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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
O MUNDO, HOJE

RACISMO, DOMINAÇÃO E APROPRIAÇÃO SUBJETIVA


JOSÉ ATILIO BOMBANA [1]


Aconteceu no dia 25 de fevereiro de 2016, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o evento Racismo, dominação e apropriação subjetiva, promovido pelo Programa de Atendimento e Estudos de Somatização (PAES-UNIFESP) e articulado por Cristiane Curi Abud que, além de ser uma das coordenadoras desse Programa, é membro do Departamento de Psicanálise do Sedes. O encontro propôs-se a discutir a construção da subjetividade dos negros no Brasil, considerando as marcas da escravidão e de uma cultura de “branqueamento” da população, ainda que não explícita atualmente.

A primeira exposição foi de Ricardo Almeida Prado, que também coordena o Programa, além de ser ex-aluno do Curso de Psicanálise. Ele fez uma breve apresentação do PAES enquanto setor do Departamento de Psiquiatria dessa Universidade que se caracteriza por desenvolver atividades dentro de um referencial da psicossomática psicanalítica. Curiosamente esse programa surgiu a partir de um contingente de pacientes que não se encaixavam nos departamentos médicos da instituição e acabavam sendo encaminhados para o Departamento de Psiquiatria. Porém, mesmo nesse espaço, igualmente não conseguiam se inserir nos diferentes setores de atendimento; tratando-se enfim daqueles que de alguma forma eram discriminados pois “queixavam-se, mas de fato não tinham doenças”. Ao longo do tempo, na medida em que essa demanda foi escutada na sua especificidade, foram sendo estruturados atendimentos preferencialmente grupais e com uma forte tendência a oferecer atendimento psicoterápico, além de eventualmente também farmacológico.

Os pacientes que somatizam frequentemente apresentam características do funcionamento psíquico que dificultam, quando não impossibilitam, o uso das técnicas mais habituais na psicanálise – por exemplo, a associação livre e a interpretação –, em função de um psiquismo particular, por vezes caracterizado como “pensamento operatório”, com restrições da capacidade de fantasiar e de sonhar e com um pré-consciente precário. Isso levou a equipe do Programa a desenvolver modalidades de atendimento diferenciadas, incluindo a utilização de objetos mediadores, habitualmente artísticos (cinema, fotografia, música) na abordagem terapêutica, valendo-se do apelo que tais objetos fazem à sensorialidade desses pacientes, uma vez que funcionam melhor nesse registro do que no verbal. Foi num desses grupos – chamado Fotolinguagem – que um evento ocorrido chamou atenção dos participantes e despertou o tema do racismo.

Na segunda apresentação Luiza Sigulem, que participa do PAES e é aluna do Curso de Psicanálise, trouxe um texto elaborado em conjunto com Cristiane Abud intitulado A questão do racismo em um grupo de fotolinguagem. Esse grupo surgiu como uma das propostas terapêuticas do PAES, sendo uma modalidade psicoterápica que se utiliza de fotografias a partir das quais, além de ideias propostas pelas analistas em função daquele contexto, os pacientes formulam suas falas, trazem lembranças de suas histórias de vida, ensaiam associações, num estímulo ao mundo simbólico. Esse grupo, inicialmente, utilizava um conjunto de fotos francesas, já que o método foi desenvolvido por analistas franceses. Progressivamente foi ficando evidente a necessidade de se pensar num referencial mais próximo à população atendida e Luiza, que é fotógrafa, compôs um dossiê nacional, que possibilitou avanços claros no trabalho grupal.

Numa das sessões, aconteceu a situação antes mencionada: uma das integrantes conta que irá viajar para o exterior. Após algumas falas, a analista propõe a questão do que significa o estrangeiro para cada um, a partir da qual é sugerida a escolha de fotografias. Alguém escolhe uma foto de um homem negro dançando no carnaval. Outro componente do grupo, que também tem negros entre seus antepassados, diz: “...não sei se é um homem ou um macaco”. A fala impacta o grupo. Na verdade, a maioria dos componentes do grupo são migrantes, majoritariamente nordestinos, muitos com histórias de grande sofrimento passado. Discriminados pela origem, pela baixa escolaridade e pela cor da pele.

