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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
ESCRITOS DO CAMPO PSICANALÍTICO

SAÍMOS JUNTO COM ELES [1]


LEONEL BRAGA NETO [2]
RENATA PULITI [3]


O grande eixo da sexualidade e da morte é mais uma vez movido pelo campo de forças, emergindo no contemporâneo nas figuras da transexualidade e da melancolia como desordenadores do pensamento estabelecido.

Queremos pensar os efeitos psíquicos daquilo que Vladimir Safatle[4], inspirado no livro Mecanismos psíquicos do poder, de Judith Butler, chamou de melancolia do poder, produzida através da inanição da capacidade de imaginação política; buscamos um correlato na incapacidade de imaginação psíquica observada na clínica como produtora de um contínuo processo de melancolização dos sujeitos. A posição do analista - também ela desestabilizada pela movimentação do eixo sexualidade/morte - estaria convocada a sustentar aberturas para que a imaginação psíquica mantenha-se viva na sua capacidade de fabricar mundos e lugares. Dessa posição estranha, onde tudo parece carecer de uma verdade simbólica que assegure bases sólidas, experimentamos a vertigem de um processo migratório trans-identidades, nos perguntando o que é mesmo que faz um psicanalista e o que o torna um psicanalista. Pergunta que nos parece tocar diretamente o tema da radicalidade em oposição à moralidade.

Ao estender a “corda” da imaginação psíquica para que nossos pacientes saiam do buraco escuro para onde a melancolização os empurra, saímos junto com eles.

Safatle aponta para as evidências de que o afeto que circula no interior de nossa vida social é a melancolia: a paralisia frente à perda do corpo político, único lugar possível de existência para a vida humana como vida plena, a Bios. A degradação desse lugar tão essencial - o corpo político - equivaleria à perda do objeto assegurador que constituiria cada um de nós, lançando-nos a uma resignação contínua frente à descrença na existência de outros objetos ou modos de relação social que pudessem ser investidos. Os sujeitos não olhariam mais para o espaço político como algo que lhes concerne e implica; o pertencimento a esse corpo lembra apenas a impotência e a incapacidade de modificá-lo, provocando o auto-exílio.

As situações-limite de impasse, no entanto, poderiam ter a função de provocar uma reação, animar a imaginação, sem a qual toda uma sociedade pode ver-se tomada por um processo de melancolização.

O título que escolhemos para este trabalho – Saímos junto com eles - procura refletir sobre um ponto central em relação à posição ética do psicanalista, em diferença a uma posição moral. Esse ponto é o de sua implicação com os sentidos do seu fazer como efeito de abertura às transformações da subjetividade, considerando a incidência desta sobre os processos psíquicos. Ao encontrar e oferecer algum recurso para que o sujeito saia do fundo do buraco em que o sabemos metido, saímos junto com ele. E se essa implicação não acontecer, lá também permaneceremos.

Essa figuração nos ocorreu quando um de nós contava sobre uma paciente jovem, de 17 anos, imersa no que parecia uma apatia, um impasse: nenhum interesse pela escola, nenhum rumo para a música ou para a escrita - talentos que, construídos na experiência criativa da infância, pareciam à deriva no momento de se transformarem em potência e expressão própria. Nenhum salto consistente na experiência erótica com o namorado que lhe fizesse um chão. Tudo levava a uma impressão de fracasso que impedia que a experiência da adolescência terminasse sua função de passagem em direção à apropriação do corpo e das insígnias que o constituíram. Situação preocupante, recuo para um anterior não mais alcançável, limbo existencial. Metidas nesse impasse, analista e ela esperavam por uma saída, uma trilha que afastasse do fundo aquilo a que a reprovação no último ano do ensino médio, a retenção e o enclausuramento da libido e o temor do suicídio entrevisto na névoa da maconha consumida em crescimento discreto mas exponencial, pareciam induzir. Em sua posição assimétrica, a analista se movia nesse ambiente cavernoso que transformara seu consultório num duplo do quarto de sua paciente. Eram bem recebidas as iniciativas da analista como a de chamar os pais para juntos compreenderem e modificarem algo no ambiente familiar, que fizesse a crise de todos trabalhar para liberá-los, ou mesmo suas interpretações. No entanto, esse esforço de movimentação só alcançava sua paciente em parte, não produzia um efeito consistente de abertura e seguiam ambas na espera.

