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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    26 Setembro 2013  
 
 
O MUNDO, HOJE

RUPTURA CORPORAL E TRABALHO PSÍQUICO NO PARTO


THAIS GARRAFA[1]

Tudo que nasce é rebento
Gilberto Gil



No dia 9 de agosto, entrou em cartaz o filme O Renascimento do Parto[2], documentário produzido para divulgar as ideias defendidas pelo movimento que luta pelo chamado parto humanizado, que se opõe ao modo predominante de atuação da obstetrícia no Brasil. Para acompanhar o ponto de partida da discussão, basta lembrar que as estatísticas nacionais ultrapassam amplamente os 15% de cesarianas recomendados pela OMS – no Brasil, essa taxa chega a 37% na rede pública e ultrapassa 80% na rede privada (Ministério da Saúde, 2011). Em outro cenário, porém, a classe médica apóia-se em respeitável aparato tecno-científico para garantir aquilo que considera as condições adequadas para o parto seguro e, nessa trajetória, luta pela proibição de partos domiciliares; já conquistou, em alguns hospitais particulares de São Paulo, o impedimento à entrada de doulas[3].

Mas a disputa apresentada na mídia, levada aos cinemas e discutida nos conselhos de medicina chega aos consultórios dos psicanalistas por outras vias. Longe de discursos unívocos - como o médico e o militante -, o parto que se aproxima ou aquele que já aconteceu é, na maioria das vezes, abordado no divã com as tintas da angústia, ainda que, de acordo com as expectativas sociais, o dia do nascimento de um filho deva ser “o melhor dia da vida de uma mulher”. O que o imaginário social não admite, e somos convocados a escutar, é que esse dia é marcado por emoções contraditórias. Para inúmeras mulheres, pode ser especialmente difícil processar que o dia do nascimento de um filho é também o dia de uma experiência dissonante com a alegria extasiante dos primeiros encontros com o bebê. A essa dissonância resta o recalque.

Este ensaio traz esse recalcado ao centro do debate, a fim de iluminar a necessidade de escutar o trabalho psíquico que está envolvido na experiência de parir. Como veremos, esse trabalho intenso implica o corpo e presentifica alguns dos desafios que a maternidade coloca para a mulher.



O trabalho psíquico envolvido no parto


A cena pode ser montada das mais diferentes formas, da mulher que se identifica com uma leoa feroz à ocidental que, de cabelos escovados e unhas feitas, dirige-se a uma cirurgia programada. Roteiros e personagens divergem, mas algo inequivocamente semelhante acontece em um plano que a imagem não captura: em todo caso, a mulher que percebe que está prestes a parir é lançada em um trabalho psíquico específico – um trabalho psíquico de parto.

O trabalho de parto, para a medicina, é definido por parâmetros objetivos. Ocorre em estágios claramente marcados pela presença de sinais corporais verificáveis, como a dilatação do colo uterino ou a duração e o intervalo das contrações. A evolução desse processo é minuciosamente acompanhada pela equipe médica, a fim de assegurar os cuidados adequados à saúde da mãe e do bebê.

Chamo trabalho psíquico de parto algo que se processa de outro modo, muito mais silencioso, sem sinais padronizados ou etapas demarcadas. O trabalho psíquico que se impõe à mulher prestes a parir é singular e, como tal, pode ser mais ou menos árduo. Tem início quando a gestante percebe que chegou a hora, quando essa percepção se entranha no movimento pulsional e impõe ao psiquismo uma exigência de trabalho que implicará o processamento de uma intensa ruptura no corpo, como veremos adiante.

 



Ruptura corporal


Dissemos que as expectativas sociais não oferecem acolhimento ao desprazer envolvido na experiência do parto. Esse desprazer estaria justamente associado ao trabalho psíquico que se coloca em curso para a mulher pouco antes de o bebê nascer e que, diferentemente do trabalho de parto reconhecido pela medicina, não se encerra com o nascimento.

A ruptura corporal que o parto põe em jogo pode ser apreendida em três vias; para abordá-las, tomaremos os três registros propostos por Lacan (1953): real, imaginário e simbólico. Veremos como cada uma dessas rupturas se processa.

Em grande parte dos casos, é ao longo da gravidez que a mulher gesta sua disponibilidade para assumir o lugar materno para o bebê que espera. Nessa gestação, que nem sempre caminha par e passo com o crescimento da barriga, um universo de expectativas em relação à maternidade passa a envolver seu corpo para nele construir a disposição para oferecer-se àquele que está para chegar. Pode-se dizer, nesse sentido, que as roupinhas amorosamente preparadas para envolver o corpo do bebê também recobrem o corpo materno, à medida que constituem um imaginário sobre a maternidade capaz de fornecer um ponto de apoio para a intensa experiência subjetiva implicada nessa espera.

