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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

A SOMBRA DA SOMBRA[i]


SORAIA BENTO [ii]


Sonho. Casa grande cheia de gente. Da janela avisto, no céu, duas imensas naves espaciais, pareciam ser feitas de lego. Uma branca e uma preta. Da navegação paralela algo faz com que comecem a se atacar. Há um bombardeio tão assustador que prenuncia o fim do mundo. Lembra o enredo de Melancolia, do Lars von Trier. Ao meu lado, reconheço duas pessoas, minha dermatologista e uma senhora. A senhora está aflita porque deixou seu filho trancado em casa. Tentamos sair e guardas fecham as portas para evitar a fuga. No braço da senhora começa a nascer um caroço, que cresce vertiginosamente sob a pele até se romper. A protuberância atinge tamanho de uma melancia. Peço socorro à dermatologista. Ela vê o mesmo fenômeno acontecendo sob sua pele. A senhora é negra. A senhora é uma empregada doméstica de um velho amigo. A dermatologista é branca.


Dias antes...

Era um nublado domingo de agosto, dia de descanso universal, um almoço entre amigos prometia ser o melhor aquecimento para a alma. Uma amiga da juventude viera de Portugal para ministrar um curso numa prestigiada pós-graduação. Militante e pesquisadora das questões que envolvem racismo contra negros, a convidada chega com um aspecto desconcertado. Havia se atrasado, o que poderia justificar o olhar perplexo. O prato principal poderia ser o problema, ela não costuma comer carne... a conversa seguiu com um ânimo recuperado, mas uma certa aceleração nos passos que costumam ser lentos e tranquilos num almoço como aquele. Acompanho a convidada até o taxi. Na saída do prédio ela me diz: - O porteiro me indicou a entrada lateral para entrar...

Corta.

Passa pela minha cabeça uma conversa em Lisboa, agora em julho, onde ela conta que, na época da faculdade, viveu essa situação chegando à casa de amigas comuns. Naquela ocasião, ela foi marcada pela discriminação de cor pela primeira vez. Fez-se marca onde não havia. Natural de um país africano, não havia percebido o que é ser negra em um país racista. Falamos sobre mudanças na cultura brasileira e nos direitos civis que garantiriam a criminalização do racismo hoje e que, com a discussão em pauta, pensávamos que as coisas poderiam estar diferentes. Isso não aconteceria mais hoje em dia, com certeza.

Em uma de nossas conversas por mensagem ela recorta uma matéria de um jornal lisboeta que sugere o risco de uma mudança nos lançamentos de imóveis na capital portuguesa. Brasileiros aos montes vão “invadindo” a cidade com seus costumes escravocratas e dinheiro no banco. Precisam de algumas modificações necessárias para acomodar a “brancura” dos seus modos de viver; para isso, entrada de serviço e acomodação para empregados, que não ocupem muito da “área útil”...

Voltando àquela tarde de domingo em agosto...

Depois de me despedir com um imenso constrangimento, reencontro o porteiro, um querido senhor, o funcionário mais antigo do prédio, um negro. Sempre penso quão injusto é alguém ainda ter que trabalhar naquela idade. No domingo dia de descanso ele também trabalha.

Domingo dia de descanso. Velho. Negro. Pobre. Porteiro, aquele ser invisível atrás da cabine blindada. O que fazer? Vou falar sobre o ocorrido e ele visivelmente se atrapalha para se justificar. Sinto dor por ele, por minha amiga e por ter que encarar mais uma das facetas monstruosas de nossa época, na minha casa, no meu mundo, na minha pele ...

O que aconteceu aqui? O contínuo processo de destituição de conquistas dos negros pelos brancos acontece em profusão, esse exemplo mostra o quanto a cor negra foi determinante para a “posição de direito” designada à minha amiga acadêmica. Seus títulos foram escondidos atrás da sua cor. O prédio destina entradas discriminadas por cor! Não havia nada que justificasse entrar pela entrada de serviços, que hoje em dia serviria exclusivamente para a recepção de materiais de construção, mudanças e cachorros.

O ideal da “brancura” é resultado da dominância na cor branca, que por consequência vê no negro a marca da condição desfavorecida. “A ideologia racial se funda e se estrutura na condição universal e essencial da brancura como única via possível de acesso ao mundo” (Izildinha B. Nogueira, p.123)[iii]. Negro é pobre e subalterno como eu, pode ter pensado meu querido porteiro. Também trabalha aos domingos, como eu. Seu lugar é pela entrada de serviço... estranho até mesmo para aquela portaria empertigada, uma vez que na cobertura mais bacana mora uma negra com suas filhas.

