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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    51 Setembro 2019  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

AOS VIVOS E ÀS CORES


Diálogo Psicanálise e Humanidades: o autoritarismo e a História do Brasil organizado pela Associação dos Membros Filiados da SBPSP com a participação de Noemi Moritz Kon e Lilia Moritz Schwarcz, mediado por Flavia Steuer em 24 de junho de 2019.



SORAIA BENTO [i]




Um auditório confortável numa noite fria para um diálogo entre uma psicanalista, uma historiadora e um público que, pelo contexto, sugeria ser de psicanalistas na sua maioria... sento sozinha, embora tenha muitos amigos por ali. Ao meu lado, a duas cadeiras, uma moça mantém-se calada e atenta como eu, até o fim do debate. Eu a olhava de solslaio e via uma inquietação contida. A minha inquietação espelhava a dela. A diferença é que o tema toca a sua existência a partir de um lugar muito distinto do meu: eu branca, ela negra. A invisibilidade cotidiana do negro torna-se visibilidade quando se é a única negra entre tantos brancos.

Mais uma vez, reunimo-nos ávidos por um lugar de pensamento e troca para dar conta, no campo da experiência comum, de um país dividido; por um lado, desnorteado e melancolizado e, por outro, uma Odiolância (nos termos de Gisele Beiguelman) que tem como estratégia usar o ódio como principal afeto em circulação.

Inicialmente, imaginei que precisaria escrever sobre o evento porque buscava mais um espaço elaborativo. Animada com a ideia, mas desguarnecida de anotações que balizariam a narrativa mais precisa, fiquei um tempo às voltas com a tarefa.

Numa noite, entre tantas de sono difícil, abro minha caixa de e-mails, leio inadvertidamente um texto e logo penso: “- Não quero mais escrever!” Não há nada que eu possa dizer depois de ter lido À flor da pele, de Andreza Miranda, publicado no Blog de Psicanálise da SBPSP.

Por essa razão, aqui insiro a arrebatadora voz escrita dessa moça, que percebo, é minha vizinha de plateia.

À flor da pele

Andreza Miranda

Em 24 de junho, assisti a um evento na Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPSP) intitulado “Diálogo e Humanidades: o autoritarismo e a História do Brasil”. Eventos como esse são verdadeiras provas de resistência para mim: uma mulher negra de origem humilde e que, por um conjunto de fatores e de circunstâncias, surpreendentemente, encontra-se agora neste auditório, na Vila Olímpia.

Há um incômodo que me transporta ao “deslugar”, me sinto “morena”, da mesma forma que ocorria em situações sociais não muito remotas, nas quais pessoas próximas e queridas tentavam suavizar meu tom de pele, gravemente escuro. E assim me angustio: estar aqui seria uma traição aos meus irmãos e ancestrais?

Sinto asco da “coisa preta” que, desde sempre, é branca. E da mulata que pegou um cabo de vassoura e dançou com ou para Juscelino, pouco importam os detalhes do fato, diante da “mulata”, biologicamente estéril, mas sensualíssima. Há muito por dizer, mas sofro repentinamente de uma mudez; a mudez de uma intrusa bem-vinda e que empalidece como uma “camaleoa”.

Sofrendo da escuridão à flor da pele, revivendo o trauma ancestral nas palavras do estereotipado narrador, que historicamente oprime, que renarrando herculeamente tenta remover maquiagens branqueadoras – atenuantes – ainda que de forma atabalhoada num ideal antirracista.

Minha sensação é espantosamente a mesma da qual me contam meus parentes sobre lugares que outrora não podiam entrar. Me lembro que sempre protestei com o argumento questionador: “Onde isto estava escrito?”. Agora, entendo que não precisa estar escrito, basta estar sentido.

Eu tropeço em mim mesma quando faço o teste do pescoço e penso em mim construída neste projeto de embranquecimento sumário e genocida. O teste do pescoço é o desolador giro da cabeça para o lado esquerdo e para o direito, no qual você pode comprovar em tempo real a solidão e o desamparo, quando se trata de inclusão racial no Brasil.

Como desconstruir, a partir de tudo o que nos constrói: a pureza do branco, a sujeira escura, o crespo duro e ruim, o liso ideal e bom… discursos constitutivos e resistentes sempre a serviço das pessoas de bem que dominam as belas palavras e que contam a História.

Apesar de me ver no assunto não me sinto totalmente nele. Por instantes sou fragmentos coloridos, disfarces e represento uma falsa ilusão de inclusão. Questiono-me: afinal, de que adianta estar neste lugar de escuta saturada de sentimentos que temem vir à luz?

Mas, ao mesmo tempo, há o alívio de poder divergir, convergindo para o lugar onde sorrateiramente e indulgentemente me conduzem e com o qual não deixo de me identificar, extermínio e enclausuramento.

