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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

DA TRAVESSIA ADOLESCENTE À NECESSÁRIA TRAVESSIA INSTITUCIONAL


DANIELA DANESI [i]


No sábado, dia 11 de agosto, ocorreu um evento no Sedes chamado Deu Ruim!, cuja temática foi a adolescência. Esse encontro foi organizado pelo Nuraaj em parceria com o Instituto Amma Psiquê e Negritude. Foram propostas duas rodas de conversa, uma para falar deAdolescência e família, para a qual fui convidada e a outra sobre O sofrimento contemporâneo na adolescência, na qual nossa colega Fátima Vicente participou.

Decidi compartilhar, através do Boletim, as impressões e ressonâncias que a participação nesse encontro provocaram em mim.

Num certo dia, ao fim de uma supervisão do curso Conflito e Sintoma, recebi um convite singelo de uma terapeuta do Nuraaj que me perguntou se aceitaria participar de um bate-papo sobre os impasses que se apresentavam na minha clínica com os adolescentes e as suas famílias. O meu entendimento, nesse momento, era o de ser chamada para uma conversa com a equipe do Nuraaj, para um espaço de troca entre colegas mergulhados no mesmo campo de conceitos, terminologias e experiências clínicas. Ao longo da semana, fui me inteirando da quantidade de pessoas interessadas por se tratar de um evento público, divulgado em redes sociais e aberto a qualquer interessado.

E esse foi o primeiro impacto que o evento me provocou!

Para além da temática da adolescência, sempre muito mobilizadora, percebi a importância de abrirmos espaços de diálogo com a comunidade, em que o Sedes – nome tão citado por muitas pessoas nesse dia enquanto referência de produção de saber e de oferecimento de cuidados através de sua Clínica - possa implementar fóruns de discussão, de compartilhamento e troca que permitam a circulação da palavra e a construção de sentidos coletivos.

Apesar de não conseguirmos a disposição física de uma roda de conversa devido ao tamanho da sala e da quantidade de pessoas ali, certamente pudemos manter a potência contida nesse dispositivo de troca. Um dispositivo que nos convida à circulação da palavra, à participação de todos, à horizontalidade.

Compareceram em torno de 130 pessoas, dentre as quais: colegas de Departamento, contratados da Clínica, profissionais de UBSs, diretores de escola, pais, adolescentes, etc.

A chamada do folder, com a foto de um par de All Star azul apoiado numa porta e, logo abaixo, a frase Deu Ruim!, provocou-me uma certa dissonância e foi a partir dela que pude construir a minha fala.

Como não lembrar de Nando Reis cantando:

estranho seria se eu não me apaixonasse por você

O sal viria doce para os novos lábios

Colombo procurou as Índias mas a terra avisto em você

O som que eu ouço são as gírias do seu vocabulário

Estranho é gostar tanto do seu All Star azul

As palavras da canção remeteram-me ao movimento tão importante da deriva adolescente de busca do objeto de amor e paixão fora do familiar. Desse impulso, curiosidade e intensidade que confronta o jovem, novamente, com os enigmas da sexualidade, a partir das possibilidades de encontro com o corpo do outro e das ressonâncias das marcas da sexualidade infantil. Movimentos, esses, que provocam tanto um estranhamento de si quanto do outro.

Lembrei-me do alerta que o casal Corso faz no livro Adolescência em cartaz, chamando-nos a atenção para o tipo de palavras que costumamos usar para nos referirmos à adolescência, carregando-a com tintas apenas catastróficas: luto, crise, desestruturação.

Nesse sentido, podemos dizer que há muito movimento e trabalho psíquico nessa travessia adolescente. Vieram-me à mente os movimentos de ocupação das escolas estaduais pelos secundaristas, em 2015, e todas as repercussões que esses jovens promoveram naquele período e pensei: “Também pode dar bom!”.

A partir dessas associações, propus pensar a adolescência não como uma etapa cronológica nem como um momento de perturbações patológicas e sim como uma passagem, uma travessia em que, juntamente com o luto do corpo e da experiência infantil, ocorre a abertura para novas identificações a partir do encontro com novas grupalidades e escolhas, relacionadas àquilo que o campo social pode oferecer.

E assim, nesse bate-papo, fomos nos aproximando das invejas e idealizações que olhar para esses movimentos adolescentes nos provocam e também dos medos e angústias que geram os seus movimentos de busca de autonomia a partir da desidentificação e desidealização das figuras parentais.