No parto, porém, essas expectativas se desarticulam, e o corpo que a mulher se preparava para oferecer ao filho é rompido. Em primeiro lugar, podemos localizar uma ruptura no corpo real. O rebento atravessa o corpo e desmonta o cenário previamente montado para sua chegada, pois o encontro com o organismo que é cortado para a cesariana ou com aquele que se abre, dilata e lacera para a passagem do bebê desvela a origem impensável da relação mãe-filho. Banhado a sangue e outros fluidos, o parto põe a anatomia da mulher em evidência.

Por isso, podemos reconhecer, na cena do parto, que não é apenas o encontro com o corpo real do bebê que irá impor um trabalho psíquico à mulher; é, antes, o encontro com o real de seu próprio corpo que trará as primeiras exigências. A ruptura que incide no real revela um corpo sem poesia, sem as cores do feminino ou da maternidade, no qual as marcas do parto irão se entranhar e insistirão como lembrança de que a separação dos corpos não ocorre sem ruptura na carne.

Podemos também falar de uma ruptura no corpo imaginário. O eu, que antes de tudo é um eu corporal (Freud, 1923, p. 41), sofrerá as incidências da mudança identitária advinda do nascimento do filho. A imagem do corpo, cuja instabilidade já se evidencia ao longo da gestação, acompanhará o súbito abalo no sentimento de si que o parto irá então coroar. Os contornos corporais se tornarão incertos e o reflexo no espelho, na melhor das hipóteses, oferecerá amparo apenas para fixar que algo está em processo. O trabalho psíquico envolvido no parto implica, pois, sustentar esse processo aberto pela falta do apoio oferecido pela imagem do corpo. Essa passagem é certamente mais intensa no nascimento do primeiro filho, quando se inaugura a posição de mãe, mas, em outras medidas, também comparece nos demais.

Há, enfim, a ruptura no corpo simbólico, a qual se processa no nascimento do bebê e faz com que o trabalho psíquico em questão extrapole os limites do parto. Essa ruptura é impulsionada pela necessidade de processar a intensidade que, subitamente, invade o psiquismo materno no instante de parir – algo geralmente apreendido como espanto, susto ou surpresa. Vejamos esse ponto.

De repente, o bebê nasce. De repente, após 40 semanas, longas esperas e todas as expectativas, o bebê nasce. De repente? A clínica nos convoca a escutar esse fator-surpresa nos mais diferentes relatos: dos trabalhos de parto mais demorados às cesarianas meticulosamente programadas, o momento do nascimento é acompanhado de uma sensação de que algo, de repente, se processou. “Eu já estava lá há tanto tempo, já estava fazendo tanta força; mas quando ele nasceu eu tomei um susto enorme, eu não esperava”; “De repente, quando eu vi, ela tava lá na minha frente, eu acho que é porque eu estava anestesiada e não sabia em que parte da cesárea o médico estava”. Deflagra-se a irremediável insuficiência de todas as mudanças corporais da gestação na preparação psíquica para a chegada do bebê.

Não é preciso ir muito longe para reconhecer o trabalho psíquico que tal fator surpresa impõe. Pathos, núcleo do traumático, o excesso que, subitamente, invade o aparelho e o desorganiza é também aquele que o funda e impõe a necessidade de produzir conexões que façam escoar mais lentamente a energia circulante. Há que se fabricar, portanto, um lugar psíquico que acolha a paixão que eclode na relação com o recém chegado. Um lugar que permita, em alguma medida, um escoamento paulatino e menos violento do excesso que, em última instância, irá se ancorar no corpo do bebê.

Ocorre que, tomado pela paixão que eclode no encontro com o recém-nascido, o psiquismo materno transborda, falha em oferecer anteparos simbólicos para conter o excesso que subitamente invade o aparelho. Graças a essa falha estrutural, essa ancoragem passa a ser encontrada no corpo do filho – ponto de apoio real, imaginário e simbólico para esse escoamento. Nesse processo, a dessemelhança vivida pelo sujeito entre a experiência de seu próprio corpo e o reconhecimento da imagem corporal desliza para um nível em que a divisão subjetiva se renova violentamente. Essa divisão, própria à constituição do simbólico, irá emergir em uma nova versão: se a vida até então parecia caber dentro de um corpo, agora a mulher terá que suportar a vida no corpo de outra pessoa. É claro que a vida que está lá, no corpo do bebê, não é propriedade da mãe. Mas o ponto é que a vida da mulher que se tornou mãe, de repente, explosivamente, passa a estar também ali, no corpo do filho, ancorada nele. O parto radicaliza esse descentramento irremediável.