Somos parte de um mesmo todo, somos capturados pelas mesmas armadilhas da linguagem e das boas maneiras trazidas da mais tenra idade, desde a “lista negra” à “carta branca”, passando pela “mulatice etmologicamente infértil”, até a “alvura virginal”.

E, na vã e inglória tentativa de descobrir de qual lugar devo falar e de que ausência de lugar é essa que parto, sigo e me dou conta de que é preciso respirar e decifrar a estranheza como aquela de quando, pela primeira vez, me descobri e tenho me dito negra.

Andreza Miranda é estudante de Psicologia. Fonte:https://psicanaliseblog.com.br/2019/07/31/a-flor-da-pele/ ,

E eu agora, de qual lugar devo falar? Devo ainda falar algo?

Recupero algum sentido em prosseguir porque gostaria de destacar o esforço de fazer pensar sobre “isso em nós” promovido pelas irmãs Noemi Kon e Lilia Schwarz, mediadas por Flavia Steuer. Os laços entre as participantes só são mencionados porque contribuem para atualizar o tom parceiro e íntimo que se somou à propriedade com que ambas têm tratado o assunto nos últimos tempos. Lilia publica recentemente o livro Sobre o autoritarismo brasileiro (Cia das letras, 2019) e Noni organiza com Maria Lucia da Silva e Cristiane C. Abud o livro O racismo e o negro no Brasil (Ed. Perspectiva, 2017), para citar apenas dois, entre tantos outros trabalhos.

Certo que ainda somos os quase sempre brancos falando da inclusão racial, da desigualdade de gênero, da desigualdade social, mas nesse caso, vale dizer, são intelectuais tocadas pelos seus lugares de privilégios e inquietas com isso.

O evento promovido pela Sociedade de Psicanálise sediou um intercâmbio institucional com o Departamento de Psicanálise do Sedes e a USP. Interessante iniciativa dar a palavra a outrem nesses tempos partidos de hoje.

As credenciais das convidadas foram mais que valiosas para o estabelecimento de um panorama que destaca a ameaça à democracia. A democratura foi um conceito evocado por Lilia Schwarz. O termo remete ao modo de eliminação de bases racionais no debate, na propagação de teorias conspiratórias, ataque à ciência e aos costumes, além de ações para a eliminação das diferenças que são condição para a própria democracia. Os atributos democráticos não são garantidos apenas pela manutenção do direito ao voto e os ataques impostos às conquistas de direitos sociais e desrespeito às diferenças vêm confirmando o hercúleo desafio na resistência. A cordialidade brasileira foi tema, fazendo-se distinção entre o sentido polido e bondoso e o conceito generalizado por Sergio Buarque de Holanda, que buscava a raiz etimológica da palavra no coração, ou seja, o sujeito brasuca é muito mais guiado pelo coração do que pela razão, o que explica tanta destemperança e o ódio. A escravidão deixa herança no forma de racismo e mostra sua face violenta até hoje. De onde teríamos tirado a ideia de que o brasileiro é gente de bem e pacifista com a história que temos, com a matança desgovernada de pobres e negros?! Com a desigualdade brutal e brutalizante?! Lembro a música Haiti de Caetano Veloso, “...e quase brancos quase pretos de tão pobres”, que síntese!

Em consonância, Noni evoca o lugar de testemunho que o psicanalista tem para acolher e propor um trabalho de reparação sobre as marcas que ferem o psiquismo individual e coletivo. O sofrimento dos efeitos da violência e destituição de lugares e vozes alcança cada corpo que busca na psicanálise seu lugar de escuta, seja no espaço privado do consultório, seja em clínicas públicas. A partir do resgate de uma história passada em sala de aula, em que uma aluna negra denunciou racismo, foi que algo pôde ser percebido: o racismo despercebido tão frequentemente. É na desidentificação que temos notícia da identificação. Segundo Octave Mannoni, “para saber quem somos, é preciso passar pelos outros: sei quem sou porque os outros sabem” (p.186). Nesse sentido, o não escutado, o despercebido fez e faz ruído constante na escuta da Noni. Da Noni mas, melhor seria, que cada um de nós carregasse esse desassossego.

Lembro-me de um desconcertante episódio vivido por mim quando recebi uma amiga cabo-verdeana para um almoço. Meu porteiro, senhor negro e imigrante baiano, indicou que ela entrasse pela lateral do prédio... Como psicanalista, escutar com atenção o que é falado e o que é calado faz com que eufemismos do tipo “entrada lateral”, para renomear o que é efetivamente a velha entrada de serviço, sirva para gritar a depreciação e agressividade incrustadas no nosso cotidiano. Enquanto a entrada lateral servir para carregar lixo, coisas e animais na intenção, mas na realidade, discriminar por cor ou condição sócio-econômica, não poderemos nos eximir da responsabilidade com as mudanças micropolíticas que reverberam na nossa alma e na nossa pele[ii].