Um dia, ao receber uma mensagem de whatsapp para desmarcar um horário, a analista se detém na foto que a paciente havia escolhido para identificar-se no aplicativo: era uma foto do final dos anos 70 da cantora Elis Regina, morta no início dos anos 80, à frente de um muro com os dizeres: “Como Nossos Pais”.

A analista é então arremessada de volta aos seus próprios 17 anos: o disco tocando na vitrola portátil, ecoando com os amigos o refrão da música na voz da jovem Elis. Compreende de onde vem a possibilidade de escutar sua paciente, ao mesmo tempo que algo se esclarece de sua posição na transferência, do lugar de onde pode falar e do lugar de onde precisa se movimentar. Na sessão seguinte comenta sobre a foto, conversam sobre Elis, a qualidade de sua interpretação das músicas que escolhia, especialmente a canção Como nossos pais, com seu dilema melancólico que poderia levar a uma eterna repetição do mesmo, sem chance de modificações. A analista fala de sua hipótese, de que a paciente estaria presa nessa equação, retida no projeto também melancólico de juventude dos pais. Para lhes opor o “novo que sempre vem” era preciso que olhasse em volta, que encontrasse com seus pares as ideias e maneiras de dizer que mundo é esse que está aí e o que querem fazer com ele.

Esse endereçamento para o mundo, a legitimação do pertencimento ao campo vivo e movente da cultura através da implicação da analista em seu processo, de onde pôde falar, produziu um reordenamento das noções de espaço e tempo, autorizando a potência do lugar transgeracional por onde as coisas se transmitem, mas não se equivalem. A paciente passou a falar de suas experiências recentes, suas dores, seus desesperos, suas perguntas, suas errâncias.

A analista sustenta que os pais poderiam encontrar os próprios meios de olhar para suas feridas, perdas e desilusões, sem que a filha precisasse se encarregar disto - como muitas vezes se espera, equivocadamente, das novas gerações. Que os sonhos interrompidos ou fracassados - cada um à sua maneira e no seu tempo (tempo psíquico e tempo histórico) - e o luto das passagens pudessem ser vividos na diferença. E o que não é mais, o que nunca será – aquilo para o que não se encontram palavras - descubra seus destinos.

Ao perdido tínhamos o trabalho do luto e a liberação libidinal que dele se depreende.

Voltando-nos para o nosso entorno e olhando à nossa volta - como no manejo com a paciente - consideramos algumas produções sociais e culturais como fragmentos de sonho ou restos diurnos a serem elaborados em processo de livre-associação. E de imaginação psíquica. Qual o destino do analista que não se deixa afetar pelas diferentes organizações fantasmáticas que cada época produz? Qual destino terá o analista “excessivamente decente”, nas palavras de Freud a Pfister em 1910, em que diz ser “preciso tornar-se uma pessoa má, violar as regras, sacrificar-se, trair e comportar-se como o artista que compra tintas com as economias domésticas da mulher ou que queima os móveis para aquecer a sala para sua modelo”? “Sem um pouco desta criminalidade”, diz Freud, “não há realização verdadeira”.

Lembrando J.-B. Pontalis em uma de suas últimas entrevistas, quando disse que “não ousamos mais descarrilhar”[5], é na radicalidade e no “descarrilhamento” de nossas posições e na língua da cultura que norteamos nossa escuta. Através das singularidades inconscientes percebemos a maneira como o sujeito e seu grupo se organiza frente às demandas do momento e do que se produz. É nesta fonte que podemos pensar a sexualidade, a morte e as ditas identidades.

Chama-nos a atenção um rapaz, Phabbulo Rodrigues da Silva, 22 anos, conhecido como Pabblo Vittar. Ele se define como “fluido de gênero”. Diz ser drag queen somente quando tem que ser, como um chapéu que coloca e tira na hora que precisa. Também ama ser Pabblo “desmontado” e sair de camisa e boné na rua.

