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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

A PARCERIA NURAAJ E AMMA PSIQUÊ NA PRÁTICA DA CLÍNICA DO SEDES


LIAMAR ALMEIDA DE OLIVEIRA [i]
PRISCILLA PRADA [ii]
RAFAEL MUSCALU RAICHER [iii]




No dia 11 de agosto de 2018 aconteceu no Instituto Sedes o evento Deu Ruim - O mal estar do adolescente e sua família na contemporaneidade, promovido pelo NURAAJ – Núcleo de Referência em Atenção à Adolescência e Juventude. O evento faz parte do cronograma do convênio com o FUMCAD – Fundo Municipal da Criança e do Adolescente – aprovado em 2014 que, em meio aos entraves burocráticos financeiros, apenas pôde sair do papel em setembro de 2017.

O projeto aprovado pelo FUMCAD é fruto do trabalho de Maria Ângela Santa Cruz, militante das políticas públicas de saúde e idealizadora do projeto abrigado na Clínica do Instituto desde 2005. Instituto que também deu suporte para que tal convênio fosse firmado e executado.

Ângela faleceu em abril de 2016 e da equipe coordenada por ela permaneceram apenas dois integrantes – Priscilla Prada e Sandro Andrade – que, desejando seguir com os atendimentos de adolescentes, convidaram a colega Sabrina Arini para, juntos, reorganizarem a equipe e insistirem na realização do convênio já firmado, dando continuidade às bases fundamentais que davam sentido ao Projeto NURAAJ, isto é, uma clínica política voltada ao público adolescente e jovem, baseada na psicanálise e na transdisciplinaridade e que entende que é função das instituições atender a população mais vulnerável; acrescentaram a essa base o objetivo de promover o acesso daqueles que, por impedimentos sociais/subjetivos, não alcançam uma instituição consistente e de robustez técnica e política como o SEDES, que permanece de difícil acesso por motivos como sua localização, seu lugar simbólico, seus horários de funcionamento e seu público de alunos e profissionais de maioria branca de classe média alta.

Adolescentes e jovens, pela própria condição psíquica, social e racial, são uma população muitas vezes de “não encaixe”, de “inadaptabilidade” às instituições, fazendo de sua chegada e permanência questões a se pensar e trabalhar. Com esses marcadores raciais e sociais, que incluem violência de Estado, pensamos que é nossa obrigação clínico-política repensar nossas formas de fazer clínica, ou seja, precisamos afinar nossa escuta e nossas estratégias de cuidado para alcançar a população que entendemos como a mais vulnerável.

Em 2015, um levantamento realizado pela Secretaria Municipal de Promoção e Igualdade Racial apresentou que Parelheiros, bairro localizado no extremo sul da capital paulista, possui 78 vezes mais negros que Pinheiros. Dizendo de outro modo: enquanto em Parelheiros o percentual de negros é de 57,1%, no distrito de Pinheiros é de apenas 7,3%. Os bairros do extremo das zonas Sul e Leste de São Paulo lideram o ranking dos distritos com o maior número de negros. Geograficamente, aproximadamente 42 km separam o bairro mais negro e o bairro mais branco da capital paulista - a segregação sócio-espacial possui cor e produz efeitos.

Estes dados são do Censo Demográfico de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estática) e indicam que a cidade de São Paulo tinha mais de 11,2 milhões de pessoas, sendo que cerca de 37% (4,1 milhões) se declararam negros (pretos ou pardos).

O negro pode ser consciente de sua condição e de todas as implicações históricas, políticas e sociais no nosso país, mas isso não impede que ele seja afetado pelos efeitos do racismo.

Com o projeto finalmente aprovado pelo FUMCAD a equipe que ia se formando se deparou com a feliz possibilidade de atender a um grande número de pessoas gratuitamente (inclusive com a possibilidade de ajuda de custo para chegarem via transporte público) podendo alcançar esta população de adolescentes que normalmente fica num limbo assistencial. Além dos marcadores citados acima, muitos não são “casos para CAPS” mas tampouco UBS’s conseguem trabalhar com demandas tão complexas como adolescentes em grande sofrimento psíquico a ponto de se refugiarem em seus quartos, se isolarem do mundo, serem muito agressivos com os outros ou consigo mesmos, se cortarem, fazerem uso abusivo de substâncias e do virtual, tentarem se matar ou manifestarem outros sofrimentos de grandeza considerável. Também são poucas as instituições públicas ou não governamentais que prestam o serviço de escuta a esses adolescentes.

