PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    48 Novembro 2018  
 
 
O MUNDO, HOJE

MARIELLE FRANCO – UPP: A REDUÇÃO DA FAVELA A TRÊS LETRAS


CRISTINA BARCZINSKI [i]


Não serei interrompida!

Não calarão a voz de uma mulher eleita!

(Marielle Franco em pronunciamento na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro)



Tristemente, a existência de Marielle Franco só ganhou o país quando ela foi brutalmente assassinada juntamente com o motorista Anderson Gomes. Desde o dia 14 de março acompanho o noticiário que se refere a ela com um misto de indignação e tristeza. Primeiro as mentiras torpes que tentaram transformá-la em criminosa e responsável por sua própria morte (para ter uma ideia da criatividade de seus detratores, consultar em http://www.boatos.org a matéria Assassinato de Marielle gerou onda de fake news). Seguiram-se oito meses de uma investigação precária que não chegou aos verdadeiros culpados, a ponto de a Anistia Internacional sugerir a criação de “um grupo externo formado por quadros técnicos” para acompanhar este trabalho (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/11/14/anistia-propoe-grupo-externo-para-fiscalizar-investigacoes-do-caso-marielle.htm).

A vereadora, negra, feminista e moradora da favela da Maré, eleita com votação expressiva, representou a rara possibilidade da população favelada ser dignamente representada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. A participação junto à Comissão de Direitos Humanos da Alerj evidenciou sua liderança, não só na luta pelos direitos de moradores das comunidades, mas também na crítica severa ao projeto das UPPs, acompanhada da defesa de melhores condições de trabalho para os policiais e apoio às famílias (https://exame.abril.com.br/brasil/coronel-da-pm-faz-homenagem-a-marielle-e-critica-boatos-falsos/). Chegou a este lugar por meio da militância, que acabou por levá-la a formar-se em Ciências Sociais na PUC-Rio com pós- graduação em Políticas Públicas na UFF, onde foi aprovada com louvor. No entanto, como lamenta seu grande amigo Marcelo Freixo, “Marielle era grande demais para a parca democracia em que vivemos. Nossa democracia não conseguiu lidar com o que ela – mulher, negra, feminista e nascida na Maré – representa. As forças políticas que dominam o Brasil e o Rio de Janeiro não a aturaram. Por isso ela foi assassinada.”

No dia 7 de novembro, ocorreu o lançamento pela n-1 edições da publicação de sua dissertação de mestrado, de título expressivo UPP – a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro . Entre outras reflexões, a autora resume sua crítica ao projeto militarista afirmando que, se realmente o Estado estivesse interessado em melhorar a vida das comunidades carentes, UPP deveria ser a abreviação para Unidade de Política Pública e não Unidade de Polícia Pacificadora. A Polícia Militar, no entanto, trata as favelas como território ocupado, seguindo um simbolismo de guerra no qual cidade e favela são como nações inimigas. No trabalho de Marielle, fica claro que este caminho só nos levaria a um aumento da militarização, em sua procissão de violência e morte, o que realmente se comprova nos dados estatísticos apresentados.

Voltando ao evento de lançamento do livro, o local escolhido tinha total sintonia com a personalidade solar de Marielle: o quilombo urbano Aparelha Luzia, nas bordas do Minhocão, criado pela educadora negra e nordestina Erika Malunguinho, a primeira deputada estadual trans eleita por São Paulo. Uma pequena multidão se acotovelava amorosamente para poder ouvir e ver a irmã Anielle e a mulher Monica dando testemunho dos 37 anos de vida intensa de Marielle. A fala potente de Erika, evocando entidades, acompanhada por batuques e cânticos do candomblé, evidenciava a força daquele encontro. Cercados neste período pós-eleitoral por uma atmosfera política ameaçadora, poder compartilhar um espaço carregado de libido e celebrar uma vida guerreira, mesmo que tragicamente perdida, teve um efeito curativo e inspirador sobre quem estava ali presente.



[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso Clinica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, integrante dos grupos de trabalho Sexta Clínica e Medicações em análise e da equipe editorial deste Boletim.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/