Pabblo aparece numa foto que ocupa metade de uma página do jornal Folha de São Paulo em agosto deste ano, vestindo uma calcinha/biquíni, longo cabelo de mechas loiras cacheadas, rosto sexy tipo Beyoncé. Na parte inferior da página, outra foto menor com um detalhe de sua coxa mostra a frase tatuada “I would prefer not to”. É a frase de Bartleby, personagem da novela de Melville, cuja tradução poderia ser “Eu preferiria não”. Bartleby é um escrivão, contratado por um advogado dono de um escritório em Wall Street no final do século XIX, que se vê sobrecarregado ao ser nomeado para cargo de Oficial do Arquivo Público. De aparência pacífica, frágil, ao ser chamado a cotejar o trabalho dos outros escrivães, Bartleby laconicamente responde “I would prefer not to”. E assim, repetida e impassivelmente, Bartlelby responde com a mesma frase a todo pedido que seu chefe lhe endereça, produzindo um vácuo e desconstruindo aos poucos todo o esquema burocrático ao redor e o próprio advogado, que não sabe mais de si. Por fim ele decide despedi-lo mas, para sua surpresa, Bartleby, impertinente, diz que “preferiria não” sair do escritório. E passa a morar no prédio. Bartleby acaba preso e morre na prisão, “preferiria não”… “preferiria não”… “preferiria não”…

“Eu preferiria não”, frase de fórmula agramatical, uma construção-limite segundo Deleuze num belo trabalho sobre a obra[6]. “Eu preferiria não”: nem uma afirmação, nem uma negação, uma zona de indeterminação. Pressionam-no a dizer sim ou não, mas Bartleby não sobreviveria. Ele “só pode sobreviver volteando num suspense que mantém todo mundo à distância” (p. 94), produzindo um vazio na linguagem.

Vazio na linguagem, vazio de gênero...fluido de gênero, como se define Pablo.

Judith Butler diz que a ontologia é uma “injunção normativa”. O gênero é performático e no lugar de sujeito ela usa o conceito de abjeto, baseado no conceito de abjeção de J. Kristeva, que considera como abjeto aquilo que o corpo descarta como excremento e que provoca repulsa na dinâmica externo/interno; é o modelo arcaico através do qual outras formas de diferenciação e de identidade são praticadas, o abominável, o que o sistema simbólico desqualifica e descarta e que escapa à ordem de uma agregação social[7]. Nas palavras de Kristeva: “Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo que o ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao lado do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso solicita, inquieta, fascina o desejo que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado, ele se desvia. Enojado, ele rejeita. Um absoluto o protege do opróbrio, com orgulho a ele se fia e o guarda. Mas, ao mesmo tempo, mesmo assim, esse elã, esse espasmo, esse salto é lançado em direção a um outro lugar tão tentador quanto condenado. Incansavelmente, como um bumerangue indomável, um pólo de atração e de repulsão coloca aquele no qual habita literalmente fora de si.”[8] E, ainda: “Mas se o objeto, fazendo oposição (ao eu), me equilibra na trama frágil de um desejo de sentido que, de fato, me homologa indefinidamente, infinitamente a ele, o abjeto, pelo contrário, objeto baixo, é radicalmente um excluído e me lança lá onde o sentido desmorona.”

Como formula Patrícia Porchat: “Butler tem um objetivo claro em seu uso do conceito de gênero: quer dar conta do 'abjeto'. Trata-se de uma atitude política. Trata-se de dar direito de cidadania ao inabitável, ao 'invivível' , ao outro que virou 'merda'” (p. 78)[9]. “A construção de contornos corporais estáveis repousa sobre lugares fixos de permeabilidade e impermeabilidade corporais”, diz J. Butler. “As práticas sexuais que abrem ou fecham superfícies ou orifícios à significação erótica em ambos os contextos, homossexual e heterossexual, reinscrevem efetivamente as fronteiras do corpo em conformidade com novas linhas culturais”[10] (p. 190). O repúdio de corpos em função de seu sexo, sexualidade e/ou cor é uma “expulsão” seguida de uma “repulsa”, que fundamenta e consolida identidades culturalmente hegemônicas.

E o sexo na cidade? No dia, na madrugada, nos aplicativos, fora da família, do amor, do compromisso, da visibilidade, da identidade de gênero, como nos lembra Porchat? A isto Pabblo nos responde: o gênero é fluido, se usa como um chapéu. E nos interessa por aquilo que aponta como coeficiente de desmontagem.

