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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    44 Novembro 2017  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

UMA NOITE EM AL JANIAH


Alessandra Sapoznik [1]
Márcia Maroni Daher [2]
Maria Carolina Accioly [3]
Verônica Melo [4]


A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima
de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa
e a ação eficaz.

Hannah Arendt




No dia 28/9 o Grupo Veredas – psicanálise e imigração[5] organizou o 5o evento de formação Veredas Convida, dessa vez com o tema Imigração e Moradia, que se realizou no Al Janiah[6].

Ao entrarmos em Al Janiah[7] temos nossos nomes registrados com uma caligrafia de que apenas compreendemos a estética: são escritos em árabe; da direita para esquerda; do leste para o oeste; do oriente para o ocidente.

Ali nada passa desapercebido, é o mundo a céu aberto, moradia de vários povos. Naquela noite, as fronteiras se desmancharam na chuva.

Monica Quenca Padilha, assistente social que trabalha na Missão Paz[8] e Guylain Mukendi - professor, ator e militante no Congo, refugiado no Brasil há dois anos, idealizador do Projeto Bem vindo[9] - eram os debatedores. A mediadora da mesa, a psicanalista Alessandra Sapoznik, começou o evento trazendo para a conversa um conceito potente trabalhado por Pedro Seincman em sua dissertação de mestrado e que define o trabalho do Veredas: a clínica migrante[10]. Termo que remete tanto ao tipo de escuta presente no trabalho com migrantes e refugiados - que exige do analista a abertura de circular entre diferentes dispositivos analíticos -, quanto ao deslocamento dos psicanalistas por territórios outros.

Monica fez uma apresentação sobre o trabalho da Missão Paz, congregação dos missionários de São Carlos, uma comunidade internacional fundada na Itália em 1887, que atua em 40 países. A Missão Paz oferece serviços gratuitos através do Centro Pastoral e de Mediação dos Migrantes (CPMM) focada em diversos setores: capacitação e cidadania, documentação, família e comunidade, jurídico, saúde, serviço social e trabalho. O trabalho da CPMM e a situação dos refugiados são profundamente atravessados pela questão de moradia e abrigamento, e, dessa forma, se conecta aos movimentos sociais de luta pela moradia. Em algumas ocupações, quase metade das famílias é de refugiados. As ocupações funcionam como comunidades integradas e organizadas, as regras e combinados são acordados pela confiança na palavra.

Monica ressaltou a diferença na nomenclatura entre invasão e ocupação. As ocupações ocorrem em edifícios ou terrenos desocupados, sem função social e são realizadas por movimentos sociais organizados que lutam pelo reconhecimento do direito fundamental à moradia. Já as invasões são realizadas por pequenos grupos e/ou famílias que, de maneira independente, ocupam imóveis que quase sempre se encontram em estado de deterioração avançada, reforçando assim o lugar de vulnerabilidade social, política e subjetiva.

Importante lembrar que a mídia retrata a todos como invasores, considerando que entrar à força em um imóvel fechado é uma infração legal. Porém a própria lei não enquadra a ocupação como uma invasão quando o imóvel a ser ocupado não tiver função social. Por vezes os moradores são acusados de fazer um uso predatório do local quando, na realidade, a ideia de ocupar está relacionada a um trabalho coletivo de fazer reviver um território abandonado, fazê-lo renascer com outra função: a de ser um lar, ainda que transitório.

Monica destacou ainda a existência de um medo mútuo que se apoia na dificuldade em reconhecer o outro como diferente: quem está dentro tem medo de quem está fora e quem está fora tem medo de quem está dentro. Ambos os debatedores desenvolvem práticas e projetos de intercâmbio cultural que visam colocar migrantes e refugiados em contato com a população brasileira e confrontar essa lógica do medo.

Guylain começou então a narrar sua história. Nascido em uma família abastada do Congo, por muito tempo não questionou o fato de que seu país estava atravessado por uma ditadura e guerra civil. Foi durante a faculdade que entrou em contato com movimentos de luta social e se sensibilizou com a questão da enorme desigualdade e violência existente em seu país.

Passou de um filho protegido pertencente à classe alta congolesa para militante em alguns movimentos sociais que se opunham ao governo. Após ser preso algumas vezes e receber ameaças de morte, se viu obrigado a fugir do país. Não sabia que viria para o Brasil, "foi a oportunidade que apareceu". Ele, que já havia viajado para outros lugares como turista, agora incorporava à sua vida uma nova condição, radicalmente oposta à daquele que se desloca por opção: a de ser refugiado, e mais, refugiado negro no Brasil.

