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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    10 Setembro de 2009  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Para não tirar o corpo fora


SORAIA BENTO GORGATI (1)

Esse é o título do debate que aconteceu no evento Topografias do Corpo realizado no dia 11 de junho no SESC Avenida Paulista, dentro da programação do VIII Congresso de Transtornos Alimentares e Obesidade, promovido pelo Programa de Orientação e Assistência a Pacientes com Transtornos Alimentares - PROATA-UNIFESP.

O debate contou com a participação de Mario Pablo Fuks, que representou nosso Departamento como psicanalista e supervisor do Projeto Anorexia e Bulimia; Armando Barriguete Meléndez (psiquiatra e psicanalista do México); Regina Amadeu da Costa (nutricionista do PROATA); Marle Alvarenga (nutricionista do Grupo de Estudos em Nutrição e Transtornos Alimentares - GENTA); e a pesquisadora de moda Cristiane Mesquita (psicóloga e jornalista). O debate foi mediado por Luiz Alberto Hetem (vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria).

Fico muito satisfeita de poder oferecer ao Boletim uma degustação dessa discussão, que reuniu um time transdisciplinar com o objetivo de articular áreas que pensam as inquietantes questões das patologias alimentares. Espaço criativo de produção de idéias dentro de um congresso que apresentou tudo que há de mais atual em termos de tratamento e pesquisas da gênese dos transtornos alimentares. Espaço importantíssimo para dar voz a outros saberes que puderam e podem dialogar com a pesquisa científica. Espaço idealizado por Alessandra Sapoznik, que transita com maestria entre esses campos.

Por outro lado, a satisfação convive com a dificuldade de realizar a tarefa, porque propõe a minha escuta sobre as idéias apresentadas e seus desdobramentos e não um relato jornalístico conferindo créditos a cada um. Tentei fazer um trabalho de (re)construção que exigiu suportes teóricos para minha metabolização. Ficam aqui registradas as devidas ressalvas, principalmente para aqueles que estiveram presentes e que podem ter apreciado outros sabores do mesmo alimento. Essa é a prova da fecundidade desse encontro!

Muito mais que um confronto de idéias, havia uma experiência caleidoscópica que permitiu novos arranjos a partir de cada ponto de vista escolhido. Foi feito um trabalho de alinhavamento que atravessou a história do lugar do corpo na medicina e na psicanálise; a importância dos fatores culturais, em particular, a cultura midiática e suas apostas no papel do consumo desenfreado; a atualidade do pensamento de Foucault sobre a dominação dos corpos através da disciplina; o conceito de corpo-fetiche trabalhado por diversos autores contemporâneos, etc.

O debate aconteceu a partir de algumas perguntas dirigidas aos convidados. A primeira apontava para a provocação do título: "É possível (não) tirar o corpo fora?".

Falou-se do lugar do corpo na contemporaneidade. Esse corpo, por um lado, frágil, porque é desnudado, criticado, esticado, encolhido, é também um corpo fortalecido pela disciplina que incita à exploração da máxima eficiência. Os modos de expressão dessa mecânica manifestam-se através das regras para se alimentar bem e das renúncias necessárias para o êxito. Em outra perspectiva, discutiu-se o poder do corpo que é objetificado como nova forma de capital, fazendo girar uma riquíssima indústria da moda, da cosmética e da própria mídia.

A beleza é passível de apropriação, não vista como um dado natural. A crença na plasticidade dos corpos democratiza e ao mesmo tempo mercantiliza o acesso à beleza, o valor se dá pelo quanto se vai empreender de esforços para conquistar o corpo perfeito. Para Lipovetsky(2), o que havia de poético na beleza deu lugar "às imagens prescritivas, destinadas menos ao prazer estético que à estimulação do consumo, orientadas menos pela contemplação que pela ação corretora da aparência, eficiência e otimização".

A publicidade apropria-se do corpo da mulher aos pedaços, onde a imagem focada pelo zoom cria uma espécie de quebra-cabeças que ignora a harmonia do conjunto. Minhas pacientes que sofrem de anorexia descrevem sua imagem no espelho através dessa mesma lente, ampliando detalhes que ganham estatuto de todo. Miram-se sem a noção de um corpo unificado, passando a enxergar só uma barriga, ou uma celulite na coxa esquerda, ou uma dobrinha na cintura, etc. Uma jovem, depois de recorrer a uma intervenção estética, desnudou-se em frente ao espelho e fez fotos frontais, chapadas com a máxima aproximação da lente e tinha em mãos afinal, a "prova" do quanto ainda estava disforme. Pudera!

O poder do corpo está no controle do mesmo, só os corpos controlados têm poder. Na contramão, todo aquele que perde o controle sobre seu corpo é desqualificado e fica fora dos padrões valorados do nosso tempo. Vou direto à fonte e transcrevo as palavras de Foucault(3):

"O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tampouco a aprofundar a sua sujeição, mas à formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil e inversamente... A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis'".

Destaco aqui como as anoréxicas quebram paradigmas (para usar uma expressão tão em voga!). A submissão aparente aos rígidos padrões de uma estética da magreza, na realidade, aponta para uma não sujeição a uma ordem comum, mas especialmente, à sujeição a um disciplinador interno, obstinado, que justamente despreza a condição universal faltante do ser humano.

O corpo contemporâneo já não é mais o palco onde se encenam os conflitos e embates entre representações e afetos que inspiraram a criação da psicanálise através das manifestações nos corpos das histéricas. Atualmente, o corpo pode ser identificado como uma das causas do conflito psíquico, a representação do corpo desloca-se de uma manifestação exclusivamente inconsciente para uma vertente que também inclui o consciente e o visível.

Observa-se, na clínica, o investimento excessivo no corpo atuando de modo a esconder a fragilidade e a angústia do sujeito contemporâneo, como uma espécie de "recomposição narcísica identificatória", nas palavras de Mario Fuks, necessária para compensar a incapacidade de responder às demandas do mundo externo. O corpo da conversão histérica cede lugar, na atualidade, para o corpo recusado da anoréxica; da neurose em sua forma pura, para um além da neurose que esbarra ora na perversão, ora na psicose. Nesse sentido, na impossibilidade de lidar com a angústia de castração, a recusa incide sobre o corpo como um todo, proposto como corpo-fetiche.

Que essa excelente iniciativa germine e produza novos frutos, quem sabe por nossas próprias terras...
(1) Soraia Bento Gorgati é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
(2) Lipovetsky, G. A Terceira Mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.182.
(3) Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed.Vozes, 1986, p. 127.




 
 
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