Ser mãe é, portanto, viver fora de si. Daí a faceta enlouquecedora da maternidade e a consequente inauguração de um trabalho psíquico duradouro para sustentá-la. As angústias fundamentais da mãe, presentificadas no ato de parir, são da ordem dessa transformação explosiva.

Viver fora de si é a mais profunda das alegrias maternas, e também a mais profunda das angústias. Porque a vida se espalha, se multiplica, todas as possibilidades de satisfação na vida se ampliam. Mas a iminência da morte também se amplifica, assume proporções inimagináveis.

Pouco se fala do medo e da real possibilidade da morte de um filho. Quando contam de suas aflições com o corpo do recém nascido, as mulheres fazem piada de si. “Você não acredita, eu era do tipo que ia ver se estava respirando...”. Banalizam as primeiras manifestações dessa angústia. Apesar do pouco espaço aberto na cultura para se falar da dor, do luto ou do medo da morte, esse terror está ali, desde o parto. Pois como efeito do descentramento simbólico que a maternidade implica, há algo de impossível no luto de um filho. Um luto que não se completa porque algo da mãe de fato se perde no objeto, não retorna. Logo, a proposta freudiana de desidentificação com o objeto perdido, nesses casos, só pode se processar de forma incompleta.



O parto e a angústia materna


Uma aproximação com o trabalho psíquico implicado no parto revela a complexidade dos elementos em jogo e convida à escuta da imensa variedade de formas com que essas questões presentificam a angústia materna. Nesse sentido, tanto a medicina tradicional quanto a militância pela humanização do parto tendem ao estreitamento do campo em que tais elaborações poderiam ser ensaiadas, uma vez que, nos dois casos, lida-se com um objeto pré-concebido e não com a escuta de um sujeito implicado com a produção de um saber singular sobre aquilo que lhe escapa.

A angústia que se presentifica no parto, a medicina tomou para si; fez do parto um ato médico centrado na redução de riscos, dores e lesões; tomou a angústia que o acompanha como um medo que, justificadamente, decorre dos perigos à saúde da mulher e do bebê. De outro lado, como oposição, essa mesma angústia foi apropriada pelo movimento militante que luta pelo parto que se chamou humanizado: fazendo do parto um evento fisiológico e natural, entenderam a angústia que o acompanha como uma manifestação da espécie, um comportamento naturalmente selecionado por seu efeito de impulsionar as fêmeas a darem cria em refúgios de maior segurança.

A Psicanálise situa-se fora desse embate, pois seu discurso não se aproxima das referencias anatômicas que tomam o corpo como objeto do saber, nem das teorias igualmente biologizantes que reconhecem um corpo ecológico como sede de um saber instintivo sobre a natureza do parto (Iaconelli, 2012, p. 70). Nesse contexto, o que se torna evidente para a psicanálise é que parir não é patológico, um ato que deve ser apropriado pela medicina, nem natural, ato que deveria fluir como o curso das águas. Assim como não é doentia nem natural a divisão do sujeito e a angústia que lhe é intrínseca. O que não é apreensível em nenhum desses campos é que a ruptura que o parto põe em jogo situa-se justamente entre natureza e cultura. Nesse sentido, o trabalho psíquico envolvido na intensa experiência corporal implicada no parto revela que a angústia que o acompanha não decorre, a princípio, das práticas médicas do século XXI, do risco potencial à saúde da mãe e do bebê ou da memória instintiva que preserva a espécie. Em outra direção, reconhecemos que o corpo que se rompe e se transforma encena nossa divisão e a violência que a inaugura.



Referências Bibliográficas


Freud, S. (1923). “O Ego e o Id”. In: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.19 (p.13-83). Rio de Janeiro: Imago,1976.

Iaconelli, V. Mal-estar na maternidade: do Infanticídio à função materna. 2012. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

Lacan, J. “Função e campo da fala e da linguagem” (1966 [1953]). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Ministério da Saúde. Brasil registra aumento no número de cesáreas. 22/11/2011. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/noticia/3349/162/brasil-registra-aumento-no-numero-de-cesareas.html. Acesso em 30/06/2013.



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1 - Psicanalista, ex-aluna do Curso de Psicanálise, professora no COGEAE/PUC-SP e no CEP, supervisora no Instituto Fazendo História.
2 - http://www.youtube.com/watch?v=1zB-5ASFqm0
3 - Doula é uma assistente de parto que atua para proporcionar conforto físico e emocional à parturiente. De modo geral, sua presença está associada ao parto humanizado.




 
 
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