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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    51 Setembro 2019  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

NO VÃO ENTRE JOAQUIM NABUCO E ACHILLE MBEMBE


ANNE EGYDIO [i]


No dia 03 de julho de 2019, tive a grata oportunidade de participar do Fórum Clínico Ampliado da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, que se deu na forma de uma roda de conversa aberta aos membros da comunidade Sedes sobre o tema Relações raciais: como a Clínica do Sedes tem se posicionado em relação ao sofrimento psíquico do negro?


Como integrante do Grupo A cor do mal-estar, cujo objetivo principal é “identificar e reconhecer a existência, as dimensões e as consequências do racismo, visando estabelecer o reconhecimento das sequelas da escravização como um trauma gravíssimo a ser considerado na abordagem e intervenção psicanalítica, assim como instaurar um trabalho político de reparação institucional aos crimes oriundos de um Estado escravista ”, me senti intrigada em participar de uma discussão clínica onde a questão racial estava posta – o que já me pareceu raro em psicanálise.

Confesso que, em supervisão em grupo, às vezes, fico pensando acerca da etnia do sujeito em discussão, e me lembro dos questionamentos de Isildinha Batista Nogueira em Cor e inconsciente, no sentido de também estar norteada pela ideia de como o significante ‘cor negra’ está inserido, evidente, num arranjo semântico, político, econômico e histórico. (NOGUEIRA, 2017)

Os casos que lá foram apresentados tinham o atravessamento da questão racial, no entanto, na discussão dos mesmos, me parece que a recusa se fez presente, tocando aquilo que Joaquim Nabuco (1894-1910) denuncia em sua obra O Abolicionismo:

“A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar e, infelizmente, essa é a história do crescimento do Brasil. No ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros descendentes ou da raça que escreveu esta triste página da humanidade, ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e outra, não devemos perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repelir. Devemos fazer convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão de nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras, já mais apagada, rudimentar e atrofiada”. (2000; p.101)

Não pretendo aqui retomar as discussões dos casos, mas tentar dizer um pouco da angústia que senti diante do quão distante estamos daquilo que Nabuco nos pede, não devemos perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repelir, porque a vergonha também é recusada.

Joaquim Nabuco conceitua como sendo a escravidão formadora do Brasil como nação, deste modo, pode-se considerar que a nação brasileira foi fundada a partir do sequestro, extradição, expropriação, exploração, tortura, estupro e assassinato de milhões de homens e mulheres retirados violentamente de seus territórios em África e é importante pensar no quanto este período fundante da nação brasileira fica fora do campo psicanalítico.

No trecho acima, ele aponta uma possibilidade de que brancos e negros possam ressignificar o passado histórico, a partir de uma elaboração do que foi a chaga perpetrada pelo crime contra a humanidade - não reconhecido, até os dias de hoje -, que foi a escravidão.

De modo análogo, o processo analítico, a partir da livre associação, busca ajudar o sujeito a lembrar para esquecer. No entanto, será de suma importância diferenciar “o esquecimento que se dá pela possibilidade de ter lembrado o suficiente para que se possa não ficar retido no passado numa repetição cega e infindável, e o esquecimento obrigatório e imposto, que se dá pelo impedimento da memória”, conforme nos conta Ana Paula Mussatti-Braga. A autora segue fazendo a distinção entre o primeiro tipo de esquecimento, em que se trata de uma elaboração e o segundo, que seria “mais de uma tentativa de silenciar e calar, uma imposição de um esquecimento que tem como efeito um retorno, uma repetição e permanência da violência que não se quis lembrar.” (2015, p.86).

O período de quase 400 anos de escravização no Brasil, seguramente, remete ao segundo tipo de esquecimento e isso está presente na estrutura do racismo à brasileira que reproduz esse esquecimento numa forma de impedimento de acessarmos a história de nosso passado - nome e memória dos deportados do continente africano-, tratando o povo negro na diáspora brasileira “como indivíduos sem raízes e sem história” (Mussatti-Braga, 2015), de um lado e, de outro, o silenciamento diante do patrimônio simbólico e concreto herdado por parte da branquitude, “fruto da apropriação do trabalho de quatro séculos do outro grupo. Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco na história do Brasil.” conforme nos conta Maria Aparecida Bento em Branqueamento e branquitude no Brasil.

A desmentida desenlaça ou desata um lado do outro, produzindo uma impossibilidade de sentidos, onde a vergonha que sentiríamos, profetizada por Nabuco, é forcluída. Em Crítica da razão negra, Aquille Mbembe nos adverte sobre a forma como o pensamento europeu tendeu a abordar a identidade dissociada do pertencimento mútuo (a um mesmo mundo), mas a partir da relação do mesmo como o mesmo ou em seu próprio espelho. Mbembe segue dizendo:

“Em contrapartida, interessa compreender que, como consequência direta dessa lógica de autoficção, de autocontemplação e até mesmo de enclausuramento, o negro e a raça têm sido sinônimos, no imaginário das sociedades europeias. Designações primárias, pesadas, perturbadoras e desequilibradas, símbolos de intensidade crua e de repulsa, a aparição de um e de outra no saber e no discurso modernos sobre o homem (e, por consequência, sobre o ‘humanismo’ e ‘humanidade’) foi, se não simultâneo, pelo menos paralelo; e , desde o início do século XVIII, constituíram ambos, o subsolo (inconfesso e muitas vezes negado), ou melhor, o complexo nuclear a partir do qual se difundiu o projeto moderno de conhecimento – mas também de governo. Ambos representam figuras gêmeas do delírio que a modernidade produziu”. (2018; p.12).

O delírio produzido pela modernidade se manifesta, segundo Mbembe, ligado ao fato de ser o negro algo que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo quanto nada queremos compreender.

No entanto, minha aposta vai na direção do que propõe Joaquim Nabuco, no sentido de fazer convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão de nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras, já mais apagada, rudimentar e atrofiada.

Nesse sentido, considero que o Fórum Ampliado da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae pôde, sim, trazer uma contribuição no sentido de possibilitar uma tentativa de escuta que possa levar a uma via de acesso a este subsolo (inconfesso e muitas vezes negado) que nos impede o pensar clínico balizado no laço social marcado por tamanha violência e brutalidade, que foi a escravidão.

Não podemos mais nos furtar a encarar essa dura realidade.

Referências

Bento, Maria Aparecida Bento. Branqueamento e Branquitude no Brasil. Disponível em: http://www.media.ceert.org.br/portal-3/pdf/publicacoes/branqueamento-e-branquitude-no-brasil.pdf. Acesso em 10/08/2019

Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

Musatti-Braga, Ana Paula. Os muitos nomes de Silvana: contribuições clínico-políticas da psicanálise sobre mulheres negras , tese de doutorado – Programa de Pós-graduação em Psicologia, área de concentração: Psicologia Clínica – IPUSP, orientadora: Miriam Debieux Rosa. São Paulo, 2015, disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-10052016-104955/publico/braga_corrigida.pdf. Acesso em 10/08/2019

Nabuco, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Publifolha (Grandes nomes do pensamento brasileiro).

Nogueira, Isildinha B. “Cor e inconsciente” in Kon, Noemi M., Silva, Maria Lucia e Abud, Cristiane C. (orgs.) O racismo e o negro no Brasil: Questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017.





[i] Graduada em Letras e psicanalista, aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, participou do projeto de Clínica Pública de Psicanálise no Canteiro Aberto Vila Itororó, integrante do projeto de Clínica Aberta de Psicanálise na Casa do Povo e colaboradora no Programa de Assistência e Estudos de Somatização -PAES, do Departamento de Psiquiatria da Unifesp.




 
 
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