É inegável o que o momento histórico nos impõe. Se nos anos 60 a contracultura revolucionou o campo da sexualidade levantando a repressão sexual, dando lugar à liberdade dos corpos e do desejo, desconstruindo os ideais da família e do sexo papai-mamãe, nos anos 2000 assistimos ao desmonte das estruturas identitárias de gênero. E isto não é pouco, considerando que, nas bases da constituição psíquica, os traços de gênero são as primeiras designações que nos são endereçadas, as primeiras palavras, as primeiras matrizes onde a “criança imaginada”, lembrando Piera Aulagnier, irá agir através dos pais. São anteriores à percepção da diferença anatômica pelo infans.

Neste sentido a figura do transexual e o significante trans é o que salta na cena contemporânea. Se o termo transexualidade remete originalmente ao discurso médico/jurídico, em sua dimensão patológica e anormal, o prefixo “trans” nos remete ao mais além, ao fluxo do que está por vir. A implosão da sexualidade binária e heterocentrada. Como afirma Thamy Ayouch, que vem trabalhando profundamente a questão trans na psicanálise, “contra a identidade, a abordagem psicanalítica visa inscrever a plasticidade psíquica em movimentos identificatórios provisórios. A identificação é sempre inacabada...” (p. 29)[11]. À criança é prescrito um gênero, porém cheio de ambiguidades, pois carrega os conteúdos inconscientes do adulto. O infante precisa simbolizar esses enigmas e lhe é destinado traduzir mensagens plurais pela lógica do sexo dual. Essa tradução-simbolização visa a recalcar a subjetivação plural do gênero mas produz um resto da tradução, constitutivo do inconsciente. Em Freud, a separação entre masculino e feminino não se reduz a uma diferença de sexos binária, remete a um entrelaçamento dentro do mesmo sexo. Assim, o autor propõe o conceito de transidentidade, que estenderia esta brecha na binariedade, entendendo que a psicanálise deve acolher a possibilidade transgênero, que não vincula a sexuação ao aparelho genital. Implicaria em reconhecer um “desejo trans”, o que reafirma a ideia tão potente da pulsão polimorfa. “Os corpos trans inovam e inventam novas organizações das relações entre normas e transgressões” (p. 29). A anatomia não é mais o destino...

E o que nos dizem os jovens? Aqueles que não se encerram entre quatro paredes e se agitam no espaço público em suas peles masculinas, femininas ou trans? Ou aqueles que não encontram as palavras ou as figurações possíveis para o seu mal-estar, sua sexualidade, sua criatividade, seus projetos? Esses que, por sorte ou alguma fatalidade, conseguimos receber no consultório e oferecer nosso corpo, nossos arquivos, nossas memórias e nossa língua - para que esses sujeitos encontrem vias para se desviarem da morte ou de sua própria melancolização. O que seria da jovem analisanda que inspirou nossa reflexão acima se alguém, sua analista, não tivesse se colocado ali junto dela, fazendo eco ao seu quarto, à sua mortificação, à sua Elis Regina? Ali, na sombra da morte e da desistência, Eros se desfazia em apatia.

Em outro fenômeno recente da cultura atual, na esteira das séries e suas “febres”, 13 reason's why, Os 13 porquês, uma jovem adolescente, antes de se suicidar, grava 13 fitas cassete explicando as 13 razões que, num crescente, levaram-na a por fim em sua vida. O que muito impressionou foi a reação geral à ideia e à exibição de um suicídio considerado por alguns como “glamuroso”, pois poderia contagiar adolescentes mundo afora, chegando a série a ser proibida em alguns países. Foram manifestações histriônicas em nome do horror ao suicídio juvenil, horror que desvela aquilo que insiste em recobrir. Não se pode falar ou escutar aquilo que destoa e ameaça a ordem vigente - por si só em constante risco - sem que nada queira saber sobre isto.

Uma bela jovem que se suicida. Uma espécie de peste ameaçando contagiar e dizimar nossos belos jovens. O problema seria o mal exemplo do suicídio, podendo gerar imitações e contágio, e não as verdadeiras questões que determinada época e sociedade colocam para seus jovens e suas perspectivas - tão frágeis, banalizadas e incipientes a ponto de poderem deixar-se morrer, ou acabarem com suas vidas numa simples competição, teste de limite ou jogo pela internet.

Hannah, a personagem, percorre os interstícios da comunidade de jovens de sua nova escola e seus jogos perversos desde que chega à cidade. Sua perplexidade se alterna pontualmente com sua recusa em aceitar algumas brechas, algumas ajudas, aquilo que se contrapõe ao jogo ou, mais propriamente, à máquina. Mas ela produz o desmonte das estruturas silenciadoras e agonizantes de cada um dos personagens que arrastam histórias familiares aberrantes, agindo em cada um. She would prefer not to. Ela também preferiria não.

