EDITORIAL



Em 2024, vivemos em um cenário global marcado por profundas divisões e desafios que moldam nosso cotidiano. A sociedade atravessa um período de extrema polarização, em que as relações interpessoais e políticas se tornaram mais adversas, antagônicas e permeadas por sentimentos de ódio. A convivência agora se vê marcada por um intenso antagonismo, que reflete a fragmentação dos valores comuns.

Além disso, o mundo enfrenta um cenário de conflitos geopolíticos, com guerras e tensões em diversas regiões, resultando em uma crescente insegurança e sofrimento humano. A crise ambiental, cada vez mais iminente e devastadora, agrava ainda mais essa situação, com desastres naturais intensificados pelas mudanças climáticas, que afetam milhares de pessoas ao redor do planeta. A escassez de recursos, o aumento da desigualdade e a falta de ação efetiva para mitigar esses problemas criam um ambiente de incerteza e desesperança.

Nesse contexto desafiador, é um alento poder oferecer mais um número de trama, Revista de Psicossomática Psicanalítica, uma publicação que não só nos proporciona alimento intelectual, mas também abre novas perspectivas no campo do conhecimento, permitindo-nos refletir e ampliar nossa compreensão sobre as complexidades do ser humano e do mundo em que vivemos.

Iniciamos essa nova jornada com o artigo de Flávio Ferraz, que analisa como a clínica das psicopatologias não neuróticas fornece à teoria psicanalítica fundamentos para a montagem de um esquema que abrace a incidência da pulsão de morte no interior da tópica, com ênfase na perversão.

Maria Elisa Labaki, por sua vez, convida-nos a refletir sobre como expressões de recusa como o ódio e a intolerância têm se manifestado no meio social contra as transformações de subjetividade, no que tange às questões sexuais e de gênero. Para tanto, utiliza a noção de desautorização, destacando a ação de reconhecimento como forma de reparação do dano subjetivo.

Dando continuidade à nossa travessia, Lédice de Oliveira e Selma Cabral nos presenteiam com a compreensão dos impactos decorrentes da organização psicossomática de crianças e adolescentes a partir do contexto pandêmico da

Covid-19. Para desenvolver esse trabalho, foram analisados 11 artigos científicos publicados entre os anos de 2020 e 2022, e todos evidenciaram sequelas emocionais da pandemia em crianças e adolescentes.

Três artigos ilustram a importância da obra de Sándor Ferenczi para a compreensão da contemporaneidade. A partir da saída do Reino Unido da União Europeia e da retirada dos Estados Unidos do acordo de Paris, Raul França discorre a respeito de como o desmentido de suas responsabilidades diante de guerras, prejuízos ao meio ambiente e desigualdades nos leva a Ferenczi e sua elaboração teórica sobre o trauma enquanto marca deixada por um excesso.

Roberta Fuganti, por sua vez, analisa a complexidade da maternidade em contexto de vulnerabilidade social, buscando entender, a partir da teoria do trauma de Sándor Ferenczi, como os discursos sociais moldam a percepção da maternidade e afetam a realidade das mães.

Já Letícia Gonçalves da Silva nos convoca a refletir sobre a clínica psicossomática com pessoas negras. Com base em seus estudos sobre a psicossomática psicanalítica, a autora propõe uma costura entre os estudos do psicólogo Lucas Veiga sobre a psicologia preta, a clínica do sentir com de Ferenczi e as ferramentas artísticas, como a poesia, no atendimento de pessoas negras, tecendo conexão com os processos de nomeação, acolhimento, simbolização, (re)integração e (re)ligação de afetos.

Continuando nossa trajetória, Auro Lescher e Roberta Arruda percorrem a medicina, a psicanálise e a filosofia, a fim de aquecer um debate acerca dos riscos atuais de adoecimento na adolescência, seja de jovens em situação de rua, seja de outros acometidos pelas mais diversas formas de sofrimento, influenciados por um excesso de virtualidade. Reforça-se a necessidade da ampliação de políticas públicas transdisciplinares e intersetoriais.