Esse é o olhar do outro que impregna a retina de um eu tão acostumado a ser visto assim. O porteiro, que é negro, sofreu, no seu processo de subjetivação, a construção de uma imagem de si a partir do olhar de um outro que o categoriza. Reproduzirá, por identificação com o agressor, a atitude racista. Cito a autora novamente: “Ser sujeito no outro não significa ser o real do próprio corpo, que deve ser negado para que possa ser outro. Mas essa imagem de si, forjada na relação com o outro - e no ideal de brancura - não só não guarda nenhuma semelhança com o real de seu corpo próprio, mas é por este negada, estabelecendo-se aí uma confusão entre real e imaginário” (p. 124). Segue perguntando-se como nesse processo de despersonalização o negro não enlouquece. O resultado “transforma o sujeito num autômato: o sujeito se paralisa e se coloca à mercê da vontade do outro”. As fantasias vêm de dentro e de fora e mantêm e propagam os pré-conceitos permanentemente.

Coincidências estranhas colocaram no destino da minha semana uma peça sobre porteiros. João Junior, ator/diretor de teatro do grupo Estopô Balaio fizera uma montagem chamada Portar(ia) silêncio onde dá voz aos silenciados porteiros. Ele imigrante nordestino, por saudade da sua terra, buscou nas histórias dessas personagens a sua própria história. Justa homenagem.

Os porteiros, que na sua imensa maioria são imigrantes também, vêm à capital paulista em busca do sonho de ser alguém. Quer dizer, sonhando ser alguém que tenha coisas e oportunidades, porque são muito mais alguém em seu território de origem do que no anonimato da cidade grande, longe das suas referências. Só que eles só descobrem isso depois.

No desalento da invisibilidade estão à espreita dos movimentos dos moradores, como guardiões da propriedade e privacidade dos mesmos. Assistem a tudo o que acontece e devem ficar imaginando enredos, como quem acompanha uma novela televisiva. Bom recurso para conquistar autoria em meio ao processo de dessubjetivação do uniforme e regras de conduta. A inversão de quem detém a voz permite que falem e contem suas histórias de vida. O porteiro do meu prédio é baiano. E negro. Sei muito pouco sobre ele...

A minha amiga ressignificou o racismo naquele episódio da época da faculdade, acusou o “primeiro” golpe quando viu a reação indignada das amigas. Foi o olhar delas, a sua reação que instalou a certeza da injustiça e do preconceito. Aquilo nunca foi esquecido, e ainda, ficou como lembrança de um tempo instituinte da sua militância. O segundo episódio foi também traumático, porque dessa vez era um negro a lhe impor seu olhar racista. A manifestação mais inconcebível. Minha amiga pediu-me que não tratasse a questão individualmente, de forma que recaísse no porteiro; ela sugeriu uma conversa com os condôminos para lembrar que racismo é crime e que, portanto, os procedimentos de entrada no prédio precisam ser revistos. “Um golpe antigo, em certas circunstâncias, pode golpear ainda mais no presente. A pessoa desprevenida recebe um golpe e fica desnorteada sem saber o que a atingiu, de onde surgiu o ataque, aparentemente sem fonte e sem sentido. Vem, por exemplo, por dentro, como uma angústia. Vem pelo sono, como um pesadelo, e é incrível como, às vezes, o recurso histórico ao passado pode ajudar a interpretar sonhos” (José Moura Gonçalves Filho, p. 144)[iv].

Esse episódio faz parte da minha história e não será esquecido. Possibilitou-me rever as raízes do preconceito em mim e no meu universo próximo, sei tão pouco sobre meu porteiro... Sinto gratidão imensa por essa oportunidade, em si dolorida, mas altamente necessária para seguirmos na tarefa de “cortar na carne” essa doença social, portanto, histórica.

Como psicanalista, escutar com atenção o que é falado e o que é calado faz com que eufemismos do tipo “entrada lateral” para renomear o que é na realidade a velha entrada de serviço sirva para gritar a depreciação e agressividade incrustadas no nosso cotidiano. Enquanto a entrada lateral servir para carregar lixo, coisas e animais na intenção, mas, na realidade, discriminar por cor ou condição sócio-econômica, não poderemos nos eximir da responsabilidade com as mudanças micropolíticas que reverberam na nossa alma e na nossa pele.

Esse sonho é daqueles que mantém meu encantamento com as possibilidades do inconsciente. Mostrou-me, por outro lado, uma faceta angustiada sobre a questão. Não se pode aquietar porque o recalcado retorna, mesmo como problema de pele, ou problema menor, mais superficial. As direções para as quais ele aponta sobre a experiência encarnada do racismo: algo tão avassalador que cria o clima de catástrofe que nos envolve todos e a questão epidérmica, mais superficial, de pele que nos faz semelhantes de novo, pareados e não opostos, sujeitos igualmente às forças brutais da violência. Não tem vitoriosos nem derrotados. Desejo de quem sonha.



[i] Originalmente publicado no site Escutando a cidade: www.escutandoacidade.com.br

[ii] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e integrante do coletivo Escutando a cidade.

[iii] Nogueira, I. B. – Cor e Inconsciente em O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise/ org. Noemi Moritz Kon, Cristiane Abud, Maria Lucia da Silva - São Paulo: Perspectiva, 2017.

[iv] Gonçalves F. J. M. – A dominação racista: passado e presente em O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise / org. Noemi Moritz Kon, Cristiane Abud, Maria Lucia da Silva - São Paulo: Perspectiva, 2017.




 
 
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