Hannah já está morta desde a primeira cena, mas torna-se cada vez mais viva a cada episódio. Um paradoxo na narrativa, conduzida também pelo rapaz que se encarrega de suas “13 razões” numa trajetória investigativa, elucidativa, mas sobretudo numa paixão crescente - esta sim contagiante - pela bela Hannah. Ao final temos o protagonista crescido, fortalecido na paixão e na dor, tendo cumprido sua travessia ao valorizar a vida, o humano, o cuidado atento ao outro, num velho mustang vermelho percorrendo uma highway americana, típica cena libertária do cinema rebelde, de personagens que se arriscam a se afirmar como sujeitos, custe o que custar.

O suicídio serve como disparador da narrativa que, com as 13 fitas cassetes, colocou todos a falar, o protagonista a reagir com energia e a máquina desmoronou. Não a apologia do suicídio mas pensar a trama nestas outras linhas de força, mais complexas e potentes, e em narrativas cinematográficas, televisivas ou literárias - sempre bem vindas -, que se prestam a nos oferecer cenas ou enredos ali onde a palavra falta.

Pela estrutura da narrativa, a partir da morte tudo se ressignifica. A dor, a exclusão, o desrespeito, a covardia, o cinismo, a omissão, a lei do mais forte, os jovens sem qualquer interlocução qualificada, nada que possa se tecer entre as angústias, a sexualidade, o corpo, a violência, os medos e a experiência do outro. Sem mediação.

Recuperar a capacidade de imaginação política ou psíquica seria, então, abrir-se para a dimensão de risco; gerar o movimento necessário ao desconhecido. Neste sentido é que a desmontagem operada pela movimentação trans, numa ponta, e as figuras da morte representadas pela apatia, pela melancolia e pelo suicídio, em outra, extrapolam fronteiras, desconstruindo a lógica dual e soberana dos gêneros (na desmontagem trans) e a tirania da vida elevada à condição de fetiche que recusa a morte e o tempo (com o suicídio, a apatia e a melancolia). Tal desmontagem abre espaço para que outra lógica, não dual ou totalitária, interrogue o tecido social e subjetivo e se espalhe por toda sua extensão. Também não é à toa que justamente seja essa a movimentação a ser atacada por uma moral orquestrada para impedir que o corpo político - e o corpo erógeno - sejam alcançados e tatuados com a frase: “Nós preferiríamos não”!

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[1] Este trabalho é produto de um grupo de pesquisa que vem se formulando no Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo (EBEPSP), cujo foco é repensar a metapsicologia psicanalítica à luz das transformações culturais e históricas que atravessam nosso mundo atual. Foi originalmente apresentado na Jornada inaugural do EBEP-Porto Alegre, intitulada Moral e radicalidade psicanalítica, em setembro de 2017.
[2] Psicanalista, membro do EBEPSP.
[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do EBEPSP.
[4] Café Filosófico: https://www.youtube.com/watch?v=LLLxyYgWzQA
[5] “Não ousamos mais descarrilhar. Estamos sobre os trilhos como se, de uma vez por todas, Freud tivesse traçado os trilhos dos quais não devemos nos distanciar. Isso não quer dizer que seja preciso ultrapassar Freud e sim tentar reencontrar aquilo que foi a efervescência do pensamento freudiano, justamente por isso, exemplar. Trata-se da possibilidade de lançar hipóteses aventureiras e de se contradizer, e admitir a contradição.” In: Revista Percurso 42/ junho de 2009, p. 136.
[6] Gilles Deleuze, “Bartleby, ou a fórmula” in Crítica e Clínica, Editora 34, 2011.
[7] Judith Butler, Problemas de gênero, Editora Civilização Brasileira, 2012.
[8] Julia Kristeva, Poderes do Horror/ Pouvoirs de l'horreur: Essai sur lábjection. Paris: Editions du Seuil, 1980 – trad. De Allan Davy Santos Sena/ cap. 1 (Disponível em PDF na internet).
[9] Patrícia Porchat, Psicanálise e transexualismo, Juruá Editora, 2014.
[10] Idem nota 7.
[11] Revista Percurso 54/ junho de 2015.




 
 
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