Queríamos afinar nossa escuta, entender como o racismo a la brasileira é um fator de importância na constituição das subjetividades e sofrimentos de nossa população. Ao mesmo tempo, um incômodo óbvio nos fazia refletir. Éramos em nossa equipe todos psicanalistas brancos de classe média, média-alta, e por mais amplas que fossem nossas experiências (inclusive com populações periféricas) e multiplicidade dentro do recorte da equipe, havia ainda essa marca na pele que já entendíamos como sintomática. Onde estavam os analistas e terapeutas negros? Eles existem por aí, mas por que tínhamos tão poucos colegas negros [iv] circulando em nossos lugares de trabalho e transmissão?

Neste momento, caberia a questão: E o branco? Afinal, vivíamos os efeitos da branquitude neste espaço? Na tese intitulada Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana , Lia Vainer Schucman aponta os privilégios dos brancos. Vejamos: “A branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. Portanto, para se entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as estruturas de poder fundamentais, concretas e subjetivas em que as desigualdades raciais se ancoram (...)”. Quais os significados e sentidos de "ser branco" compartilhados em nossa cultura? Quais os processos de constituição destes sujeitos como brancos? É possível falar em identidade racial branca no Brasil? Caso seja possível, de que forma ela se caracterizaria?

Pensando nisso, buscamos em 2017 a parceria com o Instituto AMMA Psiquê e Negritude. Queríamos fortalecer a discussão, pensar e atentar às especificidades produzidas pelas relações raciais, seus efeitos clínico-político-institucionais. Não queríamos apenas atender a população negra e repetir uma velha configuração de profissionais brancos (de ensino superior) atendendo população negra. Queríamos atender com profissionais negros, criar interlocuções, identificações e diferenciações, questionamentos internos e externos com nossa equipe, com a instituição e até com os pacientes sobre as diferenças sociais e raciais de produções subjetivas que o racismo estrutural produz. O que significa ser negro sócio-psiquicamente? O que significa ser branco? O que significa um terapeuta negro atendendo numa instituição branca? O que significa ser um jovem negro no Brasil atual? O que significa ser negro nas suas mais variadas tonalidades? Faz diferença? Como tudo isso atravessa a escuta psicanalítica?

É curioso que tenhamos que defender repetidamente alguns argumentos quando falamos de nossa experiência atual. Para as psicanálises há universais que são considerados independentes da experiência. O inconsciente é talvez o maior deles (não entraremos aqui na polêmica de quais universais seriam esses). E nossa experiência confirma: há Édipo, pulsões, recalque, resistência, sintomas, transferência etc. em todos os nossos atendidos. Porém, ao escutar (inclusive na escuta flutuante), se somos municiados com um saber crítico sobre o racismo, conseguimos reconhecer, diferenciar e perceber nuances (que, nas consequências sobre a vida dos pacientes, de sutil não têm nada) de como o racismo opera.

Essa parceria vem sendo tecida a várias mãos, colocando-nos frente aos efeitos do racismo estrutural em cada um de nós. Um processo sofrido e importantíssimo para pensarmos a clínica das relações raciais. E, para pensar e discutir isso institucionalmente, é necessário retornar ao tema do racismo estrutural e da dívida histórica.

Como fruto desse trabalho intenso de reconstrução e de parcerias, laços e desenlaces, hoje no NURAAJ trabalhamos com uma equipe de 13 terapeutas: 7 terapeutas contratados provenientes da Clínica do Instituto e que, em algum momento de sua formação, passaram por Aprimoramento na mesma, 1 terapeuta contratado advindo do Curso de Psicanálise e inserido na equipe por pertinência técnica, 1 voluntária do Instituto Sedes e 3 psicoterapeutas do Instituto AMMA [v].

Atendemos em média a cerca de 100 pacientes - adolescentes entre 12 e 17 anos, jovens entre 18 e 22 anos e seus familiares e/ou técnicos dos dispositivos responsáveis.