E não é que, a seguir, no debate, assistimos ao vivo e a cores (ops, em branco!), o inconsciente marcado pelo racismo na fala de um participante! O interlocutor não se deu conta que, ao falar do difícil estado das coisas que hoje vivemos, usou o clássico, “a coisa está preta”. Gongo! As debatedoras marcaram a violência enrustida. O falante demorou a perceber, defendia-se como um paciente em análise que nos ensina sobre a resistência. Para o espanto geral, outra fala que pretendia homenagear Virginia Bicudo, pioneira psicanalista negra no Brasil, acabou por distinguir um traço: a forma malemolente com que dançava. A imagem estereotipada da mulata sensual evocada causou outro espanto. A intenção, pareceu-me, foi exaltar algo bonito e invejável, quem sabe para “compensar” o mal trato com a obra dessa mulher neta de escrava alforriada que tanto batalhou para um lugar de saber, mas que foi esquecida na invisibilidade. Gongo de novo! Parecia incrível o que estava acontecendo. O inconsciente operando quase a céu aberto, nos mostrando a necessidade de percebermos que o racismo não pode ser descolado como uma etiqueta inconveniente, não se trata de algo periférico. Há muito trabalho por fazer.

Há um narcisismo em branco que ensurdece e fixa uma imagem de si a partir da aparência do semelhante humano branco...

O negro sofre, no seu processo de subjetivação, a construção de uma imagem de si a partir do olhar de um outro que o categoriza. Reproduzirá, por identificação com o agressor, a atitude racista, assim como meu querido porteiro. “Ser sujeito no outro não significa ser o real do próprio corpo, que deve ser negado para que possa ser outro. Mas essa imagem de si, forjada na relação com o outro -e no ideal de brancura- não só não guarda nenhuma semelhança com o real de seu corpo próprio, mas é por este negada, estabelecendo-se aí uma confusão entre real e imaginário” (Nogueira, p. 124). A autora segue perguntando-se como nesse processo de despersonalização o negro não enlouquece. O resultado “transforma o sujeito num autômato: o sujeito se paralisa e se coloca à mercê da vontade do outro”. As fantasias vêm de dentro e de fora e mantêm e propagam os pré-conceitos permanentemente.

Como Andreza, Grada Kilomba também denuncia que a imagem de mundo que ela vê refletida na academia, no campo da artes e nos lugares de poder não corresponde ao mundo real, mas tão somente reflete a cultura branca dominante. Nossos auditórios reproduzem esse desacerto. Imergir na espetacular exposição em cartaz na Pinacoteca provoca uma torção nas nossas certezas identitárias. Cito um breve trecho do texto lido por Grada Kilomba em vídeo e encenado por outros atores.

“o corpo negro,
torna-se esse
objeto mau externo,
que incorpora o que
a sociedade branca
tornou taboo:
a agressão e a sexualidade.
Nós tornamo-nos então,
A ameaça,
O perigo,
A violência,
A sujidade,
Mas também
O desejável,
o excitante,
o místico
e exótico.”





Illusions vol I. Narcissus and Echo, 2017, Grada Kilomba.
Fotos de Mario Saladini



Essa objetificação do corpo negro, nomeado como “outridade”, não corresponde à falta de interesse nos espaços da cultura mas, tão somente, à falta de acesso à representação, porque falta interesse político, porque a sombra da imagem do escravo vestindo uma máscara de ferro que o impede de falar nos impregna inconscientemente.

Para finalizar, olhar o céu pelo telescópio e olhar microfragmentos de fóssil pelo microscópio são imagens que resgato do filme Nostalgia da luz, do diretor chileno Patrício Guzmán. A amplidão e o ínfimo dando conta da magnífica visibilidade do céu no deserto do Atacama em oposição à opacidade da história da ditadura chilena, que mantém, até hoje, mulheres varrendo o imenso deserto em busca de indícios dos desaparecidos. Essa imagem carrega a dramaticidade do nosso momento político e ainda pode referir-se ao olhar macroscópico da história e o microscópico do sujeito. A psicanalista Noni e a historiadora Lilia tiveram a habilidade de traçar conosco essa combinação.

Referências:

Nogueira, I. B. Cor e Inconsciente em O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise/ org. Noemi Moritz Kon, Cristiane Abud, Maria Lucia da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2017.

Kilomba, G: desobediências poéticas, Ilusões Vol. I, Narciso e Eco, São Paulo: Pinacoteca, 2019.

Bento, S. A sombra da sombra em www.escutandoacidade.com.br

Mannoni, O. A desidentificação em As identificações na clínica e na teoria psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.





[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do coletivo Escutando a cidade e professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

[ii] “A sombra da sombra” In: Boletim Online 47, setembro de 2018: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=47&ordem=5




 
 
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