No decorrer do texto é apresentada a ideia de que “a experiência do estádio do espelho apresenta uma particularidade na criança negra: o fascínio que essa experiência produz é acompanhado, simultaneamente, por uma repulsa à imagem que o espelho virtualmente oferece, pois a criança negra reluta em aderir a essa imagem de si que não corresponde à imagem do desejo da mãe.” A ideia não é das autoras do texto, mas é conhecida de muitos.

Na terceira parte o psicanalista e professor da Universidade de Lyon Georges Gaillard apresentou o trabalho: Autorizado a viver? O infans, a confusão vida-morte e o trabalho de apropriação subjetiva. Ele inicia a partir do texto de Ferenczi, O filho mal recebido e sua pulsão de morte. Foca na ligação – precoce, arcaica – entre as forças de Eros e Thanatos, nestes primórdios do encontro entre a criança e o outro maternal, num momento em que, em seu estado precoce, com sua angústia inicial, a criança é extremamente dependente da presença de um "ser próximo". Existe um impacto essencial na maneira pela qual um sujeito vai ou não estar em condições de se apropriar de sua existência, a partir de uma configuração de acolhimento ou de rejeição. Quando o infans é “mal recebido” e encontra um ambiente maternal falho em sua função de “para-desinvestimento”, um ambiente maternal que não está em condições de retê-lo suficientemente no prazer do encontro, então se defronta com angústias potencialmente deletérias de aniquilamento e de esfacelamento.

O autor propõe um olhar pelo qual qualquer sujeito durante seu trajeto identificatório se verá às voltas com o trabalho de apropriação de sua vida, permeada por questões como abandonos, rejeição-recusa e influências. Lembra ainda que no registro da constituição das diferenças estruturais que repercute no fundamento das identificações, Pierre Fédida deu ênfase a outra diferença, entre "humano/não-humano". Quando esta humanidade é denegada, ficamos então às voltas com os abismos da violência, aquela que diz respeito à recusa da alteridade incluindo a recusa da vida. Este ponto traz subsídios para se elaborar a questão clínica acima mencionada.

Gaillard lança mão de situações clínicas como as vividas nas deficiências físicas – onde a recusa está presente no outro parental e em si mesmo –, nos filhos de famílias de psicóticos – onde ocorre a não diferenciação contínua entre o filho e seus pais – e nas anorexias – onde a criança põe sua própria sobrevivência em jogo a fim de evitar a vivência de invasão e ameaça vital. Ressalta a necessidade, no delicado trabalho de subjetivação, de se poder encontrar um lugar ao abrigo de movimentos de invasões e destrutividade, livres das ameaças do incesto e do assassinato.

Quando os conteúdos das três apresentações são tomados em conjunto, o que faz uma costura entre eles é a consideração quanto à apropriação subjetiva, uma vez que se trata de um processo necessário na constituição de cada sujeito. Os conteúdos específicos apresentados dos pacientes que somatizam, dos indivíduos que são discriminados no contexto do racismo e daqueles que nascem com deficiências físicas apontam para as vicissitudes desse processo – já complexo em si – nessas situações particulares que despertam a intolerância e a marginalização. Desnecessário é dizer que são situações distintas, e que portanto guardam entre si particularidades diferenciadoras, não podendo ser analisadas como um bloco homogêneo.

Alguns pontos despertaram o interesse da plateia presente e geraram vivos debates. Notava-se a presença de participantes da Unifesp, do Sedes e também pessoas mobilizadas pela questão do racismo no Brasil.

Um deles justamente diz respeito à concepção de um estádio do espelho específico dos filhos negros num país com passado escravagista como o Brasil. Porém essa leitura, se tomada em sua generalidade - que não necessariamente seria a posição de quem a formulou inicialmente, é fundamental esclarecer –, poderia encobrir todo um espectro de múltiplas possibilidades. Foi mencionada inclusive a própria questão das mudanças que vão ocorrendo culturalmente com a sucessão de gerações, sendo lícito considerar que uma família de negros de nossos dias pode vivenciar o “ideal de branqueamento da população” de modo muito diferenciado de outra dos tempos próximos à escravidão.

Foi também considerada a complexa questão introduzida no texto de Ferenczi, ao se constatar que toda e qualquer criança pode ser recusada no seu contexto familiar, uma vez que os ideais dos pais podem sempre não encontrar resposta na realidade do filho encarnado.

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[1] Membro do PAES e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.





 
 
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