Guylain salientou a diferença de tratamento dispensada aos refugiados brancos (sírios, por exemplo) e aos negros. Falou que o Brasil recebe refugiados, mas não cuida deles, não os acompanha minimamente. Apontou a contradição da “ausência do governo enquanto presença que cuida, porém que se faz presente como polícia armada”. Ao se estabelecer aqui, se deparou com a situação de milhares de brasileiros que vivem como refugiados em seu próprio país sem o amparo do Estado, e muitas vezes em guerra civil.

Coube à Alessandra fazer uma síntese das questões que apareceram na fala dos convidados e mediar o debate com o público presente. Ela começou retomando uma imagem mostrada por Monica de pessoas que viviam embaixo de um viaduto, próximo à Missão Paz. Essas imagens urbanas, além da desolação, remetem à capacidade que as pessoas em situação de deslocamento territorial têm de encontrar formas de viver em meio às estruturas de concreto que a cidade oferece: duas vigas paralelas enormes que originalmente servem como sustentação de um viaduto se transformam em um banheiro à medida que moradores de rua colocam um cabo e uma cortina entre as vigas. A humanidade prevalece sobre a desumanização e a nossa velha conhecida "gambiarra" se firma como estratégia de resistência.

A resistência é fundamental para se viver em um país no qual, como bem ressaltou Guylain, não se cuida dos refugiados, de todos daqueles que não têm lugar. Essa resistência evoca uma outra imagem urbana inquietante: a da plantinha que, do nada, brota do concreto.

Assim como, de forma quase incompreensível, uma planta brota do concreto, uma ocupação pode ser entendida como a ação de dar vida a um espaço morto. Nesse sentido, a ausência do cuidar convoca aqueles que não têm um lugar para morar a desenvolverem estratégias de sobrevivência.

O ponto de intersecção entre a imigração e a moradia se dá na experiência do estar em trânsito, do ter que recomeçar do nada e habitar espaços efêmeros. Em última instância, é no lugar da transitoriedade que as pessoas se encontram.

O debate deslocou-se por estes temas levantados: a potência da micropolítica ou das “ações artesanais”; a surpresa de ver nascer uma ocupação, injetar vida num prédio abandonado, a partir de um projeto coletivo.

Nessa noite éramos vários, variados: brasileiros, belgas, congoleses, peruana/francesa de origem indígena (tudo junto na mesma pessoa), japoneses, mulçumanos, judeus, católicos e mais ... mais velhos, mais jovens e outros mais. Ainda assim, o debate se deu. Estranho, não? Estrangeiro sim!

Como explicar que quem está tem que partir; que quem chega tenta ficar? Talvez essa seja uma boa metáfora para falar do que é a vida. Aos poucos, o território ocupado chamado Al Janiah foi se transformando. O som da música ao lado ia aumentando, as cadeiras sendo dobradas. Era ficar ou voltar para casa. E qual casa? Partimos, mas não sem antes pedir, mais de uma vez, por uma “Palestina Libre”[11].

Saúde! Ou, salve!

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[1] Alessandra Sapoznik é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Doutoranda na Universidad Complutense de Madrid, membro do coletivo Escutando a Cidade, colaboradora do Grist (Grupo de Refugiados, Imigrantes e Sem Teto do MSTC) e do Veredas.
[2] Marcia Maroni Daher é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; participa dos grupos O feminino e o imaginário cultural contemporâneo e Sexta Clínica.
[3] Maria Carolina Accioly é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, participa do grupo de pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo e da equipe deste Boletim.
[4] Veronica Melo é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[5] O Grupo Veredas - Psicanálise e Imigração é um projeto do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP e PUC-SP, coordenado pela Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa, desde 2004.
[6] https://www.facebook.com/aljaniah01/
[7] Vilarejo que fica na Cisjordânia, parte de territórios palestinos ocupados por Israel e que dá nome a esse espaço político e cultural onde ocorreu o debate, localizado no bairro paulistano do Bixiga.
[8] http://www.missaonspaz.org
[9] https://www.projetobemvindo.org/
[10] Seincman, P. Rede transferencial e a clínica migrante: psicanálise em urgência social. Dissertação de mestrado (2017).
[11] Drinque servido no Al Janiah.




 
 
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