujeito de sua autoridade e consequente respeitabilidade, bem como negando a ele a prevalência de sua autoria. Em Ferenczi, o conceito de desmentido ganhou uma dimensão relacional e primordial no entendimento sobre o trauma, envolvendo partes que se relacionam em posições assimétricas, sendo uma mais fraca e vulnerável que a outra. Ferenczi estava interessado em desvendar as condições sob as quais se instalam os traumas infantis na vigência dos cuidados da criança pelo adulto. E descobriu que o maldito do trauma tem seu epicentro na reação de descaso ou desqualificação de um outro ao pedido de ajuda de uma criança, que, ao invés de socorro, recebe descrédito ou é considerada futilmente culpada pelo próprio sofrimento.

O conceito de desautorização, sugerido por Luis Cláudio Figueiredo (2008) e trabalhado por Kupermann (2017) como alternativa ao desmentido, parece-me que se aplica bem à nossa reflexão sobre o mecanismo pelo qual as forças repressivas e conservadoras submetem grupos e populações ao lugar de marginalidade, mantendo-os anulados ou em posição de coisa abjeta. Equivalente a uma ação de esvaziamento, a desautorização desfalca a percepção da "autoridade para ensejar outras percepções e outros processos psíquicos, vale dizer, (que a percepção) é mantida isolada do processo perceptivo e das suas conexões naturais com os processos mnêmicos e de simbolização" (Figueiredo, 2008, p. 60). Não metabolizadas e mantidas "quase-coisas", tais percepções sucumbem ao estado de desautorização em um inconsciente invalidado e apartado das redes de simbolização. Não deixam de ter seu significado, mas perdem importância, relevância, significância. Pois bem. Se transferido ao âmbito do coletivo e aplicado ao sofrimento de nossas minorias, ou maiorias, depende do contexto, tal anulação corresponderia a um processo de desalojamento social - no meu entendimento, análogo ao que Kupermann (2017) chamou de "desapropriação subjetiva" -, que delas roubaria o direito de viver e de ser tratado como cidadão comum. Seria isso pedir muito?

Com efeito, se a dor da agressão foi imposta ao sujeito por parte do outro, caberá a esse mesmo outro promover ações reparatórias. E temos tido notícias nesse sentido. A clínica do testemunho é um dos dispositivos de cura pelo social para a tragédia da ditadura. É a oferta de escuta e reconhecimento; é a validação do sofrimento e da dor, que está na base de recuperação da dignidade outrora devastada pelas forças perversas que sustentaram os mecanismos da tortura moral e física, assim como do assassinato. Trata-se de uma tentativa de restituir o pleno desenvolvimento da experiência subjetiva de cada um, corroída tantas vezes ao longo de nossa história, e de modo sutil, pelo poder que submete, violentando.

Por outro lado, temos também o que se conhece hoje por lugar de fala, que é um conceito forjado para sanar o déficit de reconhecimento a pessoas e coletivos tolhidos em seus direitos por questões de raça, classe ou gênero, tratando de tornar visível sua experiência. "Baseia-se em privilegiar a voz do sujeito que vive a dura realidade de ser mulher, transexual, negro ou pobre, entre outros, e é a direção política incontornável de quem se atreve a lutar pela democracia hoje" (Iaconelli, 2018). E porque amplifica a voz dos que foram tolhidos, apresenta-se como conceito inclusivo, isto é, a serviço do "reconhecimento e da valorização de expressões vindas dos sujeitos com experiência direta e vivencial nas questões identitárias" (Bosco, 2017, p. 28). Porém - e aqui acompanho Bosco em sua ressalva -, o caráter central do conceito lugar de fala no debate público, nos dias atuais, torna fundamental que uma forte vigilância esteja sempre em alerta para não cairmos no perigo de "responder a uma exclusão original com uma exclusão corretiva" (Vieira apud Bosco, 2017, p. 28), alijando do debate, muitas vezes, os aliados mais próximos, que comungam das causas, mas não da identidade. Refiro-me aos linchamentos, digitais ou na mídia escrita, contra posicionamentos que exprimem diferenças e que são, por isso, desqualificados e desencorajados a participar do debate. Afinal, não se corrige um erro repetindo-o.

Esta tensão entre participantes de um diálogo que tenham funções distintas, embora os mesmos objetivos, de certa forma também permeia os processos analíticos, já que o próprio analista depende do reconhecimento daquele que o procura para que se instaure a transferência possibilitadora do processo. No fundo, somos todos um pouco Blanche DuBois.[1] Dependemos, se não da bondade, pelo menos do olhar alheio.



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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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Autor(es)
• Maria Elisa Pessoa Labaki
Departamento de Psicossomática e de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica - São Paulo. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica, onde coordena o grupo de estudos sobre a obra de Sándor Ferenczi, e do Departamento de Psicanálise, ambos do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do curso de Psicanálise. Autora de Morte, Casa do Psicólogo, 2001 (Col. Clínica Psicanalítica). Coorganizadora de Psicanálise e Psicossomática, casos clínicos, construções, Escuta, 2015, e da coletânea Psicossoma V. Integração, desintegração e limites, Casa do Psicólogo, 2014. E-mail: mpessoa@uol.com.br

Notas


[1]  Referência à personagem ficcional de Tennessee Williams, na peça Um bonde chamado desejo, cuja frase final na referida obra é: "Eu sempre dependi da bondade de estranhos".

[2] Este texto foi apresentado no evento Diversidade sexual e cidadania, organizado pela diretoria do Instituto Sedes Sapientiae, no dia 7 de abril de 2018.

[3] Uma primeira versão foi publicada no Boletim On line, jornal digital dos membros do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, alunos e ex-alunos do curso de Psicanálise, n. 46, jun. 2018

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1927). Obras Completas. Vol.17: O fetichismo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: companhia das letras, 2014.

FIGUEIREDO, L. C. Elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2008.

IACONELLI, V. Lugar de escuta, lugar de fala. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 abr. 2018. Caderno Cotidiano.

KUPERMANN, D. Estilos do cuidado. A psicanálise e o traumático. São Paulo: Zagodoni, 2017.

MCDOUGALL, J. Teoria sexual e psicanálise. In: CECCARELLI, P. R. (Org.). Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 1999.

PORCHAT, P. Ato performático e desconstrução: o gênero em Judith Butler. In: AMBRA, P. S. E.; SILVA JR., N. (Orgs.). Histeria e gênero. São Paulo: nVersos, 2014.

SILVA JR., N. Diferença dos sexos, diferença sexual, gênero e inconsciente. In: ALONSO, S. et al. (Orgs.). Corpos, sexualidade, diversidade. São Paulo: Escuta, 2016.


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