Nesses grupos está a expressão de nosso trabalho de questionamento e transformação clínica: a população atendida não é mais aquela oriunda do entorno do Instituto Sedes, mas sim adolescentes, jovens, pais e técnicos de bairros distantes do centro de São Paulo. Grupos coloridos, multirraciais, que encontram espaço de elaboração para seus sofrimentos.

Os atendimentos ocorrem prioritariamente em grupos separados por idade (não necessariamente cronológica, mas subjetiva), com o cuidado da pertinência clínica de cada paciente na inserção nos grupos, cuidando assim do paciente individualmente e do grupo que o receberá. Realizamos também atendimentos individuais quando sentimos a necessidade.

Nesse momento contamos com 8 grupos de adolescente e jovens, 1 aberto formado para receber os familiares dos adolescentes e jovens, e 1 grupo de acolhimento para a chegada e primeira escuta de pacientes encaminhados de outros dispositivos, além de um lugar a mais de fala para os adolescentes já inseridos em outros grupos em momentos de urgência.

Priorizamos os atendimentos em grupo por entender que a multiplicidade existente neles auxilia no processo de produção de subjetividade, tão importante nessa fase da vida na qual deveria se operar a separação do casal parental e a saída para o mundo. As diferentes subjetividades, histórias, sofrimentos e vivências que ali emergem podem auxiliar e servir de apoio - e muitas vezes próteses - aos parceiros de grupo para criarem novas singularidades.

Também acreditamos no dispositivo grupal como alternativa ao modelo impregnado em nossa sociedade pela ideia de indivíduo, uno, identitário.

Nossa atuação visa alcançar a família e os dispositivos por entender que os adolescentes muitas vezes são a via pela qual o sofrimento familiar e os desarranjos das instituições se expressam - além de muitas vezes o sofrimento ser maior nos pais do que nos adolescentes - e pensamos que para produzir transformações nas pessoas, é preciso promover transformações nas lógicas operantes em suas famílias e dispositivos.

O evento Deu Ruim nasceu para discutir o mal-estar do adolescente e sua família na contemporaneidade. Pensar a multiplicidade da adolescência e (por que não?) adolescências, a partir da intersecção raça, gênero e classe. Para tanto, o dispositivo utilizado foi a Roda de Conversa.

Tínhamos como objetivo, mais do que a transmissão de um saber sobre a adolescência e juventude, propiciar um lugar de troca e reflexão a respeito desse tema de utilidade pública. Entendemos que nessa troca e produção de conhecimento os pacientes, familiares e dispositivos também são agentes e autores e por isso o fizemos aberto ao público, a fim de ampliar o conhecimento, a troca e seus efeitos. E também por isso a Roda. Acreditamos que o diálogo é uma das formas mais ricas de promover conhecimento, trocas, insights e novas perspectivas. Então o objetivo da Roda era o de proporcionar um ambiente informal, promovendo um diálogo horizontal entre todos os presentes, de modo que todos pudessem contribuir com reflexões, saberes, provocações e experiências. Na cultura afro-indígena, a roda é o local de encontro, é na roda de samba que os versos são cantados, celebrados, festejados. Na capoeira, na ciranda... estar em roda é se colocar em posição afro-brasileira.

Acreditamos que o evento é um demonstrador de que estamos alcançando nosso objetivo, mas muito ainda precisa ser feito. Ele foi apenas o pontapé inicial para que as discussões que ocorrem na parceria AMMA-NURAAJ possa se estender a todo o Instituto.

 



[i] Nuraaj e AMMA Psique.

[ii] Nuraaj.

[iii] Nuraaj.

[iv]De acordo com o IBGE na categoria negro estão incluídos pretos e pardos.

[v] A equipe do NURAAJ é assim composta por: Cristiane Gonzales Gomes, Iara Rodrigues, Juliana Mendes Torres, Lara Herrera, Liamar Almeida de Oliveira, Marianne Oliveira De Toni, Pedro Musa, Priscilla Prada, Rafael Muscalu Raicher, Sabrina Arini, Samantha Fonseca e Sandro Andrade.




 
 
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