Enio Mello, por sua vez, discute a desorganização psicomotora em um adolescente à luz do conceito de metábola na perspectiva da "clínica psicossomática psicanalítica corpo e voz", em que os sintomas corporais e vocais são vistos como fenômenos multidimensionais.

Já Flávia Zarif demonstra como a obra The feeding, de Louise Bourgeois, e seus relatos sobre ela aparecem como referência principal para pensar a experiência da maternidade, passando por várias camadas de identificação e estranheza. A articulação entre o Eu e o Outro evoca rememoração e reflexões de vivências pessoais no corpo e no psiquismo da autora.

Encerrando a seção Artigos, Maristela Ferreira discute que os trabalhos seminais de Freud sobre as neuroses atuais e a histeria proporcionam o desenvolvimento de teorias psicossomáticas e a compreensão de como sintomas no corpo podem estar relacionados à história traumática do sujeito. A partir das neuroses atuais, Freud considera a possibilidade de o excesso pulsional somático transformar-se em doença orgânica, desvinculada de reminiscências, fantasias ou sonhos.

Na seção Quimeras, apresentamos três trabalhos sensíveis e instigantes. Iniciamos com o belo poema de Helly Aguida, passamos para o artigo de Katarina Kehrle Bradley, que, a partir de um conto fictício, conjuga literatura e psicanálise, abordando temas como paranoia e ciúme, e finalizamos com um conto alentador de Andrea Costa.

Na seção Ensaios, temos dois textos profundos em seu desenvolvimento de ideias. Rubens Volich analisa a função articuladora das dinâmicas hipocondríacas com a sexualidade, no narcisismo e em diferentes quadros clínicos, tanto nas neuroses atuais quanto nas psiconeuroses, apresentando novas hipóteses sobre essas questões. Já Vera Zimmermann, com base na clínica com crianças que apresentam dificuldade de aprendizagem e/ou hiperatividade, discute as queixas que não se enquadram na etiologia neurológica, na psicose ou na neurose, buscando respostas na teoria psicanalítica de Silvia Bleichmar, em suas investigações a respeito da constituição inicial do psiquismo.

Na seção Monografia, Cristina Goto-Oyadomari aborda aspectos de envelhecimento, luto e demência, explorando questões psicológicas e psicanalíticas relacionadas a esse tema e discutindo a concepção de envelhecimento como um processo contínuo de transformação ao longo da vida, influenciado pelo ambiente, o contexto sociocultural e as ideias interpessoais. Destaca, ainda, a importância da autoimagem na terceira idade, que continua a depender da percepção dos outros. O texto abarca, também, as semelhanças entre o trabalho do luto e o brincar na infância.

Na seção Ágora, Paulo Beer e Cândido Barros desenvolvem suas reflexões a partir da seguinte indagação: pensando em um mundo cada vez mais imediatista, performático e urgente, saberemos utilizar a Inteligência  Artificial de uma maneira saudável e sem impacto no viver criativo? Além disso, pensando na constituição do sujeito, o uso de inteligências artificiais como facilitador de tarefas e solução de problemas pode caracterizar-se como uma nova forma de funcionamento mental ou o fato de significantes reflexões trazerem tudo pronto acaba por comprometer a construção das estruturas psíquicas, ocasionando falhas importantes do desenvolvimento emocional dos sujeitos?

Por fim, na seção Resenhas, dois livros instigantes e importantes são apresentados por meio de seus conteúdos essenciais e atuais como ponto de partida para significativas reflexões: Impasses da alma, desafios do corpo, de Rubens Volich, e Metapsicologia dos limites, de Camila Junqueira, belamente resenhados, respectivamente, por Helly Aguida e Cristina Goto-Oyadomari.

Desejamos boa leitura a todos!


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ano - Nº 6 - 2024
publicação: 12-12-2024
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