Pudemos conversar sobre essas tais adolescências - porque são tantas!, porque não podemos pensá-las fora do momento histórico-cultural em que são vividas, sem considerar os vários marcadores sociais que vão definir as suas experiências, tais como: classe social, gênero, raça, etc.

E aqui chego à outra consideração que esse encontro me provocou!

Em ambas as rodas houve falas dos terapeutas do Nuraaj, que nos contaram sobre o seu fazer clínico com os adolescentes e as suas famílias, a escolha do dispositivo grupal como estratégia de atendimento, os impasses e inquietações provocados por essa escuta multifacetada.

Em seguida, ocorreram as falas de seus parceiros ligados ao instituto Amma Psiquê e Negritude. E, para além do imenso prazer da troca que pudemos fazer ali sobre a temática do evento, dos caminhos escolhidos por esses companheiros de roda, com suas metáforas provenientes de outro lugar de fala que traziam referências à ideia de família proveniente da cultura hip-hop, da ideia de roda presente na cultura indígena e africana, da brincadeira de empinar pipa, da habilidade necessária para soltar a linha, do risco de perdê-la, carreguei comigo também alguns comentários que promoveram muitas ressonâncias, em mim, ao longo dos outros dias.

Um comentário do prazer de reconhecer o público que estava ali em sua diversidade e cores; a alegria de ter um colega negro falando na mesma roda; o alerta para não realizarmos leituras apenas de autores brancos, europeus, sob o risco de uma certa universalização das ideias brancas eurocentristas; a lembrança dos nomes de psicanalistas negras brasileiras cujas obras são pouco conhecidas; a localização do Sedes em um bairro de classe média alta, que tem uma clínica social e cuja grande maioria dos terapeutas é branca...

Inevitavelmente fui me deslocando para pensar em outra travessia... da travessia adolescente para a necessária travessia que o nosso Departamento foi convocado a fazer, desde o evento Psicanálise e racismo.

Lembrei da pergunta que uma jovem psicóloga e militante fez, no dia do lançamento do livro O racismo e o negro no Brasil: quantos alunos negros havia nos cursos do Departamento?

Assim como podemos nos perguntar onde estão os professores negros, em nosso Departamento, que poderiam contribuir com a formação de psicanalistas implicados em pensar os efeitos do racismo na constituição da subjetividade brasileira. Quanto poderiam contribuir para abrir a nossa escuta para os efeitos dos sofrimentos causados por determinados marcadores sociais?

Tapa na cara, dedo na ferida: precisamos continuar a nossa travessia e desenhar políticas que, cada vez mais, permitam um Departamento mais colorido e diverso.

Quais são os caminhos que queremos trilhar para dar mais consequência à ética que aprendemos desde Freud, dessa travessia de todos nós em direção à ampliação dos laços sociais e à abertura ao não-familiar? Por onde continuar a construir um Departamento cada vez mais plural, não apenas em relação aos autores estudados mas também em relação ao acolhimento de experiências clínicas fora do âmbito do consultório privado e da possibilidade de oferecer formação e espaços de troca àqueles que ficam impossibilitados de circular em nossos cursos devido ao alto custo? Como criar espaços de interlocução e transmissão, para além dos eventos pontuais, que incorporem a discussão dos efeitos do racismo em todos nós?

Estamos vivendo um momento muito delicado de país em que sistematicamente ocorre um desmonte das políticas públicas ligadas aos direitos humanos, a uma certa forma de pensar a Saúde Mental e os dispositivos de cuidados, à tentativa de domínio da Educação por setores conservadores, à violação do processo democrático a partir dos abusos do Poder Judiciário e, assim, a lista poderia continuar...

Participar do evento Deu Ruim! trouxe-me um sopro de esperança, a aposta renovada nos encontros, nas trocas, na construção de espaços coletivos, na constatação de que muito se caminhou nesse país nos últimos anos pois, apesar das tentativas de retrocesso, estávamos lá, em um ambiente diverso e colorido!

Trouxe-me também a reflexão de que seguir adiante e fazer resistência a essa tentativa de desmonte deve ocorrer não só a partir da macropolítica mas sim, e também, a partir dos movimentos institucionais que podemos realizar.

Que venham mais rodas de conversa!

Referências:

Corso, D. L. e Corso, M. Adolescência em cartaz: filmes e psicanálise para entendê-la. Porto Alegre: Artmed, 2018.



[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.




 
 
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